Contradições bem resolvidas
Helen atravessou
a rua e chegando ao antigo colégio, exclamou: “Sete horas?! É a primeira vez em
três anos que não chego atrasada aqui”.
O corredor
pequeno abrigava doze pessoas, divididas em três grupos, de acordo com as
faixas etárias de cada um. Os assuntos, no entanto, não variavam muito: “E
você, o que está fazendo? Tem notícias do fulano? E do ciclano? Fiquei sabendo
que o beltrano...”, era a Manhã de Oração dos antigos alunos, organizada pelo
Colégio São Francisco Xavier, onde ela fez o Ensino Médio e alguns bons amigos.
Aos poucos mais pessoas iam chegando, e todas aguardavam a saída do ônibus para
a chácara, que fica há quarenta minutos dali. A chegada ao local é sempre
carregada de lembranças dos tempos em que cada um ainda era aluno. Helen correu
para onde estavam os cachorros que fazem a segurança do lugar. Eles estavam
presos, mas passou as mãos por entre as grades e começou a acariciá-los,
chamando-os pelo nome.
“Vamos?”,
chamaram os monitores. O primeiro exercício estava para começar. Uma sala com
muitas almofadas e uma lareira que, reza a lenda, ninguém nunca viu acesa,
acomodava os jovens. O padre comandava o violão e eles cantavam músicas de anos
atrás. Antes da primeira leitura bíblica, uma breve rodada de apresentações: “Eu
sou a Helen, me formei em 2010, faço faculdade de Letras e trabalho no Museu do
Ipiranga”. Mas a apresentação nem era tão necessária: mais da metade das
pessoas já conhecia a menina do cabelo loiro, olhos verdes, calças largas,
tênis e alargador.
Essa não era a
primeira atividade da qual ela participava. Enquanto aluna fazia parte do grupo
de jovens, além de voluntariado em comunidades carentes do interior de São
Paulo durante o período de férias. “De tudo, talvez o que me caracterize mais
seja a minha formação, que recebi no colégio em que eu estudei. Tentar dar meu
melhor: sempre buscar o melhor de mim nas coisas que faço”. Helen, hoje com 19
anos, participa da ONG Teto, que constrói casas emergenciais nas favelas de São
Paulo: “Em determinados momentos, algumas coisas me ‘chamam’. Ano passado senti
um chamado muito forte do Teto”. E conta com entusiasmo sobre a primeira casa
que ajudou a construir. “Era de uma família muito pobre. Foi importante porque
pude mostrar para as pessoas que elas fazem a diferença. E que nós não somos
indiferentes à situação precária delas, que também achamos um absurdo que chova
em suas cabeças”.
Além da ONG,
também faz trabalho voluntário em um albergue, localizado no bairro da Mooca,
onde mais de 1200 homens são acolhidos: “Lá faço de tudo: desde dobrar lençol,
até limpar o chão e arrumar as coisas para o bazar, que acontece mensalmente”. Toda
essa energia tem uma explicação. Helen não tem muita certeza sobre o futuro,
mas tem uma visão muito clara sobre o que não deseja ser. “Eu não quero virar
uma pessoa quadrada, que se acostumou com a pobreza, com as injustiças, com
essa vida ‘bege’. Sei que eu não quero ter uma vida mais ou menos”.
Pode-se dizer que
a vontade de se destacar da multidão não vem de hoje. Na quarta série (agora equivalente
ao quinto ano do Ensino Fundamental), a menina foi expulsa da escola em que
estudava: “Eu tive fases. Na minha primeira fase, já sabia que ia ter que mudar
de colégio e achava que isso seria horrível. Estava meio perturbada. Levava
advertências e suspensões sempre. Pensava, ‘já que eu vou sair mesmo’. Não
estudava. Tinha muita dificuldade em Matemática e aprontava muito. Roubava a
lancheirinha das meninas e jogava no telhado. Uma vez, fui chamada na sala da
diretora porque batia em uns moleques muito mais velhos. Não me encaixava no
grupo de lá. Mas foi divertido! Hoje eu vejo como uma coisa divertida”.
A fase adulta não
chegou de uma hora para outra. Mesmo durante o Ensino Médio, ainda era chamada
na sala da diretora por suas brincadeiras, como, por exemplo, trancar a
professora de Geografia na sala, ou jogar sabão em pó na fonte da escola. Mas a
conversa com uma professora fez com que repensasse sua postura: “Eu e dois
amigos fomos chamados por ela para conversar. Ela disse que nós riamos muito, e
quem ri muito quer esconder alguma coisa. Talvez nós estivéssemos escondendo o
medo de crescer”.
A moça traz um
sorriso no canto da boca ao lembrar porque escolheu fazer faculdade de Letras:
sempre se destacou na escola por ser a única que tinha interesse por leitura,
respeitava muito os professores de Português. Com treze anos já se interessava
por Chico Buarque e Caetano Veloso. Era boa na escrita e sabia muito bem
elaborar uma redação. Buscava assistir documentários que hoje assiste na faculdade:
por um lado, infantil, por outro, esforçava-se para ser adulta.
No entanto, seria
impossível mergulhar em sua personalidade sem falar de seus ideais políticos e
religiosos, com os quais lida muito bem. Sobre a igreja, ela acredita em
mudanças. Não espera que elas venham do topo (por exemplo, fica feliz com o
fato do novo Papa ser jesuíta, mas tem plena consciência de que ele não é um
revolucionário) e entende que existe um lado que as pessoas nunca veem: “Você
pensa em igreja e o que vem a cabeça? Um padre velho, conservador, chato,
rabugento, que vai dizer que você tem culpa. Ninguém pensa que tem gente com
vinte anos, ou com noventa, mas que possui outra forma de pensar. Existe um
lado da igreja muito positivo e que faz bem às pessoas”.
Ela também
participa de protestos como o que aconteceu contra o pastor Marco Feliciano e a
chamada Marcha das Vadias, a favor dos direitos das mulheres: “Meu protesto não
era contra o pastor Marco Feliciano. Meu protesto era contra o Marco Feliciano
e as ideias que ele traz. Estava lá porque o considero muito ultrapassado e sem
a menor consistência ou competência para representar qualquer minoria – que
deveria ser o trabalho dele. Da minha parte não era um movimento contra a
religião nem as crenças de ninguém”. Nas últimas semanas tem frequentado também
a todos os atos contra o aumento da tarifa da passagem. É uma grande incentivadora
do movimento.
“Espera aí que eu
vou fazer um brigadeiro”, disse levantando. Após a Manhã de Oração, andou do
colégio até em casa. Sua casa é frequentada por muitos amigos, e já ficou
conhecida entre eles como um ponto de encontro. Ela vive com a mãe e a irmã
mais velha, e tem a sala de jantar e o quarto cheio de livros. Está fazendo um
curso de massagem e pensa em ingressar nesse mercado. Também trabalha em uma
agência de eventos coorporativos, com festas de empresas e dá aulas
particulares. No entanto, seu estágio “oficial” é no Museu Paulista: “Tenho o
privilégio de trabalhar com uma senhorinha de noventa e um anos. Ela é
arqueóloga, a professora Margarida Andreatta. Meu trabalho é organizar toda a obra dela, e estou
super apaixonada porque sinto que é uma coisa importante. Sempre quis trabalhar
no Museu, já que cresci aqui no bairro. Costumava descer a rampa do Parque de
skate e me estatelava toda no chão”.
Risos, depois
silêncio. Ela raspa o fundo da lata de leite condensado com a colher e diz:
“Você não vai me perguntar do grego? Todo mundo me pergunta do grego!”.
Acontece que Helen não é uma estudante de Letras qualquer. Sua opção foi
estudar a língua grega, e isso costuma despertar muito a curiosidade das outras
pessoas. “Existe uma disciplina dentro do ciclo básico da Letras chamado Introdução
aos Estudos Clássicos, e minha professora era muito boa. Quando você entende a
cultura grega, percebe que eles tinham valores muito legais de serem estudados,
e me senti muito atraída. Ela é toda pautada nos valores de equilíbrio e de
lugar público. Depois que começa a entender a cabeça do povo helênico, não quer
parar mais de estudar”.
Helen é surpreendente
em todos os sentidos. É a primeira a se oferecer para qualquer trabalho pesado
e, quando menos se espera, para no meio da rua para distribuir carinhos em um
gato perdido. É do tipo que não fica em casa: prefere correr o risco de sentir
o efeito de quatro bombas de gás lacrimogênio, como de fato sentiu, do que
deixar a história acontecer sem se sentir parte dela. É jovem em todos os
aspectos possíveis: bonita, cheia de ideais, de vontade, de bom humor, de
amigos. Possui uma característica rara: sua energia preenche os espaços em
branco dos lugares por onde passa.
Talvez por isso
consiga interagir com o mundo e fazer dele um lugar um pouco melhor.
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