Pages

domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Beatriz Pires


As mil e uma facetas de Érica



Tarde de sábado. O sol brilha na varanda laranja da casa de cinco cômodos em Brigadeiro Tobias, bairro simples da periferia de Sorocaba. O clima ameno é acompanhado pela sensação de cansaço, já que passa um pouco da hora do almoço. Érica me recebe na sala de sua casa na companhia de seu filho, o pequeno Matheus, de apenas cinco anos, enquanto o marido Jedérson trabalha como açougueiro em um estabelecimento a 14 quilômetros da residência da família.
Ela me recebe muito bem e me convida para sentar no sofá preto de três lugares. Érica veste confortavelmente a camiseta da campanha de Natal de seu bairro, shorts e chinelos. Começo entrevistando-a pelo ponto mais simples: nome e idade. Com aparente timidez causada pelo gravador usado por mim, ela responde sistematicamente: “Érica Aparecida Amorim Arduíno, 30 anos”. Como se sentisse a mãe intimidada, Matheus interfere na nossa conversa e muda a idade da mãe, descontraindo o ambiente.
Pergunto para ela sobre a infância. A resposta é direta ao afirmar que não se lembra de muita coisa que aconteceu quando, aos 10 anos, ocorreu a morte da sua mãe. A voz não expressa tristeza, mas sim um choque ao comentar a morte da dona Olga. As irmãs dizem que ela é parecida com a avó e que tem o gênio muito parecido com o da mãe, mas ela não se importa já que diz que, como não se lembra, a mãe era somente de seus seis irmãos mais velhos e não sua.
- E com seu pai, como era a sua relação?
- “Era mais fácil, porque eu preferia mais pai do que mãe. Acho que pai era melhor do que mãe por causa do bloqueio que causou na cabeça.”
Quando dona Olga faleceu, Érica passou a morar somente com seu Eurico, já que as três irmãs que ainda moravam na casa perto do falecimento da matriarca haviam acabado de se casar. Ao falar da adolescência ela não poupa as palavras para falar que foi rebelde, pois saia de segunda a segunda. “Mas eu ia à lanchonete, no grupo de jovens, cantava na igreja, ia a discotecas... eu fui muito feliz, me diverti muito”.
Érica estudou em escola pública até o primeiro ano do ensino médio e, depois de passar no vestibulinho de uma escola técnica de Sorocaba, fez técnico em turismo juntamente com o ensino médio. Além disso, para ajudar a irmã Edinéia (ou Néia, como é popularmente conhecida) no salão de beleza que ela tem, Érica fez cursos de depilação, manicure, pedicure e estética, mas ela diz que não gosta de nenhuma desses cursos, só da parte de depilação.
Quando seu Eurico morreu, Érica ficou morando sozinha apenas um mês, que foi o tempo para que ela se casasse com Jéderson. Ela ajudava a irmã Néia desde os 14 anos no salão de beleza e, depois que casou, fazia faxina em algumas casas e trabalhou por cinco anos na casa de seu Olímpio e dona Olívia, um casal de idosos vizinhos da casa de seu pai. Lá, Érica trabalhou até o filho nascer e, depois disso, só continuou fazendo as faxinas.
Quando Matheus fez um ano e conseguiu uma vaga na creche, Érica entrou trabalhar na casa de Paulo e Rose. A indicação veio de Néia, esposa de Rubens e irmão de Paulo. Antes dela, havia uma empregada doméstica que trabalhou na casa deles durante dez anos, por isso que a família tinha receio de contratar uma nova pessoa.
Até esse ponto da história, a narrativa de Érica é pautada por momentos importantes contados de forma natural e pelas interrupções de Matheus. Porém, os cabelos vermelhos curtos e as expressões dos olhos castanho-escuros não disfarçam a tentativa de falar com naturalidade de um assunto tão delicado.
Érica passou pela mesma história duas vezes. A primeira, como já foi narrada, é a traumática morte da mãe que tinha apenas 48 anos. A segunda começa na contratação pela família Pires. Érica se recorda que começou a trabalhar e que tudo corria bem, mas que Rose tomava todos os dias, na hora do almoço, um Sonridor para melhorar das fortes dores de cabeça que sentia. Depois, os sintomas da doença da patroa começaram a piorar, pois ela bateu o carro –coisa que nunca havia acontecido antes – e começou a escrever torto, o que todos estranharam por ela ser professora e ter uma letra impecável.
Quando Rose foi ao médico, descobriu que tinha um tumor na cabeça e precisaria passar por uma cirurgia. Inclusive, Érica se lembra de que ela foi à festa do primeiro aniversário do Matheus, mas desmaiou na porta e acabou voltando para a casa. O estado de Rose foi piorando e ela fez um pedido para Érica, que ela lembra como se fosse ontem: “Ela falou que estava com medo de morrer e que, se ela morresse, era pra eu cuidar das crianças. Ela não queria morrer!”.
Rose teve que fazer a cirurgia para a retirada do tumor e entrou em coma. Segundo Érica, seu desespero aumentava por causa do medo que tinha de ter que cumprir com sua promessa e cuidar de dois “aborrecentes” (expressão repetida por ela várias vezes). E o medo se concretizou. Rose morreu no dia 12 de outubro de 2009, deixando o marido Paulo e os filhos Vitor e Beatriz, com 11 e 16 anos na época, respectivamente.
A partir desse dia, a vida de Érica deu uma volta completa. A história de dona Olga e sua filha caçula agora têm outros personagens: Rose e seu filho Vitor, junto também a Beatriz, que é esta pessoa que vos escreve. Érica diz que não podia deixar de ajudar a cuidar das crianças, agora órfãs de mãe. No mesmo dia, Paulo disse para ela: “Agora, você é a governanta da minha casa”.
A expressão rígida de Érica mostra a força de vontade de ajudar aquela família a melhorar. Apesar do medo inicial, ela sabia que era capaz de contribuir em toda aquela situação.
Somos interrompidas novamente por Matheus. O garotinho não se lembra de Rose, mas sempre escuta a família de Paulo falar muito dela. Talvez seja por isso que ele tenta mudar de assunto constantemente.
- O que você está comendo Bê?             
Eu respondo pra ele: “A bala que você me deu, Ma”.
- E você mãe?
Érica responde: “também”.
Ele se contenta com a resposta e deixa que continuemos a nossa conversa, chegando à conclusão de que “todos estão comendo bala”.
Voltamos a conversar. Agora, Érica está sentada no braço do sofá, pois teve que se levantar para ir atender a porta, já que alguém a chamou. Ela se esquece do ponto onde parou, mas logo se lembra.
“Eu tinha raiva de pensar que minha mãe tinha morrido com 11 anos, eu tava imaginando a cabeça do Vitor. Mas o Vitor é uma pessoa calada e a Beatriz falava demais”. Novamente, Matheus interfere e diz que eu falo demais até hoje.
O medo de Érica era que o Vitor ficasse revoltado com essa situação, pois como nem no velório da mãe ele quis ir, ela temia que ele esquecesse de toda sua infância assim como aconteceu com ela, o que seria uma experiência traumática para ele.
A narrativa de Érica demonstra uma pessoa com muitos medos e incertezas com relação ao futuro. Ela mistura vários episódios em que esteve perdida quanto ao modo de agir e como lidar com as questões que apareciam. A que ela se recorda primeiro era o meu vestibular. Faltava apenas um ano para que eu começasse a tentar entrar nas melhores faculdades do País e, depois de tudo o que aconteceu, isso não seria tarefa fácil, pois meu rendimento nos estudos havia caído muito.
A moça detalhista conta tudo o que lhe vem à mente e que têm relação com a família Pires. Nem parece que ela pertence à família Amorim, que tem seis irmãos, que tem casa e família para cuidar, que faz serviços como faxineira nas horas livres, que trabalha como depiladora e faz serviços como secretária no salão de beleza da irmã todos os sábados e que se dedica integralmente para todas as atividades do Matheus. Sim, ela é um membro da família Pires e isso é sentido por todos à sua volta, principalmente por Matheus, que diz que Paulo é seu tio e que eu e Vitor somos seus primos.
Érica é, além de amiga, funcionária prestativa. Não tem hora para entrar nem para sair e, se precisar faltar, ela o faz sem nenhum receio. Além de limpar a casa, ela faz o almoço da família, compra produtos de limpeza e auxilia na elaboração da lista de compras do mês, funções que lhe foram atribuídas depois de ser promovida à “governanta”. Por esse motivo, pergunto o que ela acha da PEC das domésticas. Ela é enfática e responde: “no meu serviço não muda nada, mas para pessoas que têm outros patrões melhorou muito”.
No outro dia, outra realidade
Acompanhei Érica durante um dia de trabalho na residência de Paulo e Vitor, já que eu estudo em outra cidade e volto para casa apenas nos finais de semana, quando ela não está. Além de cuidar das tarefas diárias da casa de 13 cômodos, ela ainda arruma um tempo para se dedicar ao Matheus.
Ela leva e pega o garoto na escola, que fica na rua ao lado de seu trabalho. Troca a roupa dele, faz o almoço e capricha na salada que ele tanto gosta. Enquanto ele come seu primeiro prato de comida – o segundo só come quando o Vitor chega da escola – ela senta ao lado dele e fica sem fazer nada, pois o menino não gosta de almoçar sozinho. Além disso, ela leva Matheus para as aulas de matemática no Kumon, para o bicicross, para os médicos que ela tanto gosta que ele frequente e para todos os lugares que a necessidade exija que vá. E tudo isso de ônibus, pois sua carteira de motorista fica bem guardada no fundo do armário por causa do medo de dirigir.
Mas, como toda boa relação entre mão e filho, sempre os filhos têm alguma queixa da mãe. E com Matheus não é diferente.
- Matheus, o que você acha da sua mãe?
- Acho que ela grita demaaaaais.
Ela fala alto. Sempre. Principalmente quando conversa com os vizinhos de Paulo. Ela é amiga de todos, conhece a vida de deles e é muito bem relacionada. A vizinha da casa ao lado, dona Maria, é a que mais conversa com Érica. Ambas ficam debruçadas no muro que divide as duas residências, que é relativamente baixo.
Na minha casa, ela se lembra de muitos outros fatos relacionados com toda a minha família, o que me faz pensar que ela, a cada dia que passa, leva mais a sério o pedido de minha mãe. Ela se lembra do choque de realidades que o Vitor, três anos depois da morte de nossa mãe, começou a ter. Segundo ela, “agora que ele se deu conta de que a mãe morreu”. Lembra também do meu
primeiro ano de faculdade e do sofrimento para que eu me adaptasse em São Paulo. “Hoje, você já se acostumou bem melhor”.
Pela primeira vez, Érica fala com lágrimas nos olhos sobre sua vida. Fala do misto de alegria e tristeza que sentiu quando me viu passar no programa “Vem Comigo”, da TV Gazeta, algumas semanas atrás. Disse que chorou do começo ao fim do programa por pensar na alegria que minha mãe sentiria ao me ver na televisão fazendo uma coisa que sempre sonhei. E, ao mesmo tempo, chorava de alegria pelo mesmo motivo.
- E o que você espera do futuro?
- De quem?
- Das pessoas que você gosta.
- Eu não quero que o Matheus seja açougueiro e nem faxineiro, como ele quer ser. Não quero que o Vitor seja músico porque ele não vai ter um bom futuro e você já está encaminhada na vida.
Não poderia deixar de falar com as pessoas mais citadas por Érica durante a entrevista: Vitor e Paulo. Para Vitor, ela é prestativa porque o ajuda em tudo que precisa e faz sempre as comidas que ele mais gosta, pois cozinha muito bem. Paulo diz que ela sabe que não substitui a esposa e a mãe, mas ao mesmo tempo sabe da importância do lugar que ocupa na família, inclusive diante da família mais alargada (irmãos, pais, sogro, etc).
Essa é Érica. Empregada doméstica, esposa, irmã, mãe, faxineira, depiladora, secretária, governanta, amiga. Com tantas ocupações diárias, ela ainda consegue arrumar tempo para falar de sua vida e abrir seu coração. Consegue, entre um serviço e outro, me servir uma deliciosa mousse de morango enquanto espreme as cinco laranjas para o suco. Fala pelos cotovelos enquanto lava os banheiros da casa e coloca as toalhas pra lavar. É...mil e uma funções para uma mulher com mil e uma qualidades.

Nenhum comentário:

Postar um comentário