Por trás das
câmeras de Wisnik
“Finalmente você conseguiu vir, Camila!
Ele estava ansioso”, disse a esposa de Humberto Wisnik, dona Dirce Wisnik, após
abrir a porta de seu apartamento localizado na região do Campo Belo, na zona
sul de São Paulo. No pequeno hall, pude ver fotos de crianças e adultos
sorrindo, além de um olho mágico bem grande posicionado no meio da porta. Quem
atendeu foi o senhor Humberto, o meu futuro entrevistado. Porém, as primeiras
palavras, que mais pareciam gritos de uma voz bastante aguda, foram de dona
Dirce. Iniciei este texto com elas.
Com uns óculos enormes no rosto cobrindo
olhos verdes e cansados, um suéter cor verde musgo e ralos cabelinhos brancos
na cabeça (que não escondem os bons - mais de- 70 anos já vividos), Humberto me
atendeu com delicadeza e atenção. “Seja bem-vinda”, disse. Dei uma breve olhada
à minha volta e vi uma sala espaçosa separada em “mesa de jantar” e “sofás com
mesa de centro e uma televisão”, formando uma salinha de estar. Era lá que nós
nos acomodaríamos, pensei. A televisão estava ligada no canal Bandeirantes e o
volume estava bem alto. “Ah, você vai gravar, Camila? Melhor abaixar o volume,
né, Humberto?”, disse dona Dirce, com sua voz fina e em alto e bom tom. Seu
Humberto caminhou até a mesa de jantar pouco iluminada e tirou dois livros de
cima dela que estavam intitulados: “Record” e “Rede Record 50 anos”, e
balbuciou baixinho: “talvez precise, não sei”. Nós dois sentamos na sala de
estar, com dois sofás brancos, em frente à televisão (agora com volume baixo).
“É uma história comprida. Trabalhei na televisão por 50 anos”.
Os dois sofás formavam um L. No que eu
estava sentada, de frente para Humberto, conseguia ver perfeitamente a
decoração simples e delicada atrás desse senhor de idade. A sua direita, tinha
uma planta verde e longa, sustentada por um vaso mediano no chão. A sua
esquerda, um quadro de uma mulher, linda, e bailarina. “Quem é, seu Humberto?”
“É a Dirce, Camila. Na época do Ballet.” E não contou mais.
O trabalho na televisão “consumiu” boa
parte da vida de Humberto e, por isso, a sua gana de falar do trabalho ia além
de contar quaisquer histórias sobre a vida pessoal: “Meu trabalho era a minha
vida, tanto que conheci a Dirce justamente por causa dele”. Humberto Wisnik
trabalhou na Record. Até chegar lá, ele conta: “Sou de santos, vim pra São Paulo
pra fazer cursinho e CPUR. Ia fazer engenharia, mas, na verdade, quem queria
isso era o meu pai, que estimulava a mim e aos meus irmãos a ter um diploma na
parede”.
Passaram-se uns 10 minutos de conversa, e
percebi que olhinhos redondos verdes assustados me observavam: “Ah, é a XXX,
Camila, irmã da Dirce. Vem falar oi pra menina, XXX.” Sem pronunciar uma
palavra se quer, ela continuou parada e me levantei para beijar-lhe o rosto. A
senhora dos olhos claros mora com o casal e sofre de esquizofrenia. Durante a
toda a conversa, nos deparávamos com sua voz ao fundo. “São os amigos
imaginários, não liga não”. E não liguei.
“Uns amigos disseram que na Record
precisavam de câmera. E lá é bom pra fazer bico, né?”, conta. “O bico quer
dizer: vim pra estudar e fazer o CPUR. Passei pela Record, fiz um curso qualquer
lá e comecei”. Isso foi em 60. Naquele
ano, Humberto tentou entrar na Poli para fazer a tal da engenharia, mas não
conseguiu.
Fazia os programas da época, e só existia
TV ao vivo. Não existia gravação, vídeo tape. “A gente chegava lá às 11 da
manhã e saía meia noite e meia”. Em meio a tossidas que pausaram por instantes
a nossa conversa, o câmeraman
aposentado contou que até os comerciais eram ao vivo, era a época das garotas
propaganda. Outras pausas tomaram conta da nossa conversa, mas, dessa vez, com
um objetivo diferente: “Gosto de dizer que a televisão era mais romântica
naquela época, não era tão industrial. Era algo mais leve e solto, embora fosse
ao vivo. Hoje em dia tudo é gravado, parece que não existe mais aquele
contato”, relatou seu Humberto, saudosista. “Você se lembra de algum, seu
Humberto?”, perguntei. “Orniex, que era detergente, ODD; Casa Zacarias e, ah,
muitos outros”.
Peço para o meu entrevistado contar um
pouco mais sobre a televisão na época que tanto apreciava (os famosos anos 60,
década de reviravoltas musicais e revoluções). “Lá na Record existia um
restaurante enorme que ficava no terceiro andar do prédio. Serviam comida,
petisco e até uísque... então todo mundo se concentrava nesse restaurante. Era uma época muito boa essa minha, e da
Dirce também, que depois de alguns anos eu conheci por lá”. Era possível encontrar Adoniran Barbosa,
Isaurinha Garcia, Agostinho dos Santos e Blota Júnior, por exemplo, reunidos
bebendo uma cerveja, tomando um lanche, jogando dominó e xadrez. Humberto
contou que no canto do local havia uma televisão grande que mostrava a
programação da TV Record: “A pessoa estava ali e sabia que dali meia hora,
quarenta minutos, ia ter que descer pro estúdio e apresentar alguma coisa”.
“Tinha
também os programas do Newton!”, interrompeu Dirce. “Ah, mas isso é depois! To
começando do começo, Dirce!” retrucou Humberto. “Eu vou tomar injeção, ta bom?”,
disse a senhora. “Tá, vai com Deus,
tchau”.
Retomando a nossa conversa, Humberto
resolveu me contar, mesmo que bem pouco, da sua vida paralela ao trabalho: “Deu
um ano e fiz vestibular novamente. E dessa vez passei no Mackenzie. Porém, minha
classificação não deu pra civil, então entrei pra engenharia metalúrgica.
Então, eu fazia: engenharia no Mackenzie, CPUR em Santana e trabalhava como
câmera na TV, que ficava aqui no Aeroporto de Congonhas. Resumindo: Não estava
fazendo nada direito”.
Mais uma longa tosse deu lugar às
palavras na nossa conversa. “Eis que me promoveram, por um motivo lá, pra diretor de TV da Record!”. Rimos com esse
“por um motivo lá”, e Wisnik tentou explicar que, naquela época, tinham sete
diretores de TV na Record. O primeiro, mais ban
ban ban, era o Tuta: filho do Paulo Machado de Carvalho, dono da Record. Aí
tinha o Newton Travesso, o Randal Juliano e
Salvador. “Precisavam de mais um diretor de TV pra fazer uma programação
mais à tarde, que eles não queriam fazer. Chamaram-me e eu topei na hora. Mas
eu deveria largar a faculdade: e larguei. Metalurgia não me interessava muito
mesmo. Comecei como diretor um dia depois que me chamaram”, disse. “Um dia
ainda volto no Mackenzie pra pegar meus papeis de colegial!”, completou, rindo.
Como diretor de TV, o ex-câmera fazia os
programas: Jornal da Mulher, Jornal do meio dia, e outros, além de colocar
filmes no ar também. Isso sem contar as propagandas feitas ao vivo que
precisavam também de uma direção. E os desenhos infantis, que eram feitos pelos
atores vestidos de Super-heróis. Curiosa, perguntei a ele como lidavam com
erros na televisão, já que era ao vivo como o teatro: “Ah, se era um erro, a
gente chamava o ‘padrão’ – era só puxar o padrão, um slide que estava escrito
CANAL 7 TV RECORD. No fundo, colocavam uma música. Era isso aqui, ó...”,
Humberto pegou um dos livros nas mãos e, com muita calma, folheou-o até
encontrar a página que ilustrava o que ele tinha acabado de me contar.
Tudo era feito ao vivo e com pouco recurso. “Era uma época muito boa”,
balbuciou.
“Alguém
ligou?”, perguntou a voz fina. “Não, Dirce”. A esposa havia retornado da
injeção e foi direto para a cozinha esquentar a janta da XXX.
Três anos como cinegrafista, e mais um
restante como diretor de TV, produtor e gerente de programação. Nesse último
cargo, o objetivo do seu Humberto era de cuidar da Estação no Ar. “Em 78,
entrei pra uma área que fiquei até ‘agora’, final de 2008, que era de direção
de eventos; comecei com a Copa do Mundo na Argentina e participei da
organização, mas não fiquei em Buenos Aires. Fiz a montagem da infraestrutura
necessária para a transmissão da Copa aqui no Brasil. Sinal de Satélite, linhas
da Embratel de coordenação, comunicação com o nosso estúdio em Buenos Aires”.
Em 82, o diretor participou da transmissão da Copa da Espanha, mas a Record não
tinha direito e a Globo ficou com exclusividade de imagens. A Record fez o
seguinte: pegou o Silvio Luís, narrador bastante conhecido e assim criou: “VEJA
a copa na Globo e OUÇA o Silvio Luís na Record!”.
Em 1998, Humberto sai da Tv Record, após
muitos anos na emissora: “Fui pra TV Manchete e fiquei 3 anos por lá: eu era
gerente de programação e produção da Manchete São Paulo. Só que acontece que a
Manchete estava em uma situação ruim. Não tínhamos aumento, não estava nada
muito bom. Fui então convidado então para trabalhar na Finish House, uma
produtora de comerciais. Me pagavam melhor, e ficava a 3 minutos de casa, o que
era ótimo”. No entanto, as relações entre Humberto e os colegas de trabalho não
eram das melhores.
“Fui então chamado, em 92, pelo Galvão
Bueno pra trabalhar em Curitiba numa produtora chamada PGB, que produzia
conteúdo de esporte pra CNT. Aí eu falei com a Dirce que o Galvão tinha me
chamado pra conversar e ela só falou: vai lá e vamos embora!”. Acontece que, naquela
época, o filho mais velho, Adriano, estava terminando o ITA e a Melissa, a mais
nova, estava no último ano do colegial do Bandeirantes. Humberto foi pra
Curitiba em julho e teve que ficar sozinho por lá. Isso até o final do ano e a
Dirce “pegar as coisas” e ir também. “Ficamos até 95 em Curitiba. O dinheiro começou
a ficar curto para eles (da produtora) e acabei voltando pra Record em São
Paulo pra cuidar de eventos, o que eu gosto de fazer”.
O
intuito de Humberto Wisnik era ficar até o ano de 2010 na Record, o que
permitiria que ele completasse 50 anos de televisão, uma boa hora para parar. “Fiquei
até 2008 porque eles já não me quiseram mais”, afirmou com um sorriso pálido e
entristecido no rosto. “E tudo terminou em 2008. Me aposentei e aqui estou.”
- O senhor sente falta dessa rotina?
- Não.
- Não? (Me espantei com um senhor tão
saudosista dizendo isso)
- Não. Eu acumulei muita experiência
nessa área de transmissão de eventos, inclusive muita decepção (da época mais
recente). E ali na Record a situação era a seguinte: “Nós queremos fazer melhor
que a Globo, (ótimo), mas não queremos gastar nada”. Portanto, é impossível
fazer melhor que a Globo. Na Copa de 98, eu estava cuidando de tudo sozinho.
Onde, na Globo, tem uma equipe, na Record só tinha eu. Eu cuidava de: satélite
pra trazer a imagem da França pro Brasil, linhas de coordenação, montar um
estúdio lá, hospedagem do pessoal. Eu tinha que saber organizar e fazer um
cronograma de qual voo sai de qual aeroporto; quando chegarem lá, tal van
estará esperando no aeroporto da França; chegando na recepção, fulano fica com
ciclano no quarto xis. Era muita coisa pra uma pessoa só cuidar, o que
impossibilitava de fazermos um evento com uma qualidade incomparável.
Por último, eu quis saber da dona Dirce.
Como eles haviam se conhecido de fato? “Você quer saber da dona Dirce?”, disse.
“Sim, muito”, respondi. “A Dirce era bailarina do corpo de baile da Record.
Quando eu trabalhava como câmera, fazia CPUR e engenharia no Mackenzie, a
conheci. Uma vez, quando a gente
passou pelo estúdio, estava tendo ensaio e alguém falou: ‘tem uma menina nova
no ballet!’. Eu tinha 20 anos nessa
época. Fomos, então, vê-la. Ela
estava de bob, lenço na cabeça, malha cor de carne, pulando lá no meio das
outras. Quando já estavam todas penteadas, elas foram tomar uma lanche e aí eu
fui chegando perto...aí nós noivamos e ficamos juntos por muitos anos”.
A voz aguda apareceu de novo atrás de
nós: “Eu parei o ballet porque no
meio de uma apresentação caiu um cenário na minha cabeça e rachou. Tive que ir
pra Beneficência e tomei 15 pontos, além de quebrar a clavícula. Minha sorte é
que não tive sequela nenhuma. Mas é isso aí, estamos juntos e apaixonados até
hoje”, disse dona Dirce, a bailarina do quadro do canto esquerdo.
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