A Voz da Minoria
Fernanda Fantinel
Nanette Blitz nasceu em 6 de abril de 1929 em
Amsterdã, Holanda. Quando pequena, lia muitos livros, gostava de brincar e
andar de bicicleta. Não queria ser o centro das atenções, por isso, era muito
quieta.
Hoje, aos 84
anos, é um pouco diferente – a menina que antes não gostava de falar, agora dá
palestras sobre sua história, desde a época em que vivia em uma viela no bairro
de Amsterdã- Zuid, até seus dias atuais morando na cidade de São Paulo. Uma
longa trajetória de quem saiu da Holanda, foi alojada em campos de
concentrações, se mudou para a Inglaterra e, mais tarde, para o Brasil.
Apesar de agora
andar com a ajuda de uma bengala (se recupera de uma operação no joelho) e ter
uma aparência marcada pelo tempo, o jeito e a vivacidade de Nanette a fazem ter
ares de alguém muito mais jovem. Ainda se lembra de tudo. Fala bem português,
mas percebe-se que não é daqui. Às vezes, troca o termo “os judeus” por “os judaicos”,
confunde algumas outras palavras e concordâncias, mas isso não tira a precisão
de seus relatos. Seu discurso é treinado, de quem já contou a mesma história
muitas vezes, e seu tom de voz não varia muito no decorrer da conversa.
Em nosso primeiro
encontro, falamos sobre sua infância e juventude. Antes da guerra, teve o que
considera uma educação moderna. Viajava com frequência para a Suíça e para a
Inglaterra, onde alguns parentes viviam. Seu pai, que trabalhava no Banco de
Amsterdã, deixava a biblioteca da casa à disposição da família. Sua mãe era
sul-africana e havia sido criada na Inglaterra. Não havia proibições. A garota
era a filha do meio do casal: tinha um irmão um ano mais velho, Bernard, e
outro dois anos mais novo, Willem, que morreu em 1936 – aos 4 anos – por conta
de problemas cardíacos.
Em 1940, quando estourou a guerra, seu pai não tentou mandar a família para o exterior. Acreditava que a Holanda, assim como aconteceu na I Guerra Mundial, permaneceria um território neutro. Nanette não o culpa por isso, já que a maioria da comunidade judaica do local não fazia ideia da proporção que o regime nazista alemão tomaria em outros territórios.
Mesmo assim, a
garota, que tinha apenas 11 anos, lembra-se de ter percebido um nervosismo
crescente na mãe, que rasgou todos os documentos da família e disse para os
filhos terem cuidado, pois “até as paredes da casa tem ouvidos”.
Os nazistas bateram em sua porta em setembro de 1943, levando ela e toda a sua família. Foram transportados para o campo provisório de Westerbork, onde ficaram por pouco mais de cinco meses. Depois, seguiram para o campo de concentração Bergen-Belsen. O lugar, apesar de não ter nenhuma câmara de gás, matou mais de 70.000 pessoas no período em que funcionou.
Nanette ainda
recorda dos momentos que viveu lá. “Foi terrível. O terror de saber que eles
poderiam tirar uma pessoa a qualquer momento... Qualquer coisa poderia
acontecer. Os judeus não eram ninguém perante aos alemães, poderiam fazer o que
bem entendiam”, lembra. Entre suas
recordações, lembra-se de ocasiões em que chegou a ficar mais de 36 horas de pé
em uma fila, e de suas refeições, que eram ou uma leve sopa de casca de batata,
ou uma beterraba branca (também usada na ração de alguns animais).
Nesta hora,
paramos um pouco a entrevista e começamos a conversar amenidades do dia a dia.
Isso, no entanto, não dura muito tempo. Quando Nanette me pergunta a data de meu
aniversário, e eu respondo “4 de dezembro”, ela me conta emocionada que foi
neste mesmo dia, mas em 1944, que seu irmão foi levado do campo de concentração
onde estavam – a garota foi, ao longo de sua estadia lá, separada de toda a sua
família –, e posteriormente morto à tiros por oficiais nazistas. Ela também me
conta que demorou muito tempo para conseguir descobrir essa informação em
particular. Passou anos vasculhando documentos de guerra, contatando
autoridades alemãs e holandesas, mas apenas recentemente descobriu o verdadeiro
destino de seu irmão. Essa descoberta, para ela, causou um misto de alegria –
por finalmente conseguir ter uma espécie de conclusão desse ciclo de sua vida –
e de tristeza. A senhora, por ter vivido num campo de concentração, sido
ameaçada e sentindo o ambiente hostil em que estava, conseguia imaginar muito
vividamente o terror que seu irmão, e seus pais, sentiram em seus últimos
momentos.
Não quero
transformar a matéria sobre “a colega de Anne Frank”, pois acredito que a
história de vida de Nanette é tão rica e importante quanto à da outra garota e
não vale ser reduzido a apenas esse fato, mas é inevitável perguntar sobre a
relação das duas. Nanette não se irrita, diz que já está acostumada a esse tipo
de pergunta, e começa a contar a história das duas, que se cruzaram duas vezes,
em momentos extremamente opostos de suas vidas. Conheceu a menina em outubro de
1941, quando estudaram juntas no Liceu Judaico - escola frequentada somente por
judeus. Nanette lembra que Anne não
parava de dizer que a garota deveria “parar de mexer nos cabelos e nos botões
(de sua roupa)”. As duas não eram
próximas, mas se sentavam perto uma da outra na sala de aula. Anne adorava
chamar a atenção, inclusive contou seus admiradores em seu diário, mas Nanette
– apesar de considerar Anne uma garota normal e extrovertida – não se lembra de
ela ser tão cobiçada assim. Ela não fala, mas parece haver uma certa antipatia
mútua entre as duas, pois eram muito diferentes. Esse sentimento mudou, no
entanto – e isso fica claro pela mudança nas feições do rosto da mulher ao
contar o resto da história – com o passar dos anos e das circunstâncias em que
viviam.
Encontrou-a de
novo no campo de concentração Bergen-Belsen, na Alemanha. A última vez que a
havia visto, antes disso, fora em 1942, pouco antes de Anne se refugiar em um
esconderijo com a família. Nanette demorou a reconhecer a garota, que estava
com uma aparência quase cadavérica, pois estava muito magra e careca. Tem
certeza de que sua imagem também chocou Anne – quando foi libertada, pesava
pouco mais de 30 quilos e tinha 1,69 de altura. “Não passávamos de pele e osso,
mas Anne ainda estava convencida de que sobreviveria ao campo”, diz.
Conversavam
algumas vezes, às escondidas, após os oficiais nazistas retirarem os arames
farpados que separavam as seções em que estavam. Nanette soube, por meio de
outra garota que se encontrava no campo, que a mãe de Anne ainda estava viva, o
que contou para a menina. Nanette também
chegou a ver a irmã de Anne, Margot, mas, na época, a garota já estava muito
fragilizada.
Apesar de suas
crenças, tanto Anne quanto Margot morreram em março de 1945, cerca de um mês
antes de o campo ser libertado por tropas britânicas. As duas sucumbiram a uma
epidemia de tifo que vitimou cerca de 17.000 pessoas que estavam naquele lugar.
No dia 13 de
abril de 1945 (a senhora a minha frente ainda se lembra bem dessa data), tropas
britânicas chegaram ao campo. A jovem contou
com um pouco de sorte – ela, falando em inglês, pediu para um major britânico
enviar uma carta a sua tia, que morava na Grã-Bretanha.
Parece, à primeira vista, que a pior fase da
vida de Nanette havia acabado, mas não foi bem assim. A garota estava muito
fraca, não conseguia se alimentar (seu corpo não estava mais acostumado às
quantidades de comida que pessoas ingeriam em situações normais), e, antes de
saber se a mensagem foi entregue, contraiu tifo e entrou em coma. Quase morreu.
Foi transportada para Amsterdã, mas não pode reencontrar seus parentes. Ficou
mais três anos na cidade tratando uma tuberculose e outras doenças causadas
pela guerra. Descobriu que foi a única de sua família mais próxima a sobreviver
(apenas duas primas suas, ambas ainda crianças, não haviam morrido). Nessa
hora, tanto a voz quando as feições de Nanette mudam, fica claro que ela ainda
tem dificuldade em lidar com as memórias de seu tempo em Bergen-Belsen. “A
mente não é um computador que deleta, a mente continua lembrando e vendo e
sabendo”, fala comovida.
No período em que
ficou na Holanda, entre 1945 e 1948, recebeu a visita de Otto Frank, pai de
Anne. Nanette diz que ele falou com ela sobre publicar o diário da filha, e os
dois conversaram sobre os encontros de Nanette com as garotas. “Nos falávamos
muito por telefone, mas não tive coragem de visitá-lo depois. Tive três filhos,
todos vivos, não me parecia justo ir vê-lo dessa maneira”.
A essa altura, já
tendo falado sobre toda a sua vida até a liberação do campo, decidimos parar um
pouco a nossa conversa e marcamos outro encontro para a semana seguinte. No dia
seguinte, infelizmente, Nanette me manda um e-mail dizendo que teremos que ser breve
em nossa segunda conversa, já que o marido dela, John, iria fazer uma operação
de catarata nos olhos e não podia ficar muito tempo sozinho.
Pergunto se ela
não quer se encontrar em algum lugar próximo a casa dela, para facilitar sua
locomoção, mas ela escolhe um lugar um pouco mais distante – provavelmente,
isso ainda é um resquício que a perseguição nazista deixou em sua mente –, e eu
prefiro não insistir.
Na data marcada,
começamos a entrevista a partir do momento em que ela foi morar com uma das
irmãs de sua mãe em Londres, em 1948.
A adaptação à
nova vida foi difícil, já que, apesar de já estar livre há mais de três anos,
vivia em um sanatório na Holanda e não estava mais acostumada ao convívio em
família. A Inglaterra também não tinha noção do que realmente tinha sido o
holocausto, já que as notícias, naquela época, não corriam assim tão
facilmente. Graças a insistência de sua tia, voltou a estudar. Formou-se na
faculdade e começou a trabalhar como secretária bilíngue em um banco na cidade.
Conheceu seu futuro marido, John Frederik Konig, em uma festa do emprego, no
mesmo ano. Ele estava lá porque um amigo seu também trabalhava no local. Em
1951, ele se mudou para o Brasil - era engenheiro formado, e já havia vivido no
Brasil em sua infância – mas Nanette permaneceu na Inglaterra. Continuaram a
namorar, se comunicando através de cartas. Em 1953, se casaram e Nanette se mudou
para São Paulo, com ele.
Após morar no
Brasil por alguns anos, se mudaram para os Estados Unidos e, mais tarde, para
vários outros países da América Latina, antes de fixar residência, de vez, em
São Paulo novamente. Tiveram três filhos (hoje, apenas um ainda vive aqui),
seis netos, e o terceiro bisneto está a caminho. Nanette, nos primeiros anos de
sua volta para cá, era dona de casa. Com o passar do tempo e o crescimento dos
filhos – que estavam com, mais ou menos, a idade que ela tinha ao ser levada
para Westerbork –, ela me conta que começou a se sentir sufocada por uma
necessidade de alertar as pessoas sobre o que aconteceu com ela, para que isso
não se repetisse novamente. Passou a dar palestras em escolas e eventos
específicos sobre o holocausto. Ela diz que sabe que, muitas vezes, as pessoas
sentem mais curiosidade em saber sua história por ter conhecido Anne Frank, mas
acredita que, mesmo assim, essa curiosidade é válida para abrir portas sobre a
realidade da época. Viaja o mundo inteiro contando a sua vida. O único evento
ao qual se recusou a ir foi no dia de abertura do memorial de Bergen-Belsen –
nunca mais foi a essa região, apesar de ainda viajar para a Alemanha e para a Holanda
–, pois ainda tinha lembranças muito fortes do local, que não conseguiu
esquecer. Ela também, em suas palestras, faz questão de conversar com os jovens
– maioria do público – sobre eventos atuais que acontecem em seus países. “Os
jovens tem que procurar entender a política do país onde vivem, o que acontece
com as minorias, pois, quando o país entra em uma situação economicamente
difícil, acontece o que aconteceu na Europa”, diz.
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