As mil e uma facetas de Érica
Tarde de sábado. O sol brilha na varanda laranja da casa de cinco
cômodos em Brigadeiro Tobias, bairro simples da periferia de Sorocaba. O clima
ameno é acompanhado pela sensação de cansaço, já que passa um pouco da hora do
almoço. Érica me recebe na sala de sua casa na companhia de seu filho, o
pequeno Matheus, de apenas cinco anos, enquanto o marido Jedérson trabalha como
açougueiro em um estabelecimento a 14 quilômetros da residência da família.
Ela me recebe muito bem e me convida para sentar no sofá preto de três
lugares. Érica veste confortavelmente a camiseta da campanha de Natal de seu
bairro, shorts e chinelos. Começo entrevistando-a pelo ponto mais simples: nome
e idade. Com aparente timidez causada pelo gravador usado por mim, ela responde
sistematicamente: “Érica Aparecida Amorim Arduíno, 30 anos”. Como se sentisse a
mãe intimidada, Matheus interfere na nossa conversa e muda a idade da mãe,
descontraindo o ambiente.
Pergunto para ela sobre a infância. A resposta é direta ao afirmar que
não se lembra de muita coisa que aconteceu quando, aos 10 anos, ocorreu a morte
da sua mãe. A voz não expressa tristeza, mas sim um choque ao comentar a morte
da dona Olga. As irmãs dizem que ela é parecida com a avó e que tem o gênio muito
parecido com o da mãe, mas ela não se importa já que diz que, como não se
lembra, a mãe era somente de seus seis irmãos mais velhos e não sua.
- E com seu pai, como era a sua relação?
- “Era mais fácil, porque eu preferia mais pai do que mãe. Acho que pai
era melhor do que mãe por causa do bloqueio que causou na cabeça.”
Quando dona Olga faleceu, Érica passou a morar somente com seu Eurico,
já que as três irmãs que ainda moravam na casa perto do falecimento da
matriarca haviam acabado de se casar. Ao falar da adolescência ela não poupa as
palavras para falar que foi rebelde, pois saia de segunda a segunda. “Mas eu ia
à lanchonete, no grupo de jovens, cantava na igreja, ia a discotecas... eu fui
muito feliz, me diverti muito”.
Érica estudou em escola pública até o primeiro ano do ensino médio e,
depois de passar no vestibulinho de uma escola técnica de Sorocaba, fez técnico
em turismo juntamente com o ensino médio. Além disso, para ajudar a irmã Edinéia
(ou Néia, como é popularmente conhecida) no salão de beleza que ela tem, Érica
fez cursos de depilação, manicure, pedicure e estética, mas ela diz que não
gosta de nenhuma desses cursos, só da parte de depilação.
Quando seu Eurico morreu, Érica ficou morando sozinha apenas um mês, que
foi o tempo para que ela se casasse com Jéderson. Ela ajudava a irmã Néia desde
os 14 anos no salão de beleza e, depois que casou, fazia faxina em algumas casas
e trabalhou por cinco anos na casa de seu Olímpio e dona Olívia, um casal de
idosos vizinhos da casa de seu pai. Lá, Érica trabalhou até o filho nascer e,
depois disso, só continuou fazendo as faxinas.
Quando Matheus fez um ano e conseguiu uma vaga na creche, Érica entrou
trabalhar na casa de Paulo e Rose. A indicação veio de Néia, esposa de Rubens e
irmão de Paulo. Antes dela, havia uma empregada doméstica que trabalhou na casa
deles durante dez anos, por isso que a família tinha receio de contratar uma
nova pessoa.
Até esse ponto da história, a narrativa de Érica é pautada por momentos
importantes contados de forma natural e pelas interrupções de Matheus. Porém,
os cabelos vermelhos curtos e as expressões dos olhos castanho-escuros não
disfarçam a tentativa de falar com naturalidade de um assunto tão delicado.
Érica passou pela mesma história duas vezes. A primeira, como já foi
narrada, é a traumática morte da mãe que tinha apenas 48 anos. A segunda começa
na contratação pela família Pires. Érica se recorda que começou a trabalhar e
que tudo corria bem, mas que Rose tomava todos os dias, na hora do almoço, um
Sonridor para melhorar das fortes dores de cabeça que sentia. Depois, os
sintomas da doença da patroa começaram a piorar, pois ela bateu o carro –coisa que
nunca havia acontecido antes – e começou a escrever torto, o que todos
estranharam por ela ser professora e ter uma letra impecável.
Quando Rose foi ao médico, descobriu que tinha um tumor na cabeça e
precisaria passar por uma cirurgia. Inclusive, Érica se lembra de que ela foi à
festa do primeiro aniversário do Matheus, mas desmaiou na porta e acabou
voltando para a casa. O estado de Rose foi piorando e ela fez um pedido para
Érica, que ela lembra como se fosse ontem: “Ela falou que estava com medo de
morrer e que, se ela morresse, era pra eu cuidar das crianças. Ela não queria
morrer!”.
Rose teve que fazer a cirurgia para a retirada do tumor e entrou em
coma. Segundo Érica, seu desespero aumentava por causa do medo que tinha de ter
que cumprir com sua promessa e cuidar de dois “aborrecentes” (expressão
repetida por ela várias vezes). E o medo se concretizou. Rose morreu no dia 12
de outubro de 2009, deixando o marido Paulo e os filhos Vitor e Beatriz, com 11
e 16 anos na época, respectivamente.
A partir desse dia, a vida de Érica deu uma volta completa. A história
de dona Olga e sua filha caçula agora têm outros personagens: Rose e seu filho
Vitor, junto também a Beatriz, que é esta pessoa que vos escreve. Érica diz que
não podia deixar de ajudar a cuidar das crianças, agora órfãs de mãe. No mesmo
dia, Paulo disse para ela: “Agora, você é a governanta da minha casa”.
A expressão rígida de Érica mostra a força de vontade de ajudar aquela
família a melhorar. Apesar do medo inicial, ela sabia que era capaz de
contribuir em toda aquela situação.
Somos interrompidas novamente por Matheus. O garotinho não se lembra de
Rose, mas sempre escuta a família de Paulo falar muito dela. Talvez seja por
isso que ele tenta mudar de assunto constantemente.
- O que você está comendo Bê?
Eu respondo pra ele: “A bala que você me deu, Ma”.
- E você mãe?
Érica responde: “também”.
Ele se contenta com a resposta e deixa que continuemos a nossa conversa,
chegando à conclusão de que “todos estão comendo bala”.
Voltamos a conversar. Agora, Érica está sentada no braço do sofá, pois
teve que se levantar para ir atender a porta, já que alguém a chamou. Ela se
esquece do ponto onde parou, mas logo se lembra.
“Eu tinha raiva de pensar que minha mãe tinha morrido com 11 anos, eu
tava imaginando a cabeça do Vitor. Mas o Vitor é uma pessoa calada e a Beatriz
falava demais”. Novamente, Matheus interfere e diz que eu falo demais até hoje.
O medo de Érica era que o Vitor ficasse revoltado com essa situação, pois
como nem no velório da mãe ele quis ir, ela temia que ele esquecesse de toda sua
infância assim como aconteceu com ela, o que seria uma experiência traumática
para ele.
A narrativa de Érica demonstra uma pessoa com muitos medos e incertezas
com relação ao futuro. Ela mistura vários episódios em que esteve perdida quanto
ao modo de agir e como lidar com as questões que apareciam. A que ela se
recorda primeiro era o meu vestibular. Faltava apenas um ano para que eu
começasse a tentar entrar nas melhores faculdades do País e, depois de tudo o
que aconteceu, isso não seria tarefa fácil, pois meu rendimento nos estudos
havia caído muito.
A moça detalhista conta tudo o que lhe vem à mente e que têm relação com
a família Pires. Nem parece que ela pertence à família Amorim, que tem seis irmãos,
que tem casa e família para cuidar, que faz serviços como faxineira nas horas
livres, que trabalha como depiladora e faz serviços como secretária no salão de
beleza da irmã todos os sábados e que se dedica integralmente para todas as
atividades do Matheus. Sim, ela é um membro da família Pires e isso é sentido
por todos à sua volta, principalmente por Matheus, que diz que Paulo é seu tio
e que eu e Vitor somos seus primos.
Érica é, além de amiga, funcionária prestativa. Não tem hora para entrar
nem para sair e, se precisar faltar, ela o faz sem nenhum receio. Além de
limpar a casa, ela faz o almoço da família, compra produtos de limpeza e
auxilia na elaboração da lista de compras do mês, funções que lhe foram
atribuídas depois de ser promovida à “governanta”. Por esse motivo, pergunto o
que ela acha da PEC das domésticas. Ela é enfática e responde: “no meu serviço
não muda nada, mas para pessoas que têm outros patrões melhorou muito”.
No outro dia, outra realidade
Acompanhei Érica durante um dia de trabalho na residência de Paulo e
Vitor, já que eu estudo em outra cidade e volto para casa apenas nos finais de
semana, quando ela não está. Além de cuidar das tarefas diárias da casa de 13
cômodos, ela ainda arruma um tempo para se dedicar ao Matheus.
Ela leva e pega o garoto na escola, que fica na rua ao lado de seu
trabalho. Troca a roupa dele, faz o almoço e capricha na salada que ele tanto
gosta. Enquanto ele come seu primeiro prato de comida – o segundo só come
quando o Vitor chega da escola – ela senta ao lado dele e fica sem fazer nada,
pois o menino não gosta de almoçar sozinho. Além disso, ela leva Matheus para
as aulas de matemática no Kumon, para o bicicross, para os médicos que ela
tanto gosta que ele frequente e para todos os lugares que a necessidade exija
que vá. E tudo isso de ônibus, pois sua carteira de motorista fica bem guardada
no fundo do armário por causa do medo de dirigir.
Mas, como toda boa relação entre mão e filho, sempre os filhos têm
alguma queixa da mãe. E com Matheus não é diferente.
- Matheus, o que você acha da sua mãe?
- Acho que ela grita demaaaaais.
Ela fala alto. Sempre. Principalmente quando conversa com os vizinhos de
Paulo. Ela é amiga de todos, conhece a vida de deles e é muito bem relacionada.
A vizinha da casa ao lado, dona Maria, é a que mais conversa com Érica. Ambas
ficam debruçadas no muro que divide as duas residências, que é relativamente
baixo.
Na minha casa, ela se lembra de muitos outros fatos relacionados com
toda a minha família, o que me faz pensar que ela, a cada dia que passa, leva
mais a sério o pedido de minha mãe. Ela se lembra do choque de realidades que o
Vitor, três anos depois da morte de nossa mãe, começou a ter. Segundo ela,
“agora que ele se deu conta de que a mãe morreu”. Lembra também do meu
primeiro ano de faculdade e do sofrimento para que eu me adaptasse em
São Paulo. “Hoje, você já se acostumou bem melhor”.
Pela primeira vez, Érica fala com lágrimas nos olhos sobre sua vida.
Fala do misto de alegria e tristeza que sentiu quando me viu passar no programa
“Vem Comigo”, da TV Gazeta, algumas semanas atrás. Disse que chorou do começo
ao fim do programa por pensar na alegria que minha mãe sentiria ao me ver na
televisão fazendo uma coisa que sempre sonhei. E, ao mesmo tempo, chorava de
alegria pelo mesmo motivo.
- E o que você espera do futuro?
- De quem?
- Das pessoas que você gosta.
- Eu não quero que o Matheus seja açougueiro e nem faxineiro, como ele
quer ser. Não quero que o Vitor seja músico porque ele não vai ter um bom
futuro e você já está encaminhada na vida.
Não poderia deixar de falar com as pessoas mais citadas por Érica
durante a entrevista: Vitor e Paulo. Para Vitor, ela é prestativa porque o
ajuda em tudo que precisa e faz sempre as comidas que ele mais gosta, pois
cozinha muito bem. Paulo diz que ela sabe que não substitui a esposa e a mãe,
mas ao mesmo tempo sabe da importância do lugar que ocupa na família, inclusive
diante da família mais alargada (irmãos, pais, sogro, etc).
Essa é Érica. Empregada doméstica, esposa, irmã, mãe, faxineira,
depiladora, secretária, governanta, amiga. Com tantas ocupações diárias, ela
ainda consegue arrumar tempo para falar de sua vida e abrir seu coração.
Consegue, entre um serviço e outro, me servir uma deliciosa mousse de morango
enquanto espreme as cinco laranjas para o suco. Fala pelos cotovelos enquanto
lava os banheiros da casa e coloca as toalhas pra lavar. É...mil e uma funções
para uma mulher com mil e uma qualidades.
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