Pages

domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Fernanda Fantinel


A Voz da Minoria
Fernanda Fantinel



 Nanette Blitz nasceu em 6 de abril de 1929 em Amsterdã, Holanda. Quando pequena, lia muitos livros, gostava de brincar e andar de bicicleta. Não queria ser o centro das atenções, por isso, era muito quieta.
Hoje, aos 84 anos, é um pouco diferente – a menina que antes não gostava de falar, agora dá palestras sobre sua história, desde a época em que vivia em uma viela no bairro de Amsterdã- Zuid, até seus dias atuais morando na cidade de São Paulo. Uma longa trajetória de quem saiu da Holanda, foi alojada em campos de concentrações, se mudou para a Inglaterra e, mais tarde, para o Brasil.          
Apesar de agora andar com a ajuda de uma bengala (se recupera de uma operação no joelho) e ter uma aparência marcada pelo tempo, o jeito e a vivacidade de Nanette a fazem ter ares de alguém muito mais jovem. Ainda se lembra de tudo. Fala bem português, mas percebe-se que não é daqui. Às vezes, troca o termo “os judeus” por “os judaicos”, confunde algumas outras palavras e concordâncias, mas isso não tira a precisão de seus relatos. Seu discurso é treinado, de quem já contou a mesma história muitas vezes, e seu tom de voz não varia muito no decorrer da conversa.     
Em nosso primeiro encontro, falamos sobre sua infância e juventude. Antes da guerra, teve o que considera uma educação moderna. Viajava com frequência para a Suíça e para a Inglaterra, onde alguns parentes viviam. Seu pai, que trabalhava no Banco de Amsterdã, deixava a biblioteca da casa à disposição da família. Sua mãe era sul-africana e havia sido criada na Inglaterra. Não havia proibições. A garota era a filha do meio do casal: tinha um irmão um ano mais velho, Bernard, e outro dois anos mais novo, Willem, que morreu em 1936 – aos 4 anos – por conta de problemas cardíacos.         

Em 1940, quando estourou a guerra, seu pai não tentou mandar a família para o exterior. Acreditava que a Holanda, assim como aconteceu na I Guerra Mundial, permaneceria um território neutro. Nanette não o culpa por isso, já que a maioria da comunidade judaica do local não fazia ideia da proporção que o regime nazista alemão tomaria em outros territórios.       
Mesmo assim, a garota, que tinha apenas 11 anos, lembra-se de ter percebido um nervosismo crescente na mãe, que rasgou todos os documentos da família e disse para os filhos terem cuidado, pois “até as paredes da casa tem ouvidos”.     

Os nazistas bateram em sua porta em setembro de 1943, levando ela e toda a sua família. Foram transportados para o campo provisório de Westerbork, onde ficaram por pouco mais de cinco meses. Depois, seguiram para o campo de concentração Bergen-Belsen. O lugar, apesar de não ter nenhuma câmara de gás, matou mais de 70.000 pessoas no período em que funcionou.        
Nanette ainda recorda dos momentos que viveu lá. “Foi terrível. O terror de saber que eles poderiam tirar uma pessoa a qualquer momento... Qualquer coisa poderia acontecer. Os judeus não eram ninguém perante aos alemães, poderiam fazer o que bem entendiam”, lembra.  Entre suas recordações, lembra-se de ocasiões em que chegou a ficar mais de 36 horas de pé em uma fila, e de suas refeições, que eram ou uma leve sopa de casca de batata, ou uma beterraba branca (também usada na ração de alguns animais).    
Nesta hora, paramos um pouco a entrevista e começamos a conversar amenidades do dia a dia. Isso, no entanto, não dura muito tempo. Quando Nanette me pergunta a data de meu aniversário, e eu respondo “4 de dezembro”, ela me conta emocionada que foi neste mesmo dia, mas em 1944, que seu irmão foi levado do campo de concentração onde estavam – a garota foi, ao longo de sua estadia lá, separada de toda a sua família –, e posteriormente morto à tiros por oficiais nazistas. Ela também me conta que demorou muito tempo para conseguir descobrir essa informação em particular. Passou anos vasculhando documentos de guerra, contatando autoridades alemãs e holandesas, mas apenas recentemente descobriu o verdadeiro destino de seu irmão. Essa descoberta, para ela, causou um misto de alegria – por finalmente conseguir ter uma espécie de conclusão desse ciclo de sua vida – e de tristeza. A senhora, por ter vivido num campo de concentração, sido ameaçada e sentindo o ambiente hostil em que estava, conseguia imaginar muito vividamente o terror que seu irmão, e seus pais, sentiram em seus últimos momentos.            

Não quero transformar a matéria sobre “a colega de Anne Frank”, pois acredito que a história de vida de Nanette é tão rica e importante quanto à da outra garota e não vale ser reduzido a apenas esse fato, mas é inevitável perguntar sobre a relação das duas. Nanette não se irrita, diz que já está acostumada a esse tipo de pergunta, e começa a contar a história das duas, que se cruzaram duas vezes, em momentos extremamente opostos de suas vidas. Conheceu a menina em outubro de 1941, quando estudaram juntas no Liceu Judaico - escola frequentada somente por judeus.  Nanette lembra que Anne não parava de dizer que a garota deveria “parar de mexer nos cabelos e nos botões (de sua roupa)”.  As duas não eram próximas, mas se sentavam perto uma da outra na sala de aula. Anne adorava chamar a atenção, inclusive contou seus admiradores em seu diário, mas Nanette – apesar de considerar Anne uma garota normal e extrovertida – não se lembra de ela ser tão cobiçada assim. Ela não fala, mas parece haver uma certa antipatia mútua entre as duas, pois eram muito diferentes. Esse sentimento mudou, no entanto – e isso fica claro pela mudança nas feições do rosto da mulher ao contar o resto da história – com o passar dos anos e das circunstâncias em que viviam.      
Encontrou-a de novo no campo de concentração Bergen-Belsen, na Alemanha. A última vez que a havia visto, antes disso, fora em 1942, pouco antes de Anne se refugiar em um esconderijo com a família. Nanette demorou a reconhecer a garota, que estava com uma aparência quase cadavérica, pois estava muito magra e careca. Tem certeza de que sua imagem também chocou Anne – quando foi libertada, pesava pouco mais de 30 quilos e tinha 1,69 de altura. “Não passávamos de pele e osso, mas Anne ainda estava convencida de que sobreviveria ao campo”, diz.   
Conversavam algumas vezes, às escondidas, após os oficiais nazistas retirarem os arames farpados que separavam as seções em que estavam. Nanette soube, por meio de outra garota que se encontrava no campo, que a mãe de Anne ainda estava viva, o que contou para a menina.  Nanette também chegou a ver a irmã de Anne, Margot, mas, na época, a garota já estava muito fragilizada.             

Apesar de suas crenças, tanto Anne quanto Margot morreram em março de 1945, cerca de um mês antes de o campo ser libertado por tropas britânicas. As duas sucumbiram a uma epidemia de tifo que vitimou cerca de 17.000 pessoas que estavam naquele lugar.           

No dia 13 de abril de 1945 (a senhora a minha frente ainda se lembra bem dessa data), tropas britânicas chegaram ao campo.  A jovem contou com um pouco de sorte – ela, falando em inglês, pediu para um major britânico enviar uma carta a sua tia, que morava na Grã-Bretanha.        

 Parece, à primeira vista, que a pior fase da vida de Nanette havia acabado, mas não foi bem assim. A garota estava muito fraca, não conseguia se alimentar (seu corpo não estava mais acostumado às quantidades de comida que pessoas ingeriam em situações normais), e, antes de saber se a mensagem foi entregue, contraiu tifo e entrou em coma. Quase morreu. Foi transportada para Amsterdã, mas não pode reencontrar seus parentes. Ficou mais três anos na cidade tratando uma tuberculose e outras doenças causadas pela guerra. Descobriu que foi a única de sua família mais próxima a sobreviver (apenas duas primas suas, ambas ainda crianças, não haviam morrido). Nessa hora, tanto a voz quando as feições de Nanette mudam, fica claro que ela ainda tem dificuldade em lidar com as memórias de seu tempo em Bergen-Belsen. “A mente não é um computador que deleta, a mente continua lembrando e vendo e sabendo”, fala comovida.            
 
No período em que ficou na Holanda, entre 1945 e 1948, recebeu a visita de Otto Frank, pai de Anne. Nanette diz que ele falou com ela sobre publicar o diário da filha, e os dois conversaram sobre os encontros de Nanette com as garotas. “Nos falávamos muito por telefone, mas não tive coragem de visitá-lo depois. Tive três filhos, todos vivos, não me parecia justo ir vê-lo dessa maneira”.   

A essa altura, já tendo falado sobre toda a sua vida até a liberação do campo, decidimos parar um pouco a nossa conversa e marcamos outro encontro para a semana seguinte. No dia seguinte, infelizmente, Nanette me manda um e-mail dizendo que teremos que ser breve em nossa segunda conversa, já que o marido dela, John, iria fazer uma operação de catarata nos olhos e não podia ficar muito tempo sozinho.         

Pergunto se ela não quer se encontrar em algum lugar próximo a casa dela, para facilitar sua locomoção, mas ela escolhe um lugar um pouco mais distante – provavelmente, isso ainda é um resquício que a perseguição nazista deixou em sua mente –, e eu prefiro não insistir.          
Na data marcada, começamos a entrevista a partir do momento em que ela foi morar com uma das irmãs de sua mãe em Londres, em 1948.    

A adaptação à nova vida foi difícil, já que, apesar de já estar livre há mais de três anos, vivia em um sanatório na Holanda e não estava mais acostumada ao convívio em família. A Inglaterra também não tinha noção do que realmente tinha sido o holocausto, já que as notícias, naquela época, não corriam assim tão facilmente. Graças a insistência de sua tia, voltou a estudar. Formou-se na faculdade e começou a trabalhar como secretária bilíngue em um banco na cidade. Conheceu seu futuro marido, John Frederik Konig, em uma festa do emprego, no mesmo ano. Ele estava lá porque um amigo seu também trabalhava no local. Em 1951, ele se mudou para o Brasil - era engenheiro formado, e já havia vivido no Brasil em sua infância – mas Nanette permaneceu na Inglaterra. Continuaram a namorar, se comunicando através de cartas. Em 1953, se casaram e Nanette se mudou para São Paulo, com ele.      

Após morar no Brasil por alguns anos, se mudaram para os Estados Unidos e, mais tarde, para vários outros países da América Latina, antes de fixar residência, de vez, em São Paulo novamente. Tiveram três filhos (hoje, apenas um ainda vive aqui), seis netos, e o terceiro bisneto está a caminho. Nanette, nos primeiros anos de sua volta para cá, era dona de casa. Com o passar do tempo e o crescimento dos filhos – que estavam com, mais ou menos, a idade que ela tinha ao ser levada para Westerbork –, ela me conta que começou a se sentir sufocada por uma necessidade de alertar as pessoas sobre o que aconteceu com ela, para que isso não se repetisse novamente. Passou a dar palestras em escolas e eventos específicos sobre o holocausto. Ela diz que sabe que, muitas vezes, as pessoas sentem mais curiosidade em saber sua história por ter conhecido Anne Frank, mas acredita que, mesmo assim, essa curiosidade é válida para abrir portas sobre a realidade da época. Viaja o mundo inteiro contando a sua vida. O único evento ao qual se recusou a ir foi no dia de abertura do memorial de Bergen-Belsen – nunca mais foi a essa região, apesar de ainda viajar para a Alemanha e para a Holanda –, pois ainda tinha lembranças muito fortes do local, que não conseguiu esquecer. Ela também, em suas palestras, faz questão de conversar com os jovens – maioria do público – sobre eventos atuais que acontecem em seus países. “Os jovens tem que procurar entender a política do país onde vivem, o que acontece com as minorias, pois, quando o país entra em uma situação economicamente difícil, acontece o que aconteceu na Europa”, diz.          
           

Nenhum comentário:

Postar um comentário