Amor,
reine sobre mim
Fernanda
Lensky é minha amiga. Nos dias de hoje, amiga no sentido literal da palavra. Há
cerca de cinco anos e durante três deles, era apenas conhecida. Mas desde quando
minha desequilibrada memória permite que eu me lembre, sempre foi uma possível
e provável personagem de um perfil: alheia, sedutora e meio psicótica.
Há quem
evite perfilar um amigo ou uma pessoa próxima pela aparente facilidade da
tarefa. No caso de Fernanda, não existe dívida maior que eu possa ter com o
mundo. Admito que tenho uma sensibilidade ingênua: emociono-me fácil. Mas
diferente de muitas pessoas, nunca tive medo de conhecê-la. Porém, a reciproca talvez
não seja verdadeira: enquanto eu tentava ter uma conversa honesta com ela, uma
música de Caetano Veloso saía da tela gigantesca de um MAC em seu quarto:
“You don't
know me / Bet you'll never get to know me
/ You don't know me at all / Feel
so lonely / The world is spinning
round slowly / There's nothing you
can show me / From behind the wall”
Fernanda
não me olhou nos olhos e não me encarou em nenhum momento das conversas mais racionais
que tivemos. Sempre que descreviam seu olhar com uma frase clássica de dom
Casmurro, de Machado de Assis (“olhos de cigana
oblíqua e dissimulada.”), eu
achava que estavam forçando a barra. Porém, durante essas conversas, me senti Bentinho
olhando para Capitu. Com o rosto virado de lado, olhando para o chão, ela não
falava. Enquanto eu perguntava e não tinha respostas, vi Fernanda chorar, mas
não eram lágrimas: com a dificuldade que ela tem de se abrir, eram palavras em estado
líquido. E eu entendi. Mesmo sem palavras reais, esse foi o diálogo mais
esclarecedor que eu tive sobre a existência de Fernanda Lensky. Temo que este
perfil tenha mais a dizer sobre todos nós, sobre a cidade e sobre a vida do que
sobre Fernanda.
Sentada
em uma mesa de um bar na Praça Roosevelt, tomando uma caipirinha de cachaça com
limão pra curar a dor de garganta, Fernanda diz pra mim uma frase que
provavelmente define sua adolescência: “Eles não sabem o que é procurar segurança em outras pessoas, não
sabem o que é considerar um lar qualquer lugar você descansa sua cabeça.”
Dos 14 aos 18 anos, Fernanda dificilmente ficava em casa: “não conseguia ficar
com a minha família, e até hoje não consigo. Amo todos eles, não poderia existir
uma família melhor, mas eu não consigo e sofro por isso”. Até a oitava série,
Fernanda matava algumas aulas de uma escola de alto padrão e ia pra matinês no
final de semana. Seu nomadismo aumentou e com ele vieram problemas: repetiu o
ano e mudou pra uma escola pública. “Nessa época já usava o documento de outras
pessoas para entrar em festas e dificilmente era vista dentro de casa de sexta a
domingo.” Vômitos e ressacas aumentavam cada vez mais, mas ninguém poderia
imaginar o futuro. Sua madrasta, carinhosamente apelidada de Malu pela família,
disse em uma conversa que tivemos em sua casa: “Quando a Fernanda era criança,
e até mesmo quando era adolescente, sempre percebi que ela estava além da idade
dela. Era a mais inteligente e a mais perceptiva, apesar de tímida. Eu só não
sei onde isso se perdeu.” Vi, em cima de uma cômoda de madeira, uma foto em que
Fernanda está no meio de várias crianças em um sofá, numa festa infantil. Com
um vestido laranja, ela encara a câmera e seu olhar diz claramente: “aqui eu
não me encaixo.” E talvez nunca tenha se encaixado em qualquer outro lugar.
Fernanda nunca terminou o ensino
médio formal. Essa característica de não conseguir manter-se por muito tempo em
qualquer atividade viria a tomar conta de sua vida mais tarde. Com dificuldade,
Fernanda terminou um supletivo. Conseguiu uma vaga em uma renomada faculdade de
artes cênicas, mas nunca se matriculou. Entrou em uma faculdade de moda e
repetiu o primeiro ano por que faltava demais. Fez aula de dança contemporânea,
mas largou, de acordo com ela, “pela falta de dinheiro.” Quer fazer cursos de
literatura, de arte, de línguas, mas nunca concretiza suas vontades. Tem que ir
ao banco, ao supermercado, à padaria, fazer uma nova documentação, se inscrever
para o vestibular de jornalismo, mas nem essas pequenas ações ela consegue
realizar. Fernanda anota tudo que tem fazer metodicamente e tira uma foto com o
celular pra carregar as anotações em qualquer lugar que vai – mas as vontades
se esvaem e entram em seus lugares as desculpas: “não deu tempo, esqueci, não
tinha como”. De acordo com seu pai, Carlos, “ela cria um mundo próprio a partir
dessas desculpas, onde tudo é justificado. Acredito que só dessa forma alguém
consiga seguir com a vida sem olhar pra trás e ver as coisas das quais desistiu.”
Quando a questionei sobre esse aspecto recorrente de sua vida, ela chegou a uma
conclusão que, para mim, era assombrosa: o fantasma de sua vida era a solidão.
Mas pra ela esse fantasma é só um boneco com lençol branco: “já me acostumei
com esse ciclo: me organizo e fico cheia de esperanças, achando coisas pra
tampar um buraco que tenho em mim, pra me encontrar. Aí aos poucos vou deixando
as coisas pra trás, esquecendo, e só percebo que não fiz nada – no sentido
completo da palavra – nada do que deveria, quando já passou muito tempo.”.
The Real
Me – The Who
I went back to my mother
/ I said, 'I'm crazy ma, help me.' / She said, 'I know how it feels son,
/ 'Cause it runs in the family.'
Esse vazio teve diversas formas e tentativas
de preenchimento: Fernanda teve incontáveis namorados. Alguns duravam algumas
semanas, outros alguns meses, mas muitos duraram só uma transa. Sua sexualidade nunca foi reprimida por ela
mesma, que não se importa. Só pelos outros: “um psicólogo chegou a dizer que eu
estava claramente envolvida com algum tipo de prostituição.” Psicólogos e
psicoterapeutas viriam a ser recorrentes em sua vida: ela engravidou de um
namoro que, para ela, tinha amor e cumplicidade. Mas aos cinco meses de
gravidez, uma noticia desesperadora: o pai não assumiria a criança. “A mãe dele
disse pro meu pai assim: eu sei como sua filha é, duvido que essa criança seja
do meu filho.” Fernanda me conta com frieza como foram os últimos meses de
gravidez: “Ia na casa dele, não deixavam eu entrar. Ficava esperando alguém sair pela
garagem. A mãe dele me deixou na chuva, uma vez. Eu acordava todos as noites
gritando, tendo pesadelos.” Apesar de tudo isso, seus pais apoiaram-na
totalmente: compraram um novo apartamento para ter um quarto só para o filho
que nasceria. Sua madrasta largou o emprego pra poder cuidar da criança e Fernanda
poder fazer faculdade. Benjamin veio ao mundo sem o nome do pai em sua
documentação e com muito amor da família e dos mais próximos. Porém, a
primavera que reinou na vida da família enquanto Fernanda amamentava seria
abalada por sua solidão alguns meses mais tarde.
Após ter seu filho, Fernanda e
seus pais fizeram o possível para que ela continuasse a ter oportunidades:
começou um curso de moda na Faculdade de Belas Artes e conseguiu um emprego em
uma famosa loja do shopping JK. O intenso atarefamento começou a impedir que
ela passasse muito tempo com seu filho. Misturando isso com as constantes
saídas aos fins de semana e todo o dinheiro gasto com itens de interesse
próprio, como roupas, bolsas e sapatos, Benjamin acabou sendo extremamente negligenciado
de seus cuidados. Isso gerou uma separação na família: suas vidas sociais e
profissionais eram um reflexo de sua tentativa de não pensar ou refletir sobre
o trauma recente da separação que viveu. “Era tudo uma válvula de escape, sem
dúvida.”, diz ela com frieza. Algum tratamento para as constantes crises de
solidão e suas consequências foi procurado em diversos consultórios, mas foram
deixados para trás por escolha própria. “Os tratamentos não funcionam. Na minha
infância tive problemas com a minha mãe, que é bipolar, e claro que isso
influencia a vida que tenho hoje. Como era muito pequena, provavelmente tá tudo
no subconsciente que eu não consigo acessar facilmente, por já ser travada.
Queria fazer hipnose, mas agora que eu e meu pai perdemos o emprego, não dá pra
gastar dinheiro com isso.” Ela largaria a faculdade que era prioridade, mas com
o passar do tempo, havia trazido a ela tédio e desinteresse, além de
dificuldade financeira. A única nuance positiva de seus últimos meses viria a
ser seu atual namorado, Pedro Pezte. Como artista e estudante de artes
plásticas, ele acredita no desregramento dos sentidos ditado por Rimbaud.
Porém, quando o questionei se Fernanda faria parte desse desregramento, a resposta
foi direta: “de maneira nenhuma. A Fernanda é minha paz.” Mas como toda a paz
tem um pouco de caos, em um dia de crise na relação, Fernanda tomou uma dezena
de comprimidos para depressão e um litro de vinho. Mesmo que todos percebessem
as dificuldades psicológicas, é difícil não interpretar a situação como
egoísmo. Fernanda ficou internada em um hospital psiquiátrico por alguns dias,
dopada de remédios. Ela me contava que quando saísse de lá faria jantares
amigáveis e tentaria passar mais tempo com seus familiares, mas acho que eram
os remédios. Ela reatou seu namoro e alguns meses depois disso foi passar uma
semana na Argentina. Antes de ela viajar tivemos outra conversa: ela me disse
que, afinal, ainda estava fazendo o que sempre fez: tentando se encontrar.
Enquanto tudo isso acontece,
Benjamin cresce. “Meu medo é que isso passe e ela se arrependa profundamente de
não ter passado o pouco tempo que temos com as pessoas que ela ama,
principalmente com seu próprio filho”, diz Carlos, pai de Fernanda. Quando a
questionei sobre isso para a entrevista, recebi a mesma resposta que ela me deu
informalmente: “eu amo o Benjamin e quero passar tempo com ele, mas não consigo
me sentir bem assim. Se eu não descobrir uma forma de me amar, para acabar com
a minha solidão, a minha família e as outras pessoas não vão conseguir também.”
O menino, que gosta de Galinha Pintadinha e dançar e cantar, provavelmente não
entende o que acontece.
Fernanda carrega em suas costas o
peso de uma geração que vive de aparências. O armário entupido de roupas é um
reflexo da política e da sociedade entupida de leis e comodismos que só servem
para enfeitar os dias e para acharmos que está tudo bem. O fim do torpor social
coincidiu com o fim do torpor que havia tomado conta dela. Fernanda foi
percebendo que tatuagens e camisetas não eram o suficiente para se expressar.
Depois das paredes do quarto rabiscadas com poemas, foi a vez dos cartazes:
desde a primeira manifestação do Movimento Passe Livre ela está presente.
Quando nos encontramos para a última conversa desse perfil, Fernanda parecia
outra pessoa. Estava com raiva e ódio do que ocorreu no ato mais violento feito
pela polícia: desmaiou com o gás lacrimogêneo, quase foi pisoteada e estava
junto com uma jornalista que recebeu uma bala de borracha no olho. Estava sem
maquiagem e com as roupas sujas. Eu
percebi, então, que ela era movida pelas paixões Descarteanas: amor, ódio,
alegria, tristeza. Em cada momento de sua vida um desses sentimentos estava
presente, e ela o deixava reinar totalmente. Fernanda é a representação em vida
da música Amor, reine sobre mim, do The Who:
“Only love / Can
bring the rain / That makes you yearn to the sky / Only love / Can bring the
rain / That falls like tears from on high”
Seja ela um retrato da sociedade, das
experiências trágicas ou mágicas que temos em vida ou das paixões Descarteanas,
Fernanda é a concretização de uma das mais importantes revelações que já
presenciei. Em uma quarta-feira qualquer, um professor disse em aula algo que
viria a ser certa libertação para mim. É difícil dialogar com pessoas que a
gente não consegue entender completamente porque as vontades e valores são
diferentes ou opostos. Enfim, ele disse: “as pessoas são o que elas são, e que
assim sejam.” Como diria um amigo meu, “escrever é viver e sentir”, e foi assim
que tracei o caminho para escrever sobre Fernanda: parei de tentar entender
coisas que provavelmente nunca entenderia, e fui sentir sua vida. As pessoas
são o que são e que assim sejam, por favor. Não sei onde Fernanda nasceu, mas
ela me disse onde vai morrer, parafraseando Caetano Veloso:
“Um dia vou morrer / De susto, de bala ou vício / Mais apaixonado
ainda / Dentro dos braços da
camponesa / Guerrilheira,
manequim, ai de mim / Nos braços
de quem me queira”
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