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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Camila Forte


Por trás das câmeras de Wisnik


“Finalmente você conseguiu vir, Camila! Ele estava ansioso”, disse a esposa de Humberto Wisnik, dona Dirce Wisnik, após abrir a porta de seu apartamento localizado na região do Campo Belo, na zona sul de São Paulo. No pequeno hall, pude ver fotos de crianças e adultos sorrindo, além de um olho mágico bem grande posicionado no meio da porta. Quem atendeu foi o senhor Humberto, o meu futuro entrevistado. Porém, as primeiras palavras, que mais pareciam gritos de uma voz bastante aguda, foram de dona Dirce. Iniciei este texto com elas.
Com uns óculos enormes no rosto cobrindo olhos verdes e cansados, um suéter cor verde musgo e ralos cabelinhos brancos na cabeça (que não escondem os bons - mais de- 70 anos já vividos), Humberto me atendeu com delicadeza e atenção. “Seja bem-vinda”, disse. Dei uma breve olhada à minha volta e vi uma sala espaçosa separada em “mesa de jantar” e “sofás com mesa de centro e uma televisão”, formando uma salinha de estar. Era lá que nós nos acomodaríamos, pensei. A televisão estava ligada no canal Bandeirantes e o volume estava bem alto. “Ah, você vai gravar, Camila? Melhor abaixar o volume, né, Humberto?”, disse dona Dirce, com sua voz fina e em alto e bom tom. Seu Humberto caminhou até a mesa de jantar pouco iluminada e tirou dois livros de cima dela que estavam intitulados: “Record” e “Rede Record 50 anos”, e balbuciou baixinho: “talvez precise, não sei”. Nós dois sentamos na sala de estar, com dois sofás brancos, em frente à televisão (agora com volume baixo). “É uma história comprida. Trabalhei na televisão por 50 anos”.
Os dois sofás formavam um L. No que eu estava sentada, de frente para Humberto, conseguia ver perfeitamente a decoração simples e delicada atrás desse senhor de idade. A sua direita, tinha uma planta verde e longa, sustentada por um vaso mediano no chão. A sua esquerda, um quadro de uma mulher, linda, e bailarina. “Quem é, seu Humberto?” “É a Dirce, Camila. Na época do Ballet.” E não contou mais.
O trabalho na televisão “consumiu” boa parte da vida de Humberto e, por isso, a sua gana de falar do trabalho ia além de contar quaisquer histórias sobre a vida pessoal: “Meu trabalho era a minha vida, tanto que conheci a Dirce justamente por causa dele”. Humberto Wisnik trabalhou na Record. Até chegar lá, ele conta: “Sou de santos, vim pra São Paulo pra fazer cursinho e CPUR. Ia fazer engenharia, mas, na verdade, quem queria isso era o meu pai, que estimulava a mim e aos meus irmãos a ter um diploma na parede”.


Passaram-se uns 10 minutos de conversa, e percebi que olhinhos redondos verdes assustados me observavam: “Ah, é a XXX, Camila, irmã da Dirce. Vem falar oi pra menina, XXX.” Sem pronunciar uma palavra se quer, ela continuou parada e me levantei para beijar-lhe o rosto. A senhora dos olhos claros mora com o casal e sofre de esquizofrenia. Durante a toda a conversa, nos deparávamos com sua voz ao fundo. “São os amigos imaginários, não liga não”. E não liguei.
“Uns amigos disseram que na Record precisavam de câmera. E lá é bom pra fazer bico, né?”, conta. “O bico quer dizer: vim pra estudar e fazer o CPUR. Passei pela Record, fiz um curso qualquer lá e comecei”.  Isso foi em 60. Naquele ano, Humberto tentou entrar na Poli para fazer a tal da engenharia, mas não conseguiu.
Fazia os programas da época, e só existia TV ao vivo. Não existia gravação, vídeo tape. “A gente chegava lá às 11 da manhã e saía meia noite e meia”. Em meio a tossidas que pausaram por instantes a nossa conversa, o câmeraman aposentado contou que até os comerciais eram ao vivo, era a época das garotas propaganda. Outras pausas tomaram conta da nossa conversa, mas, dessa vez, com um objetivo diferente: “Gosto de dizer que a televisão era mais romântica naquela época, não era tão industrial. Era algo mais leve e solto, embora fosse ao vivo. Hoje em dia tudo é gravado, parece que não existe mais aquele contato”, relatou seu Humberto, saudosista. “Você se lembra de algum, seu Humberto?”, perguntei. “Orniex, que era detergente, ODD; Casa Zacarias e, ah, muitos outros”.
Peço para o meu entrevistado contar um pouco mais sobre a televisão na época que tanto apreciava (os famosos anos 60, década de reviravoltas musicais e revoluções). “Lá na Record existia um restaurante enorme que ficava no terceiro andar do prédio. Serviam comida, petisco e até uísque... então todo mundo se concentrava nesse restaurante. Era uma época muito boa essa minha, e da Dirce também, que depois de alguns anos eu conheci por lá”.  Era possível encontrar Adoniran Barbosa, Isaurinha Garcia, Agostinho dos Santos e Blota Júnior, por exemplo, reunidos bebendo uma cerveja, tomando um lanche, jogando dominó e xadrez. Humberto contou que no canto do local havia uma televisão grande que mostrava a programação da TV Record: “A pessoa estava ali e sabia que dali meia hora, quarenta minutos, ia ter que descer pro estúdio e apresentar alguma coisa”.

 “Tinha também os programas do Newton!”, interrompeu Dirce. “Ah, mas isso é depois! To começando do começo, Dirce!” retrucou Humberto. “Eu vou tomar injeção, ta bom?”, disse a senhora.  “Tá, vai com Deus, tchau”.
Retomando a nossa conversa, Humberto resolveu me contar, mesmo que bem pouco, da sua vida paralela ao trabalho: “Deu um ano e fiz vestibular novamente. E dessa vez passei no Mackenzie. Porém, minha classificação não deu pra civil, então entrei pra engenharia metalúrgica. Então, eu fazia: engenharia no Mackenzie, CPUR em Santana e trabalhava como câmera na TV, que ficava aqui no Aeroporto de Congonhas. Resumindo: Não estava fazendo nada direito”.
Mais uma longa tosse deu lugar às palavras na nossa conversa. “Eis que me promoveram, por um motivo lá, pra diretor de TV da Record!”. Rimos com esse “por um motivo lá”, e Wisnik tentou explicar que, naquela época, tinham sete diretores de TV na Record. O primeiro, mais ban ban ban, era o Tuta: filho do Paulo Machado de Carvalho, dono da Record. Aí tinha o Newton Travesso, o Randal Juliano e Salvador. “Precisavam de mais um diretor de TV pra fazer uma programação mais à tarde, que eles não queriam fazer. Chamaram-me e eu topei na hora. Mas eu deveria largar a faculdade: e larguei. Metalurgia não me interessava muito mesmo. Comecei como diretor um dia depois que me chamaram”, disse. “Um dia ainda volto no Mackenzie pra pegar meus papeis de colegial!”, completou, rindo.
Como diretor de TV, o ex-câmera fazia os programas: Jornal da Mulher, Jornal do meio dia, e outros, além de colocar filmes no ar também. Isso sem contar as propagandas feitas ao vivo que precisavam também de uma direção. E os desenhos infantis, que eram feitos pelos atores vestidos de Super-heróis. Curiosa, perguntei a ele como lidavam com erros na televisão, já que era ao vivo como o teatro: “Ah, se era um erro, a gente chamava o ‘padrão’ – era só puxar o padrão, um slide que estava escrito CANAL 7 TV RECORD. No fundo, colocavam uma música. Era isso aqui, ó...”, Humberto pegou um dos livros nas mãos e, com muita calma, folheou-o até encontrar a página que ilustrava o que ele tinha acabado de me contar.  Tudo era feito ao vivo e com pouco recurso. “Era uma época muito boa”, balbuciou.
 “Alguém ligou?”, perguntou a voz fina. “Não, Dirce”. A esposa havia retornado da injeção e foi direto para a cozinha esquentar a janta da XXX.
Três anos como cinegrafista, e mais um restante como diretor de TV, produtor e gerente de programação. Nesse último cargo, o objetivo do seu Humberto era de cuidar da Estação no Ar. “Em 78, entrei pra uma área que fiquei até ‘agora’, final de 2008, que era de direção de eventos; comecei com a Copa do Mundo na Argentina e participei da organização, mas não fiquei em Buenos Aires. Fiz a montagem da infraestrutura necessária para a transmissão da Copa aqui no Brasil. Sinal de Satélite, linhas da Embratel de coordenação, comunicação com o nosso estúdio em Buenos Aires”. Em 82, o diretor participou da transmissão da Copa da Espanha, mas a Record não tinha direito e a Globo ficou com exclusividade de imagens. A Record fez o seguinte: pegou o Silvio Luís, narrador bastante conhecido e assim criou: “VEJA a copa na Globo e OUÇA o Silvio Luís na Record!”.
Em 1998, Humberto sai da Tv Record, após muitos anos na emissora: “Fui pra TV Manchete e fiquei 3 anos por lá: eu era gerente de programação e produção da Manchete São Paulo. Só que acontece que a Manchete estava em uma situação ruim. Não tínhamos aumento, não estava nada muito bom. Fui então convidado então para trabalhar na Finish House, uma produtora de comerciais. Me pagavam melhor, e ficava a 3 minutos de casa, o que era ótimo”. No entanto, as relações entre Humberto e os colegas de trabalho não eram das melhores.
“Fui então chamado, em 92, pelo Galvão Bueno pra trabalhar em Curitiba numa produtora chamada PGB, que produzia conteúdo de esporte pra CNT. Aí eu falei com a Dirce que o Galvão tinha me chamado pra conversar e ela só falou: vai lá e vamos embora!”. Acontece que, naquela época, o filho mais velho, Adriano, estava terminando o ITA e a Melissa, a mais nova, estava no último ano do colegial do Bandeirantes. Humberto foi pra Curitiba em julho e teve que ficar sozinho por lá. Isso até o final do ano e a Dirce “pegar as coisas” e ir também. “Ficamos até 95 em Curitiba. O dinheiro começou a ficar curto para eles (da produtora) e acabei voltando pra Record em São Paulo pra cuidar de eventos, o que eu gosto de fazer”.
 O intuito de Humberto Wisnik era ficar até o ano de 2010 na Record, o que permitiria que ele completasse 50 anos de televisão, uma boa hora para parar. “Fiquei até 2008 porque eles já não me quiseram mais”, afirmou com um sorriso pálido e entristecido no rosto. “E tudo terminou em 2008. Me aposentei e aqui estou.”  
- O senhor sente falta dessa rotina?
- Não.
- Não? (Me espantei com um senhor tão saudosista dizendo isso)
- Não. Eu acumulei muita experiência nessa área de transmissão de eventos, inclusive muita decepção (da época mais recente). E ali na Record a situação era a seguinte: “Nós queremos fazer melhor que a Globo, (ótimo), mas não queremos gastar nada”. Portanto, é impossível fazer melhor que a Globo. Na Copa de 98, eu estava cuidando de tudo sozinho. Onde, na Globo, tem uma equipe, na Record só tinha eu. Eu cuidava de: satélite pra trazer a imagem da França pro Brasil, linhas de coordenação, montar um estúdio lá, hospedagem do pessoal. Eu tinha que saber organizar e fazer um cronograma de qual voo sai de qual aeroporto; quando chegarem lá, tal van estará esperando no aeroporto da França; chegando na recepção, fulano fica com ciclano no quarto xis. Era muita coisa pra uma pessoa só cuidar, o que impossibilitava de fazermos um evento com uma qualidade incomparável.
Por último, eu quis saber da dona Dirce. Como eles haviam se conhecido de fato? “Você quer saber da dona Dirce?”, disse. “Sim, muito”, respondi. “A Dirce era bailarina do corpo de baile da Record. Quando eu trabalhava como câmera, fazia CPUR e engenharia no Mackenzie, a conheci. Uma vez, quando a gente passou pelo estúdio, estava tendo ensaio e alguém falou: ‘tem uma menina nova no ballet!’. Eu tinha 20 anos nessa época. Fomos, então, vê-la. Ela estava de bob, lenço na cabeça, malha cor de carne, pulando lá no meio das outras. Quando já estavam todas penteadas, elas foram tomar uma lanche e aí eu fui chegando perto...aí nós noivamos e ficamos juntos por muitos anos”.
A voz aguda apareceu de novo atrás de nós: “Eu parei o ballet porque no meio de uma apresentação caiu um cenário na minha cabeça e rachou. Tive que ir pra Beneficência e tomei 15 pontos, além de quebrar a clavícula. Minha sorte é que não tive sequela nenhuma. Mas é isso aí, estamos juntos e apaixonados até hoje”, disse dona Dirce, a bailarina do quadro do canto esquerdo. 

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