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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Victoria Matsumoto


Maria, Maria, é um dom, uma certa magia


 “Ela não gosta de fazer entrevistas!” Alertou Gabriella, enquanto sentava ao lado da mãe e tentava falar sobre seus projetos da faculdade de gerontologia. Com 22 anos, está em seu primeiro semestre na Universidade de São Paulo (USP) e é impossível não notar o orgulho que sua mãe carrega em cada palavra, em cada gesto, ao ver onde sua filha conseguiu chegar.
Maria Aparecida Hatsue é assim: aquariana, como ela mesma gosta de enfatizar, mulher, mãe e pai e mais um bilhão de emoções e pensamentos a toda hora. Seu carisma exala pelo cômodo e é difícil não se contagiar. Mais do que isso, ela traz aquela segurança que te faz querer contar toda sua vida e saber que ali você encontraria um refúgio, encontraria verdadeiramente alguém. Maria Aparecida sempre foi uma boa ouvinte e muito carismática, talvez seja por isso que carregue uma coleção de amigos e memórias queridas de uma juventude que passou e deixou marcas em seu rosto de 47 anos. Mas desta vez, ela trocou de lado. Por mais que sempre fosse vista por suas sobrinhas como uma contadora de histórias, afinal, para cada coisa que comia, tinha uma história de como surgiu o desejo de comprar aquilo, sua vida sempre foi ouvida, mas nunca propriamente contada.
“Olha, eu não gosta de dar entrevistas, sou muito ansiosa. Mas vamos acabar logo com isso” disse em tom de brincadeira, andando até o quintal para fumar um cigarro. Aliás, vício esse condenado pela filha, que a proíbe de fumar dentro de casa, onde além das duas, vivem mais a tia-avó e a mãe de Maria Aparecida, ou melhor dizendo, Cida. “Senta aqui fora, podemos ir adiantando o trabalho. O que você quer saber? Tudo? Mas tudo o quê? Tudo é muito”, adiantou-se apreensiva. Sentada na escada do quintal sob a luz de um sábado nublado, às 18 horas da tarde, entre uma tragada e outra, foi a primeira vez no dia em que conseguiu “relaxar”. A correria tinha começado pela manhã ao tomar um susto quando saiu para comprar pão e viu o andador de sua mãe, de 82 anos, revirado na varanda de seu quarto. “Pensei que a mulher tinha morrido. Quando subi desesperada, um pé estava esticado para cá e outro para lá”, Cida diz com seu típico bom humor, imitando a posição em que sua mãe se encontrava. Mas por mais que risse agora, carregou a preocupação com Dona Maria por todo o dia, já que ela havia caído e trincado três costelas na semana anterior. “Ela é muito teimosa, mal tinha levantado e já estava tentando andar sem o andador novamente”.
A preocupação constante e o ritmo de alerta a acompanha 24 horas por dia. Isso porque, juntamente com a filha, ela cuida de sua tia de 82 anos, Dona Laura, que “mais cuida da gente do que nós dela”, mas que também já sente o peso da idade, e de sua mãe, Dona Maria e dona também dos melhores comentários do mundo, que provém, principalmente, de sua falta de memória. As quatro vivem em um sobrado na Zona Norte, que apesar de espaçoso, “tortura” os anos carregados nas costas com suas escadas, que se encontram na entrada, no quintal e no caminho para os quartos. Mas aquelas pernas já estão acostumadas a subir e descer escadas, ladeiras e ruas. Afinal, a família tinha uma quitanda, no bairro do Brás, em São Paulo, e fazia entregas em locais como a Hospedaria do Imigrante, onde hoje se localiza o Museu da Imigração.
“Eu nasci em São Paulo em uma família de quatro irmãos, José Carlos, Sergio, José Luis e eu. Meus pais, Maria Teruya e José Matsumoto, eram simples, mas muito preocupados com os meus estudos. Meu pai era muito inteligente, embora tivesse baixa escolaridade, e sempre reforçava a importância dos estudos. Minha mãe também dizia que o conhecimento era a coisa mais importante que eu poderia ter e era ele quem me tiraria das situações ruins. Se bem que hoje eu contesto isso, vejo que também é bem importante ter dinheiro.” Cida brinca, rindo, enquanto olha para os lados e para cima, tentando se lembrar de mais detalhes daquela Maria Aparecida menina, de cabelo longo, preto e volumoso, com seus olhos nem tão puxados e ainda não emoldurados com óculos. Por mais que hesitasse em falar sobre sua vida, seu olhar agora divagava. Aquele olhar perdido no quintal era mais do que a melancolia, ou alegrias passadas nos oferecem. Era saudade. Agora se via uma mulher de 47 anos, o cabelo estava mais ralo e o preto destacava fios grisalhos nas laterais da cabeça. Além do mais, seus fios encaracolaram e ficaram mais rebeldes. Fisicamente, pouca coisa restou daquela menina aquariana que queria mudar o mundo. Mas a vontade continuava ali, resistindo à rotina que seu trabalho e companheiros da Polícia Civil ofereciam. Porque ela ainda não se esqueceu da jovem que se formou em jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo.
Terminando de fumar seu cigarro, convidou-me para entrar, já estava ficando frio e subimos para o quarto que divide com a mãe. Ele tinha duas camas de solteiro separadas por uma mesinha que acomodava o copo d’agua, algodão, caderninho e remédios da mãe. Também notei dois gibis da Turma da Mônica logo na cabeceira da Dona Maria, uma paixão que foi transmitida da avó para a neta Gabriella, que apesar de seus 22 anos, não abandonou a turma do Bairro do Limoeiro. O quarto é grande e bem iluminado com uma varanda, onde Dona Maria havia caído pela manhã. Cida senta na cama da mãe enquanto me ajeito em sua cama, ficando de frente para ela. Logo chega Gabriella, se acomodando do lado da mãe.
“Ela não gosta de fazer entrevistas”, alertou a menina com bom humor, enquanto a mãe concordava. Apressando as perguntas antes mesmo que eu as fizesse, começou a contar sobre sua infância, mas queria ficar longe de dramas mexicanos, rindo até do episódio em que quase morreu de escarlatina. “Olha, apesar de tudo, minha infância foi muito feliz. Sempre fui uma aquariana que era inconformada com as desigualdades sociais, sempre tive ideais. Eu queria fazer a diferença no mundo. Gostava de fazer amigos, mas também era uma criança muito doente. Aos oito anos quase morri de escarlatina. Lembro de ter uma febre muito alta e do médico ir em casa.  Aos 10 também tive uma convulsão.”
Apesar de situações que poderiam ser tratadas como traumáticas e dramáticas, Cida dá um ar despojado para o assunto e discute aberta e facilmente sobre doenças. Hoje já está mais calejada. A criança doente virou cuidadora, mesmo que não tenha sido por vontade própria, seguindo os mesmos passos do pai. “Meu pai...” ela hesita um pouco e seu olhar mudou. Não de forma penosa, mas um pouco dolorosa. Transformou-se naquele olhar vulnerável e saudoso que as pessoas adquirem quando amam algo que a morte pode levar. “Eu achava ele uma figura forte, que nos dava segurança. Fazia com que eu acreditasse que teria uma vida mais confortável se estudasse. Porque ele não teve essa oportunidade e não pode aproveitar as que teve. Passou a vida cuidando da família doente. Quando ele estava no exército teve que sair para cuidar de um irmão... Essa era uma posição que desde criança eu tinha pavor. Devotar minha vida inteira a cuidar dos outros, mas para você ver como a vida é engraçada, né?”. Pergunto se ela se vê ocupando o lugar que era de seu pai. “Sim, com certeza! Eu tinha pavor disso, era uma ideia que me assustava desde criança. Mas como você pode ver, a vida me trouxe esta surpresa” Cida brinca, apontando para Gabriella e já emenda, “eu aprendi com ele e isso que eu mais temia na minha infância aconteceu depois. Abri mão da minha vida para cuidar dos outros. Não acho isso legal, não é algo que as pessoas deveriam fazer. Após a morte dele, fiquei perdida por um ano, apesar da minha forte orientação espiritual, foi uma coisa inevitável. Mas tomei seu lugar e como prometido, fiquei tomando conta da minha mãe e da minha tia.”
Na época em que o pai faleceu, Cida trabalhava na Polícia Civil e ajudava seu primo a administrar uma gráfica, mas teve que desistir do segundo emprego para ficar mais tempo em casa. Conversando com aquela mulher, veio-me uma admiração súbita. No decorrer da conversa, ela mencionou uma prece de Chico Xavier, a quem admira e tem como mentor, que diz que não se pode mudar o começo, mas é você quem decide o futuro. E por mais que suas sobrinhas a vissem como uma eterna adolescente, foi ali que entendi o significado de crescer. Não é se tornar mais velho a medida que os anos passam, mas entender que nem sempre o futuro é como planejamos.
A história de Cida se assemelha com a de muitos jovens que encontro na faculdade de jornalismo. O mesmo ideal romântico de mudar o mundo, as mesmas tragadas nos cigarros de maconha e a crença de um futuro melhor, tanto para você mesmo quanto para o lugar onde vive. Mas o que acontece quando o tempo te sopra para direções diferentes? “Fui reprovada no último semestre do curso por causa de uma gravidez conturbada, mas me graduei em 1993, e com méritos!”.  Aquela jovem que entrou na faculdade em 1987 foi apresentada para um mundo bem diferente do que estava acostumada a ver da quitanda de seu pai na infância. “Aquela foi uma época muito feliz, nossa! Eu viajava, acampava, curtia um baseado, bebia, tinha muitos amigos! Eu era bicho grilo, saia de noite, ia para danceterias, barzinhos... Uma história que lembro bem foi eu estava voltando de uma viagem que fiz com amigos para Rezende, no Rio de Janeiro. Quando passamos por Visconde de Maua na volta, fomos parados por uma blitz policial e eu estava com um pacotinho de talco dado por um umbandista para proteger a mim e minhas amigas. Já dá para imaginar que os policiais acharam que era cocaína, né? Mas no final nem deu nada, mas lembro de ter ficada desesperada porque nesta época já trabalhava no Ministério Público.” Emprego o qual a ajudava a pagar a faculdade. Dali para a Polícia Civil foi um pulo. “Prestei o concurso para trabalhar na polícia porque o salário era maior e o horário mais flexível, assim eu também poderia estagiar na área de jornalismo. Nesta época é que fiz alguns trabalhos para a revista O Tira (periódico que tratava de assuntos policiais), mas quando decidi parar de trabalhar como funcionária pública para me dedicar apenas ao jornalismo, foi quando fiquei grávida”.
A gestação não planejada foi conturbada, não apenas pelo modo como a família reagiu, mas pelo pai ser dependente químico. “Quando você tem um relacionamento com alguém que se relaciona mais com a droga do que com você, é terrível. Você não sabe o que esperar amanhã, é muito instável. Por mais que ele quisesse aquela gravidez, não era alguém com quem eu podia contar”.  “Quando a família soube, houve uma grande discussão, porque nosso irmão mais velho não queria que ela ficasse em casa. Ainda mais porque na época havia a questão do preconceito de ser mãe solteira. Mas nossos pais não queriam que ela fosse embora, mas a condição seria não trazer seu namorado para conviver com a gente, porque ele não era bom, não trabalhava, ela era quem pagava todas as contas. Mas você sabe o que acontece quando se gosta de alguém...”, conta Sergio, o irmão do meio.  Na época, ele também estava morando com os pais por causa do rompimento dos tendões da perna direita.
“O nascimento da minha filha foi o dia mais feliz da minha vida, mas foi uma gravidez caótica porque meu namorado era dependente químico e eu estava no final da faculdade que eu tanto quis. Mas me senti realizada com aquilo, foi algo que mudou minha relação com o mundo. Eu passei a ser uma pessoa de mais fé, aprendia a ter força para enfrentar os obstáculos. Por mais que eu tivesse a opção de ter um parceiro, escolhi ser mãe solteira para ter mais paz, mais liberdade para criar minha filha em um ambiente mais tranquilo”. O preconceito era consequência já prevista, mas foi uma escolha. “Sempre sofri, mas também sempre soube lidar. Nunca senti falta de um marido. Era algo com que eu estava resolvida. Sempre passei por isso tranquilamente, me sentia forte o suficiente para lidar com a situação”. E quando diz que tudo valeu a pena pela Gabriella, é fácil de acreditar.
A gravidez não foi o único período difícil na criação da filha. Gabriella foi diagnosticada com déficit de atenção na infância, então foi uma luta até sua graduação. Mas a mãe estave sempre lá. Seja para contar histórias para a filha assimilar melhor a matéria, correr para comprar os materiais para os trabalhos, ou para lutar com ela contra o bullying. Na oitava série, quando tinha 14 anos, Cida se viu em uma situação complicada quando a filha começou a receber ameaças e a ser debochada tanto no colégio quanto online. “A gente nem sabia o que era bullying e a coordenação do colégio também não ajudou. Foi muito difícil. Nessa época também estava passando por uma situação financeira complicada, e como sou espírita, acredito em Chico Xavier, que sempre me ajudou quando precisei. Porém, naquele tempo sentia como se ele tivesse se esquecido de mim e estava desamparada. Lembro que tive que ir ao colégio da minha filha conversar com a diretora sobre as possibilidades de receber uma bolsa para que ela continuasse os estudos e conversar sobre tudo o que estava acontecendo. Naquela noite eu rezei e perguntei ao Chico se ele havia se esquecido de mim e para me dar forças. No dia da reunião, emociono-me ao lembrar, pois a diretora, Irmão Heloína, foi muito atenciosa e prestativa. Não só quitou minhas dívidas como concedeu bolsa integral à Gabriella. Sou muito grata a ela. A coordenação era péssima, mas aquela mulher nos ajudou muito. Lembro que fui correndo contar a novidade para meu irmão mais novo. Chegando lá, antes mesmo que dissesse o que tinha acontecido, ele mostrou uma prece que um cliente havia deixado há pouco e que era muito bonita. Quando ele me entregou o papel, era a benção de Chico Xavier Nasceste no lar que Precisavas, que dizia que Deus não nos dava uma missão maior do que podemos suportar. Naquela hora me ajoelhei e agradeci, porque o Chico esteve ali e deixou seu recado para mim. Faço questão que escreva isso, porque foi um marco em nossa história e meu deu forças para lutar com a Gabriella”.
Anos mais tarde, Cida descobriu que a filha tinha lúpus, “foi o pior dia da minha vida, fiquei revoltada. Porque por mais que ela carregasse esse gene, acredito que o bullying ajudou a desencadear a doença”. Mas como em todas as ocasiões de sua vida, ela se agarrou na fé. “Não sei o que seria de mim sem minha mãe. Ela nunca deixou faltar nada em casa, fez um papel de pai melhor do que ninguém e me ajudou a conquistar tudo o que tenho hoje”. Relata a filha, que mostra uma admiração pela mãe, que esteve ao seu lado para presenciar o dia em que passou na Universidade de São Paulo (USP) em gerontologia. A emoção não foi pouca, por todas as batalhas que as duas enfrentaram juntas. “Por outro lado, sua superproteção também desenvolveu este lado dependente meu, acho que ela nunca me deixou crescer por completo. Se ela não estivesse lá para me apoiar sempre e fazer tudo por mim, talvez hoje eu fosse alguém mais independente”, acrescentou Gabriella.
Se tem um substantivo que define bem Cida é “Maria”, a que aparece na canção de Milton Nascimento, Maria, Maria. Diante de todas as suas lutas, “quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida”. Sua vida não foi como ela sonhou, é surpreendente saber que aquela mulher não tem orgulho de quem se tornou hoje. “Tenho consciência deque você tem que ter tempo para os outros e para você. E eu abri mão de tudo. Acho que fiz isso para me redimir com uma família que sempre julgou meus atos, por ter ficado grávida de um dependente químico... Pela minha insegurança, nunca quis abrir mão de ser funcionária pública para trabalha na área que eu tanto quis, que era o jornalismo. Arrependo-me de não ter arriscado, de ter se acomodado. Minha ansiedade, o possível diagnóstico de bipolaridade, isso me prejudicou bastante. Se tivesse noção dessas disfunções quando eu era jovem, acho que teria me tratado e teria coragem de ter outro futuro”. Pois para aqueles que ouvem essa história, só acreditam mais ainda que “quem traz no corpo a marca Maria, Maria, mistura a dor e a alegria”. 

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