A vida sem efeitos
sonoros
Quarta-feira,
final da tarde em São Paulo. O por do sol simboliza a passagem do dia nublado
para a noite fria. Therezinha Rosa me recebe em sua casa, na Zona Norte da
cidade, e mostra-se emocionada pela oportunidade de me contar sua história.
Apesar de pedir para que eu não repare na bagunça, ela se diz muito contente
com a reforma recente que foi feita em sua casa, com a ajuda dos filhos e de um
genro.
A
senhora de 78 anos, de cabelos curtos e castanhos, vestia uma roupa confortável
e quente. A acolhedora e aconchegante sala de sua casa exibia, como trilha
sonora, uma televisão ligada e sintonizada na novela. Reparo que ela faz uso da
ferramenta “closed caption”, ou seja, legendas ocultas disponibilizadas pela
própria emissora e que podem ser ativadas a qualquer momento. O motivo é
simples: Therezinha tem problemas auditivos. No entanto, essa informação é rasa
demais perto de sua incrível e exemplar trajetória.
Ela
e seus sete irmãos (dentre eles, apenas uma menina, Cecília) nasceram na
pequena cidade de Campos do Jordão, interior do estado de São Paulo. A mãe das
crianças, Maria Joaquina, faleceu devido a complicações cardíacas, deixando
Therezinha (então com apenas 2 anos de idade) aos cuidados da irmã mais velha.
Ela
me explicou que sua relação com o pai (Abílio) era distante, pois ele mantinha
uma jornada de trabalho intensa e, durante o tempo livre, precisava dividir sua
atenção entre os oito filhos. No entanto, os homens da casa foram obrigados a
cuidar da caçula quando Cecília, aos 15 anos, decidiu se mudar para a capital
paulista em busca de trabalho.
Mas
o pior ainda estava por vir: aos 7 anos, Therezinha começou a sentir dores
fortes em seus ouvidos e foi levada pelo pai ao hospital público da cidade. A
precária estrutura e a falta de preparo do médico fez com que este lhe dissesse
que não havia nada que pudesse ser feito: a menina eventualmente perderia a
audição. Seu pai, conformado com o infeliz diagnóstico, levou a filha de volta
para casa.
Resignada,
ela então passou a tomar medicamentos para evitar as dores e posteriormente
completou o ensino primário (grau de escolaridade mais elevado que alcançou,
apesar de garantir que sempre gostou muito de ler – afirmação confirmada pela
quantidade de livros que notei espalhados por sua casa). Assim como sua irmã,
também saiu de casa aos 15 anos com um destino em mente: São Paulo, a capital
das oportunidades. Após conseguir trabalho como copeira em casas de família,
Therezinha decidiu procurar, por conta própria, uma segunda opinião médica.
Nesse
momento, a senhora abaixa o tom de voz e, visivelmente incomodada pela
lembrança, repete para mim o que o novo médico havia lhe dito: se seu pai não
tivesse se conformado com o diagnóstico recebido em Campos do Jordão e decidido
procurar outro profissional, ela poderia ter sido curada. Mas àquela altura,
nada mais poderia ser feito para reverter seu quadro clínico.
Então,
ainda em uma idade tão jovem, ela teve que passar por cima da própria tristeza
e seguiu em frente. Nas casas em que trabalhava, aprendeu muitas coisas de
forma autodidata; principalmente a arte da costura, que viria a ser fundamental
em sua vida.
Aos
19 anos de idade, conheceu seu futuro marido, Guido Jorge. Ele era metalúrgico
e ambos trabalhavam em locais próximos. Eles namoraram durante pouco tempo, e
Therezinha me explicou o motivo, como quem conta um segredo: naquela época, os
namoros eram mais respeitados quando eram curtos e imediatamente seguidos pelo
casamento. Se durassem muito, a moça era comumente julgada pela sociedade (e
pressionada pela família); e o fato de que a minha perfilada morava sozinha só
aumentou a urgência para que se casassem logo. O que enfim fizeram, em 1956,
quando a moça tinha 21 anos.
Nessa
fase de sua vida, o problema auditivo ainda não era um obstáculo; mas as dores
indicavam que o tempo poderia dificultar as coisas. Quando perguntei se ela
sabe de alguma coisa que possa ter agravado um problema até então inofensivo,
Therezinha me disse que acha que os trabalhos de costura que realizava só
complicaram ainda mais a situação, pois as máquinas utilizadas faziam um
barulho incômodo.
Um
ano após o casamento, ela teve sua primeira filha: Marisa. Os outros três filhos
vieram em intervalos de dois em dois anos: Marlene, em 59; Osvaldo (que ela
carinhosamente chama de “Dinho”), em 61; e a caçula Márcia, em 63. Perguntei se
algum deles deu muito trabalho na infância, e a senhora, rindo, me disse que as
crianças eram mais fáceis antigamente.
Dentre
os anos dos nascimentos das crianças, seu marido aproveitou o conhecimento que
havia obtido trabalhando e montou uma empresa metalúrgica em parceria com o
irmão, Juvenal. Tudo parecia correr bem, até que Guido se envolveu com apostas de
turfe – nome do esporte popularmente conhecido como corrida de cavalo –, que se
tornaram um vício. Para conseguir o dinheiro necessário para sustentar isso,
ele vendia uma máquina por vez para seu irmão. E a senhora fala do cunhado com
carinho: graças a ele, a família não ficou sem ter onde morar. Ele havia
comprado uma casa que fora colocada no nome de Guido, e todo mês pagava a
prestação (como parte do dinheiro que deveria dar ao irmão pelos lucros da
empresa). Graças à solidariedade de Juvenal, as crianças puderam crescer na
casa própria, onde a minha perfilada mora até hoje e tão gentilmente aceitou me
receber.
Em
1970, Guido parou de trabalhar de vez devido ao reumatismo que desenvolveu.
Dessa forma, a família já não contava mais com parte de sua renda mensal, então
Therezinha teve que trabalhar mais para sustentar a casa e os quatro filhos
pequenos. Costurando e lavando roupas para outras famílias, muitas vezes ela
encontrou preconceito nas casas em que trabalhava. Segundo ela, alguns deles
não entendiam suas limitações, e houve até mesmo desrespeito por parte de
algumas crianças. Mas mesmo com esses obstáculos, ela não amoleceu, e hoje é
uma inspiração para os filhos. Por ora, me despeço da minha entrevistada e
combinamos um segundo encontro.
Dois
dias depois, dessa vez na praça de alimentação do shopping Pátio Paulista,
estamos prontas para retomar a conversa. Pergunto se o rumo que seus filhos
tomaram na vida lhe é motivo de orgulho e satisfação. Ela me garante que sim, e
me conta que as conquistas de seus filhos lhe renderam a realização de alguns
de seus sonhos pessoais, como o de fazer uma viagem internacional.
Therezinha
me conta que sua vida deu outra sacudida em 1981, quando sua filha Marlene,
então com 22 anos, conseguiu um trabalho temporário na Alemanha (mais
precisamente em Munique, capital do estado federal da Baviera). Embora o
contrato com a multinacional fosse de apenas seis meses, a jovem tinha planos
de permanecer lá mesmo após esse período. E esse sonho foi realizado quando
conseguiu uma vaga na ótima Universidade de Munique (em alemão, Universität
München). Nesse meio tempo, começou a namorar o alemão Geoffrey Stephani, um
advogado entusiasta do estudo de idiomas que já era fluente na língua
portuguesa. Como Marlene não podia mais trabalhar e se sustentar sozinha em um
país diferente, o namorado a convidou para morar com ele.
Dois
anos depois, ela convidou a mãe, Therezinha, para visitá-la na Alemanha e,
assim, fazer a sua primeira viagem internacional. E foi com grande orgulho que
ela recebeu esse convite e teve a chance de testemunhar os frutos de todo o
esforço que fez em sua vida e na criação de seus filhos.
Ela
me contou que nos anos que se seguiram, o peso em suas costas foi diminuindo
conforme seus filhos adquiriam estabilidade em suas vidas. Os casamentos e a
chegada dos oito netos trouxe tranquilidade à senhora, além da prazerosa
sensação de missão cumprida. Atualmente, Marlene reside em Valência, na
Espanha, e é mãe de dois alemães adolescentes. Ela conversou comigo por meio de
uma videoconferência na internet e falou sobre Therezinha com visível admiração:
“A força de vontade que ela sempre demonstrou é o que me dá força para superar
qualquer obstáculo que possa surgir em minha vida. Mesmo com as dificuldades,
ela nunca deixou de ser uma mãe carinhosa com todos nós, nunca perdeu a
alegria”.
O
primeiro semestre de 2002 tinha tudo para ser impecável e cheio de festa, pois
enfim possibilitaria que a família inteira se reunisse em solo brasileiro. No
entanto, uma notícia lamentavelmente triste decidiu atrapalhar toda a carga de
felicidade presente. O dia 1º de abril, caracterizado como o “dia da mentira”,
trouxe uma infeliz verdade: um infarto havia tirado Guido do convívio com a
família.
“Foi
um momento muito difícil para todos nós, mas a nossa mãe soube que precisava
ser forte por todos nós. Levantar a cabeça foi o único jeito que encontramos
pra família conseguir se reerguer. Até em um momento de pura tristeza, ela nos
colocou em primeiro lugar”, explica Márcia, a caçula.
Assim
como tudo de ruim que já acontecera na vida de Therezinha, o luto teve que ser
superado, embora jamais esquecido. A aposentadoria lhe permitiu parar de
trabalhar, e ela me conta que hoje viaja pelo Brasil com a companhia de grupos
formados por pessoas da terceira idade (“Na verdade, é a melhor idade!”, ela se
corrige sorrindo), e que paga as passagens com as próprias economias. Ela
também afirma que a Igreja Católica é a sua principal aliada na busca pela
tranquilidade e paz pessoal.
Para
que ela ouça o que alguém diz, é necessário que essa pessoa fale alto para
superar a deficiência auditiva, minimizada com o uso de aparelhos. No entanto,
isso não a impede de viver a vida da melhor forma: “Pensamentos negativos são
como âncoras, e eu acredito que estamos aqui pra sentir o vento nos cabelos. E
já que o nosso tempo é curto, não sou eu que vou me diminuir, não é?”,
diverte-se Therezinha.
Ao
todo, já foram 11 viagens internacionais. A próxima está marcada para este mês
de junho de 2013, e o destino é a América do Norte, com a companhia de sua
filha Márcia. A vontade de conhecer os Estados Unidos reflete em sua alegria e
ansiedade. Na praça de alimentação barulhenta do shopping, ela tira da bolsa um
pequeno calendário, no qual vem fazendo a contagem regressiva para a realização
de mais esse sonho. Então eu lhe digo que os americanos tem sorte de recebê-la.
Nesse
caso, o azar é todo do Brasil, que vai ter que se virar por um mês sem o
brilho, a força e a alegria dessa senhora, capaz de provar dia após dia que a
terceira idade é, realmente, a melhor idade. Mas o importante é que Therezinha
Rosa, guerreira e sorridente cidadã do mundo, não pretende abrir mão da
bandeira verde e amarela, pela qual se declara apaixonada. Ufa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário