“Eu só faço
aquilo que eu gosto e aquilo que eu quero”
E Suzana
Amaral, cineasta e professora, não gosta de olhar para trás
Por Gabriel
Fabri
Quando
questionada sobre qual foi a maior influência em seu trabalho, a cineasta
Suzana Amaral, com 81 anos, respondeu que foi a sua vida. Da mesma forma, o
amadurecimento de seu cinema também é intrísicamente relacionado ao seu
crescimento pessoal. Infelizmente ou não, essa sua faceta Suzana não quis
revelar. Antes de me fazer essas e outras constatações sobre sua carreira, ela
colocou na mesa um desafio ainda maior do que a minha proposta inicial, ao
encontrá-la numa noite de sábado, dia 4 de maio de 2013. Meu objetivo de
traduzir para as palavras um pouco de quem é a diretora de “A Hora da Estrela”,
adaptação de 1985 do romance de Clarice Lispector, se tornou um pouco mais
complicado quando ela declarou veementemente que não responderia a nenhuma
pergunta de cunho não profissional.
A conversa que
tive com Suzana, em seu apartamento em um bairro nobre de São Paulo, não foi
algo próximo ao surreal de “Hotel Atlântico”, seu filme mais recente. Mas foi,
sem dúvidas, surpreendente. Não esperava ver cair por terra muitas das
perguntas que tinha preparado; nem ser tão mal interpretado ao ponto de, muito
gentilmente (e não estou sendo ironico), ser mandado, indiretamente, para a
“puta que pariu”; também não imaginava que fosse sair de lá com um dvd, um
presente raro autografado (com a data errada, porém) e tantas histórias
curiosas para contar a respeito de um dos grandes nomes da cinegrafia
brasileira.
Suzana me
recebeu com muita animação após voltar da academia. Mais tarde, ela me pediria
para não chamá-la de “senhora”. Justo, porque ela aparenta ter a energia de uma
jovem, ainda ativa profissionalmente, preparando um novo filme e dando aulas de
documentário na FAAP. Ao longo da conversa, ela mexia sutilmente nos meus dois
gravadores (ambos ligados, por precaução), enquanto respondia às perguntas.
Antes de
começarmos, expliquei um pouco a proposta dessa reportagem, e logo ela avisou
que não responderia nada pessoal. Arrisquei e perguntei, estabelecendo relações
com a carreira, e ela retrucou: “não, não, eu não gosto muito de olhar para
trás”. Ela acha “chato” falar sobre si mesma. Continuei meu trabalho, me
sentindo numa corda bamba, de repente.
A
Entrevista
Evoco uma frase
de Suzana de uma reportagem do New York Times, de quando ela lançava seu
primeiro filme nos EUA, aos 54 anos. Na ocasião, havia dito que é “na segunda
metade de sua vida que começa a sua vida real”. Ela concorda com o que disse e
desenvolve: “é porque eu entrei na faculdade com trinta e poucos anos. Aliás,
eu fiz faculdade antes, mas...”. Após uma breve pausa, completa: ”não valeu
nada, porcaria”. Em seguida, argumenta que os jovens são “obrigados a decidir a
carreira cedo demais”. “Como diria meu pai, ‘vocês não sabem nem por onde
galinha mija’. Então vão querer saber o que vai fazer na vida? É muito cedo, só
no viver que se descobre”, afirma. Entretanto, ela alega que “a vida inteira”
percebeu que queria fazer cinema, “desde menina”. Quando entrou na faculdade de
cinema em São Paulo, já era mãe de nove filhos e, terminada a graduação, foi
para Nova York passar quatro anos longe da família para aprender cinema. “ECA,
entrei como pau, sai como pedra. Quem quer estudar cinema tem que ir embora
daqui”, aconselhou.
Mal tinhamos
começado o bate-papo e me deparei com uma saia justa inesquecível. Perguntei se
Suzana, ao fazer cinema no Brasil, enfrentou alguma dificuldade por ser mulher.
A minha questão se referia aos preconceitos que até hoje as mulheres enfrentam
na sociedade brasileira e nos mercados de trabalho, mas fui interpretado da
maneira oposta. Com muita calma, e até certa elegância, ela respondeu: “não,
isso é pergunta antiga, que não se faz, acho completamente demodê, ultrapassado
falar esse negócio de gênero. É mulher, porque... ah, vá para a puta que pariu
(sic)”. Quando chega dia das mães ou dia da mulher e querem entrevistá-la, ela
diz “escuta, se é pergunta sobre mulher, vai tom...”, não completa a frase e
continua com “eu to fora, já corto o barato, corto mesmo”. Dá o conselho de que
é preciso “perguntas mais inteligentes, mais objetivas, não perguntar essa
generalidade de gênero. Não pergunte isso para ninguém não”.
Engoli seco e parti
para uma pergunta nada a ver com a anterior. Achei a situação tão estranha que
nem percebi na hora que minha perguntava dava margem para uma segunda
interpretação, muito negativa. Um pouco transtornado, questionei como ela se vê
como diretora, como age num set. “Eu não sou exigente com as pessoas, sou com o
meu trabalho. Se está trambling com meu trabalho eu fico trambling com quem
está no meu caminho. Eu sei muito bem o que serve e o que não serve”, afirma,
“sou rigorosa com tudo aquilo que interfere com o resultado e a qualidade”.
Conversa vai,
conversa vem, e Suzana explica a razão para fazer poucos filmes. Quase 30 anos
depois do lançamento de “A hora da Estrela”, sua filmografia apresenta apenas
três longa-metragens (além do filme de 1985, ela dirigiu “Uma Vida em Segredo”,
2001, e “Hotel Atlântico”, 2009). O motivo é ausência de recursos para
financiar um filme. Para ela, esse é o maior desafio de fazer cinema no Brasil.
“Se me dessem dinheiro de dois em dois anos para fazer um filme, eu faria”, afirmou
de maneira determinada. A situação é ainda mais complicada para ela, apesar do
sucesso de público e crítica de seu primeiro longa, pois alega não fazer
concessões: “não abro as pernas para investidor, para temas comerciais, faço
aquilo que eu gosto e aquilo que quero, e o que gosto e quero não é comercial”.
Um quarto longa
vem ai, mas Suzana não quis revelar detalhes por motivos de contrato. Adiantou,
todavia, que será sobre a “impunidade”. “Na hora em que ele acabar, se as
pessoas começarem a pensar sobre o tema, eu fico feliz. Se podem pensar sobre o
filme, então o meu objetivo já está feito”. Para a cineasta, “um longa é bom se
quando ele acaba, começa na cabeça das pessoas, porque o objetivo não é se
divertir, é pensar, mudar um pouco a cabeça das pessoas”.
Como já é de praxe, sua próxima obra será baseada em literatura.
Ela explica que só trabalha em cima de livros, pois não dá roteiro para ator
ler. Logo, ela precisa entregar algum texto que já exista para ele conhecer o
personagem que vai interpretar. “A primeira coisa que o ator vai fazer é
decorar o texto, mas tem que ter todo um trabalho antes de personagem. Não
posso dirigir um ator que decora texto antes de tudo – se ele decora, nunca vai
ser um bom ator”. Mais tarde ela retornou ao assunto, completando: “quando os
atores estão bem preparados, eles são criativos e contribuem”, criando uma
outra obra a partir da original.
Baseado no livro homônimo de João Gilberto Noll, “Hotel Atlântico”
é o filme favorito de Suzana, dentre os seus três. “Não sei se porque é o
último que eu fiz, mas eu gosto porque ele é estranho. Por ser estranho, me vi
na liberdade de ousar muito”, afirma. “Tem gente que acha que (o longa) não tem
sentido, mas para mim tem. O sentido do filme é não ter sentido, entendeu?”.
“Cada um tira uma lição por si”, completa.
Cinema não é “ir numa balada”
Encerro a entrevista e Suzana exclama “só isso? Pergunta alguma
coisa!”. Enquanto penso, ela questiona a quais dos seus filmes eu assisti.
Quando nego ter assistido ao seu primeiro, ela avisa: “ah, você precisa
assistir ‘A Hora da Estrela’, é fundamental”.
Conversamos sobre cinema brasileiro, e ela afirma que, da nova
safra de filmes nacionais, “A Festa da Menina Morta”, de Matheus Nachtergaele,
“foi o último bom que eu vi”. Questionada sobre o elogiado “A Febre do Rato”,
do pernambucano Claudio Assis, ela diz não ter gostado do resultado e alfinetou
o diretor: “ele é muito pouco rigoroso. Ele bebe nas filmagens. Não é possível
alguém beber na filmagem e não errar”. “As pessoas acham que fazer cinema é ir
numa balada, mas é coisa séria. Não é uma ciência exata, mas trabalha com
elementos exatos”.
Ela reitera a necessidade de estudar cinema para dirigir bem uma
obra cinematográfica. Nega a máxima de Glauber Rocha, dizendo que “o cinema não
é uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Tem que estudar”. Aponta para trás
de mim e diz “é tudo de cinema”: uma estante enorme repleta de livros na sala
de estar, e seu escritório, não separado do comôdo em que estávamos, também
possui um notável acervo.
“Você quer fazer cinema?”, perguntou Suzana ao estudante de
jornalismo que conduzia a entrevista. Afirmei que queria trabalhar com, e
expliquei um pouco dos trabalhos que já fiz anteriormente - contei do meu blog,
da reportagem que fiz em Buenos Aires e do meu estágio na Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo. Compartilhei alguns cursos que fiz ou faço sobre a
sétima arte.
“Jornalismo, especialmente, você tem que saber muito, para poder
julgar”, afirma. Ela então dá alguns conselhos. “Você tem que ler e assistir
muitos filmes” e para entender como funciona o cinema, pede para eu baixar um
roteiro na internet e lê-lo, antes de assistir ao filme selecionado, e estudar
as cenas principais. “Ai você vai ver como ele (o diretor) resolveu aquilo,
toda a gradação das mudanças que foram feitas”. Fala também para eu releer o
livro homônimo de Clarice Lispector antes de assistir ao seu primeiro filme.
“Cinema é muita arte junto, têm tudo”: por isso, são tão necessários os
estudos.
Só depois de toda a conversa que ela me perguntou onde estudei com
a Camile Minerbo, uma de suas netas e minha amiga desde o tempo do Colégio
Bandeirantes. Encontrei a menina de 19 anos pouco mais de um mês após a
entrevista com sua avó, num shopping center da Avenida Paulista. Sobre Suzana,
Camile afirma que ela é “muito extrovertida” e que, quando ficar “velha”, quer
ser igual a ela: “nem parece que tem oitenta e poucos anos, ela não para
quieta. Está sempre andando, sempre fazendo alguma coisa”. A neta afirma que
“todo mundo” pergunta se ela tem certeza que quer dirigir outro filme, mas que,
para Suzana, “a velhice não é um problema”.
Camile recorda um episódio em que as duas foram juntas comprar uma
série de TV na Blockbuster: lembra de Suzana reclamando “o passarinho fez cocô
bem no meu carro”, e afirma que as duas riram muito juntas. “Ela é muito
engraçada, e sempre manda uma (sic), teve um dia que ela dormiu no cinema e
falou que não dormiu”, exemplificou.
Camile viu as obras da avó quando era criança e admite não ter
entendido muito bem. Entretanto, ela afirma que, estudando semiótica na
Faculdade, teve vontade de assistir a eles novamente, agora que está mais
madura. Conta que, recentemente, as duas viram juntas “Hotel Atlântico”,
experiência única, pois Suzana pôde explicar a ela as curiosidades das
filmagens, do roteiro etc.
Além de Camile, conversei com Marina Spelzon, aluna da graduação
de cinema da FAAP que atualmente tem aulas com a cineasta. “É uma grande
diretora, mas como professora, ela é ok”, afirma. Ela explica que “Suzana já
está bem velhinha, é meio desencanada”, e que, algumas vezes, “dá uma dormida
basica”. Entretanto, diz que “tem coisas interessantes sobre ter aula com ela”,
pois a diretora mostra coisas “bem legais” do seu início de carreira, como, por
exemplo, um video institucional de uma marca de tratores.
Indas e Vindas
Antes de iniciar a entrevista com Suzana Amaral, ela havia me
perguntado uma dúvida de informatica. Falei que tentaria ajudá-la após nossa
conversa. Esse já foi um primeiro sinal de que aquela entrevista seria muito
incomum.
Suzana estava revoltada por ter sido obrigada a fazer back-up de
todos os arquivos do seu Ultrabook Dell novo e queria que eu colocasse um
atalho para o Google na area de trabalho de seu notebook velho. Consegui. Ela
se mostrou decepcionada com a qualidade do produto que afirma ter pagado caro,
e falou que da próxima vez vai comprar um aparelho nos EUA. Quando contei que
tinha o mesmo modelo que o dela e que já apresentava problemas, com menos tempo
de uso, ela chegou pertinho e falou: “quer um conselho? Concerta e vende”.
Antes de eu ajudá-la, foi procurar em suas coisas um panfleto da
época do lançamento de “A Hora da Estrela”. “Acho que você vai gostar”, ela
disse, me dando de presente. Quando foi assinar, perguntou a data. Falei que
era dia 5 de maio. Não era, mas só percebi logo depois que ela escreveu. Fiquei
quieto, então. O papel anunciava a exibição do filme nos cinemas brasileiros e
tinha uma foto da atriz principal, Marcelia Cartaxo, num dos planos finais.
Suzana falou que iria procurar outra cópia do panfleto, mas, caso ela não
encontrasse, que eu digitalizasse para ela depois.
Nos despedimos várias vezes, mas ela pedia para eu voltar, quando
já estava no hall do elevador. Voltei uma vez para ela me entregar uma cópia do
seu primeiro filme. Suzana mantém uma prateleira com vários filmes e muitas
cópias daqueles que dirigiu. Ela falou que tinha vergonha de entregar a que me
entregou por causa do material extra, incluido sem a sua aprovação, segundo a
cineasta.
Volto de novo, pois ela lembrou de uma tese escrita pelo
jornalista Washington Araujo sobre a obra, e pediu para que tentasse achá-lo no
facebook, pois havia perdido o contato com ele. Já de saida novamente, avisei
que o seu celular estava com problemas, e ela aproveitou para me pedir que
mudasse o toque dela para um mais alto. Mostrei um dos meus toques, o refrão de
uma música bem barulhenta da Madonna, mas ela queria um mais alto ainda. Ela
ainda pediu de volta o panfleto de “A Hora da Estrela” para assinar uma
dedicação acima de seu nome (e da data do dia seguinte): “para o Gabriel”,
escreveu.
Numa dessas indas e vindas, ela afirmou
que foi boa a nossa conversa, sorrindo.
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