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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Pedro João de Camargo

Bruto, rústico e sistemático?

Yan Resende é a prova viva de que é possível sobreviver ao ritmo frenético do mercado e ainda ter um coração


Ele usava uma camisa laranja e uma blusa por cima. Fazia frio, mas não muito. Contudo, o ar condicionado da biblioteca da faculdade o forçava a manter a malha, de um azul acinzentado, cobrindo o seu torso. Seus olhos, retangulares e aprofundados no rosto, expressavam uma batalha entre o cansaço e a vontade de fazer milhões de atividades, como é de costume para Yan Resende.

Naquele dia, como em muitos outros, seu cabelo se desenhava em um penteado que se repete cotidianamente: uma mistura entre o dividido de lado “mauricinho” e a despretensão de um topete feito, claramente, com as mãos depois de pentear o cabelo. A combinação, camisa e suéter, também é algo que se vê praticamente todo dia. A subjetividade de seu estilo aparece através da objetividade com a qual ele parece selecionar as peças diariamente. A roupa, e seu visual como um todo significativo, parece expressar algo que está muito além do “estar bonito”. Através dela, mesmo que inconscientemente, Yan aparenta deixar subentendida uma característica da sua personalidade: sua austeridade humanizada. Se a camisa diz engomadinho, os tênis com amortecedor de impacto dizem conforto, despretensão. Ele, de alguma forma, conseguiu continuar sendo um ser humano ao batalhar friamente por seus objetivos e esse tipo de coisa não passa despercebido pelo estilo.

Yan Almeida Resende, 19 anos, nascido em Jacutinga – Minas Gerais, próximo da divisa do estado com São Paulo. Atualmente, estuda Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero (por acaso, na mesma sala que eu) e trabalha na Gazeta Esportiva, que fazem parte da mesma fundação. A viagem até aonde ele chegou não foi simples, nem fácil. “Não voltaria para Jacuntiga (...) [fazer isso] iria contra tudo que eu lutei até agora” diz, obstinado. Entretanto, a cidade famosa pela malharia e que tem por volta de vinte mil habitantes, ensinou muitas coisas a esse menino e o estimulou de diversas maneiras.

A “ROÇA”

A virtude mais aparente que o jovem jornalista parece ter aprendido na cidade natal é a sua humildade. No primeiro ano da faculdade, todos os seus colegas de sala pareceram ter uma surpresa, inclusive eu mesmo. “Eu trabalho na Jovem Pan” me contou em uma de nossas primeiras conversas, sentados em alguma das mesas no terceiro andar da instituição, que é onde ficam as cantinas. Em menos de três meses na metrópole e estudando jornalismo ele, na cara e na coragem, conquistou sua vaga em uma das principais emissoras de rádio da cidade. No mínimo, admirável. Porém, mais importante do que ter conseguido esse emprego em si, foi a discrição com que tratou do assunto. Se ninguém o perguntasse, jamais saberíamos disso. A não ser pelo seu horário de trabalho que, na época, era extremamente volátil: alguns dias entrando as seis da manhã, outros dias as oito da noite. “Lá em casa, sempre foi tudo muito aberto na questão financeira. (...) Ao vir para cá, eu já sabia qual era a condição dos meus pais e sabia que, o mínimo que eu tinha que fazer, era arranjar um jeito de sobreviver por aqui” conta. Isso nunca foi imposto a ele, mas Yan sempre soube que era necessário ajudar de alguma forma.

Essa noção não surgiu do além. Na realidade, o histórico do desenvolvimento dessa sua percepção aguçada para o que reside nas entrelinhas das falas das pessoas vem de muito tempo. Sua infância em Jacutinga foi marcada por um paradoxo claro: enquanto era notoriamente menos endinheirado que as outras crianças na escola particular – que, com muito esforço, seus pais pagavam porque consideravam a educação um grande investimento – a situação se invertia com seus amigos de brincar na rua. A casa de seus pais fica, até hoje, em um dos bairros menos abastados do município. Essa experiência foi muito engrandecedora por vários aspectos. O primeiro deles foi conseguir desassociar o conceito de classes sociais com relacionamentos e afeições. Vivendo nesse hibridismo social e convivendo com integrantes de diferentes classes, ficou muito claro para um Yan, ainda menino, que não importa o que você carrega no bolso, mas sim o que você constrói a partir daquilo que você tem. Com isso, ele também aprendeu que não se pode ter tudo que se quer. Foi aí que ele entendeu, e tomou para si e para o resto de sua vida, a dimensão do termo “conquista”. “Eu sabia, por exemplo, que meu amigo poderia ter um tênis muito mais legal que o meu. Eu queria ter também, eu era criança, é lógico que queria, mas eu sabia que eu não podia falar isso para os meus pais. (...) Se tem uma coisa que eu levo para mim, até que um pouco exageradamente, é que eu nunca, nunca quero decepcionar meus pais” explica isso com os olhos marejados e avermelhados. Seu relacionamento com seus pais é muito estimado. Yan parece entender, com muita clareza, a profundidade do amor deles, que foi expresso através dos investimentos e esforços para que ele conseguisse agarrar todas as oportunidades que viessem a sua frente. É como se alcançar o sucesso profissional e pessoal fosse uma maneira de retribuir o amor inferido por seus genitores. Suas grossas sobrancelhas, antes dessa declaração estavam para cima, no intuito de me perguntar se eu estaria entendendo tudo que estava sendo dito. Uma manobra didática e corporal do seu discurso. Porém ao tomar consciência dessa clareza que ele possui internamente, o sobrolho que ficou levantado até aquele momento de nossa conversa, finalmente, relaxou ao perceber o quão inexplicável e intransmissível é esse relacionamento.

“SINTO FALTA DA IGREJA”

Por volta dos seis ou sete anos de idade, entrou na catequese. Foi nessa época que sua família começou a se aproximar do catolicismo e a frequentar a igreja. Alguns anos se passaram e seus pais, que ainda nao eram religiosamente casados – apenas legalmente – decidiriam ritualizar essa união. O padre, que era muito amigo da família, em uma cerimônia recatada e informal, cantou todo o casamento e a mãe do Yan não entrou exuberante de branco, mas sim, com um vestido azul com o comprimento na altura do joelho. “Foi uma experiência muito interessante, porque eu sou uma das poucas pessoas que presenciou o casamento dos próprios pais” ri.

Com a sua pureza infantil e sem grandes conflitos internos, Yan – acima de qualquer doutrina ou dogmatismo – criou, dentro da igreja, vínculos e vivências muito importantes. “Na missa das crianças, logo depois do que era dito (...) as catequistas organizam teatros, pequenas esquetes, explicando a história que tinha acabado de ser contada. E daí eu entrei no teatro”. Lá ele se encontrou de tal forma, que conseguiu destacar. Esses teatrinhos eram apresentados uma vez por mês em cada uma das comunidades católicas de Jacutinga. A atuação dele se tornou tão requisitada que chegou a um ponto em que quase todo domingo ele estava se apresentando em alguma das comunidades, sendo que ele frequentava, realmente, apenas a matriz, localizada no centro da cidade.

Daí em diante, sua relação com a igreja só foi se tornando mais profunda. Depois do teatro do tipo “historinha”, ele começou a participar de um grupo chamado “Vivência Cristã”, um projeto social da Igreja, que, com o passar do tempo – três ou quatro anos – , ele chegou a ser monitor. “Quando você começa a entrar na igreja assim, é muito diferente. (...) A igreja passou a ter, para mim, um significado diferente. Não é só ‘vou seguir os dogmas essa vai ser minha vida’, pelo contrário, a igreja era um lugar onde eu buscava tranquilidade para refletir sobre aquilo que eu estava fazendo”. Dessa forma, foram surgindo os amigos da igreja, pelos quais ele ainda tem muita consideração.

Outro contraste também foi vivenciado nesse momento. Enquanto ele tinha uma vida espiritual muito ativa, seus amigos de infância eram, em sua maioria, ateus. Os embates sempre existiram, mas com muito respeito. Eles souberam como flexibilizar suas crenças ou a falta delas para a construção de amizades duradouras. “Ainda converso com muitos deles, principalmente quando vou para Jacutinga, comprimento e converso com todo mundo” afirma.

“E Deus?” perguntei. Sabia que sua definição não podia ter o arcaísmo da Igreja Católica Apostólica Romana – aquela que ainda não conseguiu se reinventar e tem perdido muitos fiéis no contexto hiper-moderno do século XXI -, pois, tudo que conversamos, até então, demonstrava que era da sua personalidade estar sempre aberto ao novo, ao desconhecido, ao instigante. “Cara, Deus, para mim, é uma força exterior na qual você vai buscar a sua própria força, a sua força interna. Se Deus for uma pessoa, ele deve estar lá, de braços abertos, esperando você buscar a sua energia, o seu conhecimento para agir da melhor maneira possível na sua vida. Eu não acredito em um Deus que julga, não vejo esse Deus maldoso que é pregado em muitos lugares hoje, que pune e que castiga” disserta.

Para o preconceito da pseudo-intelectualidade hipócrita de muitos paulistanos, fica subentendido, depois de tudo isso, que vir “da roça” não faz de você alguém conservador – no pior sentido dessa palavra. Vir do interior do país faz de você ser muitas coisas. Coisas particulares, individuais, intransferíveis. Faz de você alguém com uma personalidade construída artesanalmente, vicissitudes únicas e características próprias.

O FUTEBOL

–        Eu sou Palmeirense.
–        Por influência de quem?
–        É complicado...

Por várias razões é complicado. Para começar, Yan é filho de pai cruzeirense mas de tio palmeirense. O pai nunca deu muita importância ao futebol, mas o tio fez as vezes de comprar uma camiseta do palmeiras e a dar de presente para seu sobrinho. Tudo cooperou para que Yan torcesse para o Palestra: A década de 1990 foi muito frutífera para o time e, além disso, Jacutinga – apesar de mineira – tem tradição palmeirense. A colonização italiana da cidade fez surgir uma quantidade muito significativa de torcedores do time que representa a Itália nos gramados paulistas. O desinteresse com o futebol mineiro, por parte da cidade, vem do fato de que, por muitos anos, a filial da Globo que transmitia os jogos na cidade era paulista. Atualmente, já é possível escolher qual das filiais – mineira ou paulista – assistir, contudo, a herança deixada por aquela época dividiu Jacutinga entre corinthianos e palmeirenses.

Aliás, por mais que os dois times sejam rivais, existe, dentro do Yan, um corinthiano adormecido, mas apaixonado pelo poder catártico de uma torcida fanática. “Eu sempre gostei de estar no estádio, é algo que eu sempre tive (...) essa força que o futebol tem de mexer com o homem, é fascinante” confessa, e é por isso que, mesmo sendo palmeirense, ele tem uma ligação muito forte com o Corinthians, pela força da sua torcida.

Essa fascinação com o futebol não foi ensinada por ninguém, naturalmente, ele foi se interessando pelo assunto e se dedicou nele. Yan não sabe dizer quando ou porque isso surgiu, e realmente, isso parece ser algo inerente a ele. Foi exatamente esse relacionamento tão intenso com o esporte que o levou a escrever na Gazeta de Jacutinga.

Começou escrevendo semanalmente uma coluna e depois de um tempo, veio o susto: ofereceram a página de esportes para ele. Aceitou. Já acompanhava naturalmente tudo que acontecia, o desafio era conseguir reportar tudo aquilo. Mas, assim como todas as outras oportunidades que surgiram no seu caminho, ele abocanhou. “Eu tinha um público-leitor fiel na Gazeta, toda minha experiência lá foi muito válida, e esse público não pode ser ignorado, hoje escrevo muito menos para lá, mas às vezes ainda mando alguma coisa” relembra.

“BENZINHO”

–        Não dá pra falar porque eu amo o Yan, caralho! Não consigo, não dá pra responder (...) é muito amplo! – irrita-se Nathália
–        É porque ela não me ama... – rebate.
–        Até parece, não é, queridinho?

Seria impossível dissertar sobre o relacionamento desse casal de namorados sem passar por tudo que há de mais piegas sobre o amor. Eles parecem ser a síntese viva daquela comédia romântica açucarada das tardes de domingo. Já aviso desde o começo: quer ler algo dramático e intelectual sobre o amor? Por aqui, leitor, você não vai encontrar nada disso. Sabe aquela frase idiota que diz que os “opostos se atraem”? Sim, é quase um ataque a credibilidade do meu texto ter que citar essas cafonices da sabedoria popular, mas não o faria se não estivesse escrevendo sobre uma situação em que a citação não fosse tão pertinente.

Ele? Como vimos, mineiro, sertanejo, maurício, trabalhador, prático. Diz ele que é “bruto, rústico e sistemático” ao cantar a música permeada por diversas afirmações machistas e provocativas da dupla João Carreiro e Capataz,  no intuito claro de irritar os arraigados feminismos da Nathália.

Ela? Nathália Aguiar, mais paulistana impossível. Roqueira, moradora do bairro do Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, o sotaque não nega: “erres” na ponta da língua, vogais fechadas, e um eventual “mêo” que finaliza uma frase ou outra.

Foi nesse contraste absoluto de superfícies de ambas as personalidades que Yan não conseguiu sustentar seu discurso da brutalidade rústica e sistemática. São daqueles casais que tem apelidos carinhosos, que preparam surpresas românticas, que conhecem os pais um do outro, enfim, que se amam sem medo de quebrar barreiras da discrição.

“Se você vê de fora, a gente é mesmo muito diferente, mas a parte interna, de pensamento e maturidade, a gente é muito parecido” diz Yan, ao que Nathália balança a cabeça em concordância.

“O Yan é muito diferente dos meninos da sala, não tem nem comparação, ele é muito mais maduro (...) enquanto eu estava festejando no começo do ano, por ter passado na faculdade, ele já estava trabalhando na Joven Pan, sabe?” explica, a namorada.

A CABEÇA

Por mais que ele tenha cara de menino mais jovem do que realmente é, o que seduziu Nathália e cativa as pessoas que o cercam não é a beleza exterior, mas sim sua mentalidade e seus planos que parecem estar sempre muito a frente de todos. “Minha maior cobrança, sempre foi comigo mesmo (...) eu não sei porque, mas eu gosto muito de testar os meus limites”. Yan é um adulto de 19 anos de idade. Ele trata as suas responsabilidades com muito respeito e seriedade, e, de algum jeito que ninguém entende, ele ainda não se tornou um chato.  “Maturidade é ter noção do que você é” e isso se percebe claramente nele. Yan sabe exatamente o que ele alcançou e até aonde ele pode chegar. Contudo, isso não é refletido em arrogância ou soberba, o que é surpreendente para quem vê de fora tudo que ele conquistou. Mas, no caso do Yan, a humildade é um problema estrutural, por mais que ele odeie essa desculpa pseudo-marxista de sempre culpar a estrutura, aqui especificamente, o uso desse termo é válido.

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