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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Ana Carolina Silva


A vida sem efeitos sonoros


Quarta-feira, final da tarde em São Paulo. O por do sol simboliza a passagem do dia nublado para a noite fria. Therezinha Rosa me recebe em sua casa, na Zona Norte da cidade, e mostra-se emocionada pela oportunidade de me contar sua história. Apesar de pedir para que eu não repare na bagunça, ela se diz muito contente com a reforma recente que foi feita em sua casa, com a ajuda dos filhos e de um genro.
A senhora de 78 anos, de cabelos curtos e castanhos, vestia uma roupa confortável e quente. A acolhedora e aconchegante sala de sua casa exibia, como trilha sonora, uma televisão ligada e sintonizada na novela. Reparo que ela faz uso da ferramenta “closed caption”, ou seja, legendas ocultas disponibilizadas pela própria emissora e que podem ser ativadas a qualquer momento. O motivo é simples: Therezinha tem problemas auditivos. No entanto, essa informação é rasa demais perto de sua incrível e exemplar trajetória.
Ela e seus sete irmãos (dentre eles, apenas uma menina, Cecília) nasceram na pequena cidade de Campos do Jordão, interior do estado de São Paulo. A mãe das crianças, Maria Joaquina, faleceu devido a complicações cardíacas, deixando Therezinha (então com apenas 2 anos de idade) aos cuidados da irmã mais velha.
Ela me explicou que sua relação com o pai (Abílio) era distante, pois ele mantinha uma jornada de trabalho intensa e, durante o tempo livre, precisava dividir sua atenção entre os oito filhos. No entanto, os homens da casa foram obrigados a cuidar da caçula quando Cecília, aos 15 anos, decidiu se mudar para a capital paulista em busca de trabalho.
Mas o pior ainda estava por vir: aos 7 anos, Therezinha começou a sentir dores fortes em seus ouvidos e foi levada pelo pai ao hospital público da cidade. A precária estrutura e a falta de preparo do médico fez com que este lhe dissesse que não havia nada que pudesse ser feito: a menina eventualmente perderia a audição. Seu pai, conformado com o infeliz diagnóstico, levou a filha de volta para casa.
Resignada, ela então passou a tomar medicamentos para evitar as dores e posteriormente completou o ensino primário (grau de escolaridade mais elevado que alcançou, apesar de garantir que sempre gostou muito de ler – afirmação confirmada pela quantidade de livros que notei espalhados por sua casa). Assim como sua irmã, também saiu de casa aos 15 anos com um destino em mente: São Paulo, a capital das oportunidades. Após conseguir trabalho como copeira em casas de família, Therezinha decidiu procurar, por conta própria, uma segunda opinião médica.
Nesse momento, a senhora abaixa o tom de voz e, visivelmente incomodada pela lembrança, repete para mim o que o novo médico havia lhe dito: se seu pai não tivesse se conformado com o diagnóstico recebido em Campos do Jordão e decidido procurar outro profissional, ela poderia ter sido curada. Mas àquela altura, nada mais poderia ser feito para reverter seu quadro clínico.
Então, ainda em uma idade tão jovem, ela teve que passar por cima da própria tristeza e seguiu em frente. Nas casas em que trabalhava, aprendeu muitas coisas de forma autodidata; principalmente a arte da costura, que viria a ser fundamental em sua vida.
Aos 19 anos de idade, conheceu seu futuro marido, Guido Jorge. Ele era metalúrgico e ambos trabalhavam em locais próximos. Eles namoraram durante pouco tempo, e Therezinha me explicou o motivo, como quem conta um segredo: naquela época, os namoros eram mais respeitados quando eram curtos e imediatamente seguidos pelo casamento. Se durassem muito, a moça era comumente julgada pela sociedade (e pressionada pela família); e o fato de que a minha perfilada morava sozinha só aumentou a urgência para que se casassem logo. O que enfim fizeram, em 1956, quando a moça tinha 21 anos.
Nessa fase de sua vida, o problema auditivo ainda não era um obstáculo; mas as dores indicavam que o tempo poderia dificultar as coisas. Quando perguntei se ela sabe de alguma coisa que possa ter agravado um problema até então inofensivo, Therezinha me disse que acha que os trabalhos de costura que realizava só complicaram ainda mais a situação, pois as máquinas utilizadas faziam um barulho incômodo.
Um ano após o casamento, ela teve sua primeira filha: Marisa. Os outros três filhos vieram em intervalos de dois em dois anos: Marlene, em 59; Osvaldo (que ela carinhosamente chama de “Dinho”), em 61; e a caçula Márcia, em 63. Perguntei se algum deles deu muito trabalho na infância, e a senhora, rindo, me disse que as crianças eram mais fáceis antigamente.
Dentre os anos dos nascimentos das crianças, seu marido aproveitou o conhecimento que havia obtido trabalhando e montou uma empresa metalúrgica em parceria com o irmão, Juvenal. Tudo parecia correr bem, até que Guido se envolveu com apostas de turfe – nome do esporte popularmente conhecido como corrida de cavalo –, que se tornaram um vício. Para conseguir o dinheiro necessário para sustentar isso, ele vendia uma máquina por vez para seu irmão. E a senhora fala do cunhado com carinho: graças a ele, a família não ficou sem ter onde morar. Ele havia comprado uma casa que fora colocada no nome de Guido, e todo mês pagava a prestação (como parte do dinheiro que deveria dar ao irmão pelos lucros da empresa). Graças à solidariedade de Juvenal, as crianças puderam crescer na casa própria, onde a minha perfilada mora até hoje e tão gentilmente aceitou me receber.
Em 1970, Guido parou de trabalhar de vez devido ao reumatismo que desenvolveu. Dessa forma, a família já não contava mais com parte de sua renda mensal, então Therezinha teve que trabalhar mais para sustentar a casa e os quatro filhos pequenos. Costurando e lavando roupas para outras famílias, muitas vezes ela encontrou preconceito nas casas em que trabalhava. Segundo ela, alguns deles não entendiam suas limitações, e houve até mesmo desrespeito por parte de algumas crianças. Mas mesmo com esses obstáculos, ela não amoleceu, e hoje é uma inspiração para os filhos. Por ora, me despeço da minha entrevistada e combinamos um segundo encontro.
Dois dias depois, dessa vez na praça de alimentação do shopping Pátio Paulista, estamos prontas para retomar a conversa. Pergunto se o rumo que seus filhos tomaram na vida lhe é motivo de orgulho e satisfação. Ela me garante que sim, e me conta que as conquistas de seus filhos lhe renderam a realização de alguns de seus sonhos pessoais, como o de fazer uma viagem internacional.
Therezinha me conta que sua vida deu outra sacudida em 1981, quando sua filha Marlene, então com 22 anos, conseguiu um trabalho temporário na Alemanha (mais precisamente em Munique, capital do estado federal da Baviera). Embora o contrato com a multinacional fosse de apenas seis meses, a jovem tinha planos de permanecer lá mesmo após esse período. E esse sonho foi realizado quando conseguiu uma vaga na ótima Universidade de Munique (em alemão, Universität München). Nesse meio tempo, começou a namorar o alemão Geoffrey Stephani, um advogado entusiasta do estudo de idiomas que já era fluente na língua portuguesa. Como Marlene não podia mais trabalhar e se sustentar sozinha em um país diferente, o namorado a convidou para morar com ele.
Dois anos depois, ela convidou a mãe, Therezinha, para visitá-la na Alemanha e, assim, fazer a sua primeira viagem internacional. E foi com grande orgulho que ela recebeu esse convite e teve a chance de testemunhar os frutos de todo o esforço que fez em sua vida e na criação de seus filhos.
Ela me contou que nos anos que se seguiram, o peso em suas costas foi diminuindo conforme seus filhos adquiriam estabilidade em suas vidas. Os casamentos e a chegada dos oito netos trouxe tranquilidade à senhora, além da prazerosa sensação de missão cumprida. Atualmente, Marlene reside em Valência, na Espanha, e é mãe de dois alemães adolescentes. Ela conversou comigo por meio de uma videoconferência na internet e falou sobre Therezinha com visível admiração: “A força de vontade que ela sempre demonstrou é o que me dá força para superar qualquer obstáculo que possa surgir em minha vida. Mesmo com as dificuldades, ela nunca deixou de ser uma mãe carinhosa com todos nós, nunca perdeu a alegria”.
O primeiro semestre de 2002 tinha tudo para ser impecável e cheio de festa, pois enfim possibilitaria que a família inteira se reunisse em solo brasileiro. No entanto, uma notícia lamentavelmente triste decidiu atrapalhar toda a carga de felicidade presente. O dia 1º de abril, caracterizado como o “dia da mentira”, trouxe uma infeliz verdade: um infarto havia tirado Guido do convívio com a família.
“Foi um momento muito difícil para todos nós, mas a nossa mãe soube que precisava ser forte por todos nós. Levantar a cabeça foi o único jeito que encontramos pra família conseguir se reerguer. Até em um momento de pura tristeza, ela nos colocou em primeiro lugar”, explica Márcia, a caçula.
Assim como tudo de ruim que já acontecera na vida de Therezinha, o luto teve que ser superado, embora jamais esquecido. A aposentadoria lhe permitiu parar de trabalhar, e ela me conta que hoje viaja pelo Brasil com a companhia de grupos formados por pessoas da terceira idade (“Na verdade, é a melhor idade!”, ela se corrige sorrindo), e que paga as passagens com as próprias economias. Ela também afirma que a Igreja Católica é a sua principal aliada na busca pela tranquilidade e paz pessoal.
Para que ela ouça o que alguém diz, é necessário que essa pessoa fale alto para superar a deficiência auditiva, minimizada com o uso de aparelhos. No entanto, isso não a impede de viver a vida da melhor forma: “Pensamentos negativos são como âncoras, e eu acredito que estamos aqui pra sentir o vento nos cabelos. E já que o nosso tempo é curto, não sou eu que vou me diminuir, não é?”, diverte-se Therezinha.
Ao todo, já foram 11 viagens internacionais. A próxima está marcada para este mês de junho de 2013, e o destino é a América do Norte, com a companhia de sua filha Márcia. A vontade de conhecer os Estados Unidos reflete em sua alegria e ansiedade. Na praça de alimentação barulhenta do shopping, ela tira da bolsa um pequeno calendário, no qual vem fazendo a contagem regressiva para a realização de mais esse sonho. Então eu lhe digo que os americanos tem sorte de recebê-la.
Nesse caso, o azar é todo do Brasil, que vai ter que se virar por um mês sem o brilho, a força e a alegria dessa senhora, capaz de provar dia após dia que a terceira idade é, realmente, a melhor idade. Mas o importante é que Therezinha Rosa, guerreira e sorridente cidadã do mundo, não pretende abrir mão da bandeira verde e amarela, pela qual se declara apaixonada. Ufa.

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