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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Alessandra Freitas

Here, There and Everywhere


É difícil enxergar por trás das lentes dos óculos quadrados, pretos com aros grandes, a paixão monumentosa dessa garota de 14 anos por uma certa banda de rock dos anos 60. Cabelos castanhos pesados costumam cobrir o rosto de formas pequenas, como se quisessem esconder o segredo de sua personalidade fascinante. Júlia Mazzoni Marçal não tem papas na língua, não tem medo de saber e descobrir, e diz que nesse mundo, “todo mundo tem um mundo diferente”. E, para descrever o mundo da Júlia, é impossível não levar em conta os mesmos quatro rostos que cobrem suas paredes, as capas dos cadernos, os vários livros na estante do seu quarto, as camisetas, revistas, posters e por aí vai: Paul, Ringo, John e George, os quatro pedestres mais famosos da Abbey Road, são o centro da vida dessa garota que, durante toda a entrevista, inverteu nossos papéis e não largou sua máquina fotográfica. Era uma tarde de sexta-feira quando cheguei em sua casa, gravador e bloco de notas na mão. Mais precisamente, dia 3 de maio de 2013. Júlia é mineira, nascida em Belo Horizonte -onde reside atualmente-, e possui, além do peixe de estimação, John, um irmão de 17 anos chamado Bruno, um pai e uma mãe divorciados desde 2004. O pai, Márcio Marçal, mudou-se há dois anos para Porto Alegre após passar em um concurso público para lecionar na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). “Eu era muito pequena quando meus pais se separaram, talvez seja por isso que eu não sinto falta de ter uma família convencional”, Júlia diz a respeito de sua situação familiar. “Sinto falta do meu pai, mas eu falo com ele sempre. Ele só deixou de ser marido da minha mãe, ele não deixou de ser um pai pra mim”. A mãe, Cláudia Mazzoni, também é professora, e dá aulas na universidade FUMEC, em Belo Horizonte, no curso de Fisioterapia. Muito carinhosa, Cláudia parece uma caricatura da mulher dos anos 90, com seus cabelos volumosos de permanente e calça de cós alto preso com um cinto fino na cintura. Ela é daquelas mães que parecem esculpidas para o próprio papel de mãe: mãos ágeis e dóceis, voz firme, que passam segurança, rosto amável com um quê de severidade. No momento que Cláudia chega para nos oferecer biscoitos e pão de queijo (ah, Minas Gerais!), seu irmão logo aparece na porta. Bruno Mazzoni Marçal é outro personagem que merecia ser perfilado. Olhos curiosos sempre caracterizam suas feições também finas, como a da irmã, e sua altura média sempre pareceu a medida perfeita para sua constante inconveniência – característica que, na personalidade de Bruno, passa de algo negativo, para uma empatia engraçada. “SHE'S GOT THE DEVIL IN HER HEAAART”, entra cantando alto a canção dos Beatles (que, em tradução livre, significa “Ela tem o diabo no seu coração”). “Tá treinando pra quando você for famosa, Júlia?”, Bruno pergunta em tom de brincadeira, se referindo à entrevista. Júlia apenas ri e revira os olhos amendoados, apesar de o cabelo sobre o olho direito me impedir de vê-lo completar a volta como o esquerdo. Seu irmão então entra no quarto e se acomoda ao lado do amigo Guilherme Marques, que veio de São Paulo para assistir ao show de Paul McCartney, marcado para o dia seguinte. O curioso é que ele e Júlia nunca tinham se encontrado antes, mas isso é um assunto que merece um espaço maior, reservado para daqui a pouco.

A paixão

Quem conhece Júlia Mazzoni poderia jurar que ela conheceu os Beatles já na barriga da Cláudia. Que antes mesmo de saber falar “mamãe” ou “papai”, ela já sabia a letra de “Hey Jude” de cor. Que já sabia a história inteira da formação da banda antes mesmo de saber a história da formação do seu país. Que já sabia o número de músicas compostas pelos Beatles antes de conhecer a matemática. Mas na verdade, a menina sentada na minha frente, rodeada de posters do quarteto, do ingresso para o show do ídolo Paul McCartney e de adesivos da banda grudados no computador, só se tornou fã dos Beatles há dois anos. “A primeira música deles que eu lembro ter escutado foi 'Hey Jude'. Claro que eu já tinha ouvido músicas dos Beatles antes, mas eu nunca tinha escutado, entende? Acho que meu inglês não era bom ainda, sei lá. Mas parei pra escutar a música e achei a letra simplesmente linda”, ela conta, olhando para cima como se estivesse visualizando o momento em que a versão mais nova dela descobriu a paixão que mudaria sua vida logo depois. Depois disso, ela não parou de escutar as músicas dos londrinos. Nas palavras de Júlia, é como se ela escutasse música pela primeira vez, ou como se descobrisse por quê a música existe. “Eu escutava muito sertanejo, axé. Pra mim, música era pra animar, pra escutar quando está triste, sei lá. Eu não conseguia ver a música como arte, como sentimento, até eu conhecer os Beatles. Um mês depois de escutar 'Hey Jude' eu já sabia que não ia conseguir viver sem eles, e eu só queria descobrir mais sobre eles, escutar mais músicas, conhecer mais a história. E aí foi quando, é claro, eu comecei a comprar CDs, DVDs, revistas, posters, livros e todas as coisas que eu tenho deles agora”. Alimentar um vício é uma questão muito delicada, especialmente para os pais. Divididos entre apoiar o gosto da filha por uma banda admirada por sua qualidade musical, e reprimir a paixão que estava caminhando para algo exagerado foi muito difícil, como revela a mãe: “Eu sempre apoiei a Júlia e incentivei pra que ela cultivasse um gosto musical bom. Eu e o Márcio nunca chegamos a reprimir essa paixão que ela tem pelos Beatles, mas ficamos de olho caso a gente tivesse que frear alguma coisa”. E esse freio logo teve que ser necessário quando Júlia começou a querer comprar todos os artigos da banda que ela encontrava. A menina chegou a comprar um quadro dos Beatles com o dinheiro da mesada e do lanche escolar. “Ela simplesmente chegou em casa com um quadro gigante dos Beatles, o Bruno ajudando a carregar. Eu perguntei com que dinheiro ela tinha comprado isso e descobri que ela tinha ficado meses sem lanchar na escola pra conseguir comprar o bendito quadro”. Depois disso, Júlia agora só pode comprar artigos dos Beatles após ligar para os pais e conseguir permissão. E se a menina tentar contrabandear para dentro de casa e for descoberta, além de ter o artigo jogado fora, a mesada de R$50,00 será cortada e ela só irá levar lanche de casa para a escola. A mãe nega que seja uma atitude radical, pois para ela, “é importante estabelecer limites, e o principal deles é que ela não pode ficar sem comer e colocar a saúde em risco por causa de uma banda, não importa quão importante ela seja pra Júlia”. Mas uma coisa já virou tradição: Há dois anos, o aniversário da adolescente tem o tema dos Beatles. No primeiro ano, o bolo foi azul, com um submarino amarelo no meio e o nome da banda embaixo (referente à música “Yellow Submarine”). Já no segundo, o bolo foi branco com algumas partes de músicas do quarteto espalhadas na superfície. Até as velas não ficaram de fora e tiveram o formato caricaturado de cada integrante da banda. “Meus amigos de BH acham legal e engraçado ao mesmo tempo. Eles não entendem direito por quê eu gosto tanto, mas pelo menos não me criticam. Alguns não conheciam a banda direito, aí eu mostrei umas músicas e eles adoraram. Mas não tem como não gostar, né”, ela ri pra mim. Não gostar dos Beatles deve ser tão difícil quanto não gostar da Júlia. Talvez seja por isso que foi tão fácil para a adolescente achar amigos Beatlemaníacos mesmo distantes. “Meus melhores amigos não moram perto, mas são tão próximos que, como meu pai, não sinto falta de não estarem aqui”. É o caso do Guilherme, citado algumas linhas atrás. Eles se conheceram por meio de grupos de fãs de Beatles no Facebook. Foi uma publicação que envolvia Ringo Starr, um integrante subestimado da banda, que ganhou menos reconhecimento que os demais. Guilhereme comentou algo que se referia justamente a esse fato, ao que Júlia concordou, e logo ambos começaram a conversar. Falavam pelo chat privado da rede social, e depois já tinham o telefone um do outro. “Quando fiquei sabendo do show do Paul em Belo Horizonte, estava pensando em um jeito de pedir para a Júlia que eu me hospedar na casa dela, mas nem precisou. Cinco minutos depois, ela já ofereceu a casa dela e estava super animada pra gente se conhecer pessoalmente”. Cláudia não viu problema porque já conhecia Guilherme das longas conversas de Skype que Júlia mantinha com o amigo, que sempre se mostrou uma pessoa honesta e divertida. “Qualquer tipo de relacionamento na internet é complicado, mas Guilherme tem a minha idade e eu conheci a família dele pelo Skype. Na verdade, nós nos conhecemos mais do que a gente conhece nossos amigos que moram nas nossas cidades”. Guilherme foi um dos primeiros a apoiá-la na sua vontade de aprender a tocar guitarra, já que ele mesmo a toca. Desde pequena, Júlia sentia uma conexão com a música. Sua resposta nunca mudou muito (até recentemente) quando perguntavam a ela o que ela gostaria de ser quando crescesse: cantora, música, guitarrista, rockstar. Mas ela nunca havia tomado aulas para aprender a tocar a um instrumento, e a vontade tinha se recolhido à própria vontade. Até que a menina conheceu os Beatles e Guilherme, que a incentivaram a desenvolver seu talento musical. Júlia então se matriculou na escola de música ProMusic, localizada no bairro da Savassi, onde começou a aprender a tocar guitarra e teve aulas de canto. Aprender a cantar não gerou muitos frutos, na opinião de Júlia, e a menina logo desistiu das aulas para focar a aprender os acordes da guitarra elétrica. A menina tomou tanto gosto pela coisa, que logo se tornou boa o suficiente para realizar apresentações musicais na escola e formar uma banda com seu irmão – que toca bateria – e alguns amigos. A guitarra vermelha, presente dos pais pelo último aniversário, repousa imponente e confortável no quarto que abriga tantos astros do rock. “Ainda não temos um nome para a banda, estamos tentando pensar em alguma coisa que traduza tudo que a gente significa”, ela sorri, olhando para Elvis – a guitarra, que diferentemente da banda em que toca, já foi privilegiada com um nome.

O show

O dia seguinte começou cedo: todos os integrantes da casa já estavam de pé às 4:30h da manhã. E muitos poderiam pensar que o cansaço sonolento viria acompanhado de um silêncio interrompido por bocejos, mas foi muito ao contrário. A correria, a apreensão e o medo de estar esquecendo alguma coisa, a gritaria de “mãe, você viu a minha calça?” ou “Bruno, onde está a lente da câmera?” enchiam os cômodos da casa com ansiedade e expectativa. Às 5h, todos já estavam no carro em direção ao estádio do Mineirão. Júlia vestia uma camiseta com uma foto de Paul McCartney, escrito “Paul, vem falar 'uai'”, da campanha mineira para trazer o Beatle à cidade. Cláudia estacionou o carro no estádio às 5:30h, e todos sairam correndo, como se o show estivesse prestes a começar, e não como se ainda faltassem mais de 15 horas – como era o caso. Impressionantemente, a fila de espera não era pequena. Muitas pessoas estavam acampadas ali por dias. Com o lugar na fila garantido, Júlia já sacou sua câmera fotográfica profissional nikon D3100 e começou a tirar fotos. Só mais tarde descobri a importância dessa câmera na vida da Júlia. A verdade é que a nikon chegava a ser mais importante que a guitarra Elvis: após descobrir seu amor pela fotografia, Júlia largou anos de sonho de rockstar e decidiu ser fotógrafa, especializada em show. Com o apoio da mãe, realizou um curso de fotografia de uma semana de duração e já tem uma vaga reservada para trabalhar com a câmera na BH Beatle Week, no dia 4 de novembro. Chamando a atenção com a câmera profissional nas mãos, Júlia já começou a conhecer novas pessoas e trocar ideias e experiências com outros fãs da banda. De repente, um momento inusitado: Ela encontra, na fila, uma grande amiga da internet, com quem conversava por 2 anos. Guilherme pega então o violão que tinha levado para a ocasião e todos formam uma roda, cantando juntos as músicas dos ídolos. A música e o amontoado de pessoas atraíram o fotógrafo oficial do show, que filmou tudo para mostrar para Paul McCartney. A empolgação foi contagiante, e logo o sol também ficou mais forte para dar mais cor a esse dia que, para todos ali presentes, era incrivelmente especial. Após muita espera, cansaço e animação, os portões são abertos às 17:30h. Mesmo lutando contra, os seguranças do local não puderam evitar a correria dos fãs, que queriam garantir o lugar mais perto possível. Júlia, Bruno, Guilherme e Cláudia ficaram a três fileiras de pessoas do palco – o cheiro de madeira era quase palpável. Júlia então se lembra do sufoco que foi para garantir os ingressos e diz que não acredita que está ali. Na pré-venda de ingressos para shows como esse, esgota-se muito rápido as entradas disponíveis, principalmente para pista premium. “Teve meia hora de atraso para começar a vender, e eu e minha mãe ficamos segurando nervosas o papel com todas as informações necessárias para a compra, para não perder tempo. Quando eu vi 'compra realizada com sucesso' na tela do computador, deu um alívio tão grande que quase chorei de felicidade”. De repente, as luzes se apagaram e a gritaria ficou mais forte. Paul subiu ao palco, tranquilo, feliz, imponente e satisfeito com a multidão que gritava seu nome. Olhei para o lado e Júlia já estava chorando: “Meu Deus, é ele”, era tudo que ela conseguia falar. O som da guitarra emergiu ao que o Beatle começou a cantar “Eight Days a Week”; a alegria e empolgação eram contagiantes, assim como o carinho dos fãs para com o ídolo no palco. Os hits “Yesterday”, “My Valentine”, “Something” e “Here Today” (feita em homenagem a John Lennon, após a sua morte), foram os que arrancaram mais lágrimas de Júlia e da plateia. Ao final do show emocionante, com os pés doendo muito, todos relutavam em ir para a casa e deixar o estádio que tinha sido palco de um sonho realizado. “Parece que eu estava drogada, não lembro de muita coisa”, são as palavras que Júlia usa após o show. É como se estivesse tão entregue apenas aos sentimentos, que não houve espaço ou tempo para a memória registrar os momentos do show. Depois disso, pergunto a ela qual a coisa mais louca que ela faria pelos Beatles. Júlia olha para mim e responde, sem hesitação: “tudo. Eu faria qualquer coisa”.

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