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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Ana Flávia Bardella


Contradições bem resolvidas



Helen atravessou a rua e chegando ao antigo colégio, exclamou: “Sete horas?! É a primeira vez em três anos que não chego atrasada aqui”.
O corredor pequeno abrigava doze pessoas, divididas em três grupos, de acordo com as faixas etárias de cada um. Os assuntos, no entanto, não variavam muito: “E você, o que está fazendo? Tem notícias do fulano? E do ciclano? Fiquei sabendo que o beltrano...”, era a Manhã de Oração dos antigos alunos, organizada pelo Colégio São Francisco Xavier, onde ela fez o Ensino Médio e alguns bons amigos. Aos poucos mais pessoas iam chegando, e todas aguardavam a saída do ônibus para a chácara, que fica há quarenta minutos dali. A chegada ao local é sempre carregada de lembranças dos tempos em que cada um ainda era aluno. Helen correu para onde estavam os cachorros que fazem a segurança do lugar. Eles estavam presos, mas passou as mãos por entre as grades e começou a acariciá-los, chamando-os pelo nome. 
“Vamos?”, chamaram os monitores. O primeiro exercício estava para começar. Uma sala com muitas almofadas e uma lareira que, reza a lenda, ninguém nunca viu acesa, acomodava os jovens. O padre comandava o violão e eles cantavam músicas de anos atrás. Antes da primeira leitura bíblica, uma breve rodada de apresentações: “Eu sou a Helen, me formei em 2010, faço faculdade de Letras e trabalho no Museu do Ipiranga”. Mas a apresentação nem era tão necessária: mais da metade das pessoas já conhecia a menina do cabelo loiro, olhos verdes, calças largas, tênis e alargador.
Essa não era a primeira atividade da qual ela participava. Enquanto aluna fazia parte do grupo de jovens, além de voluntariado em comunidades carentes do interior de São Paulo durante o período de férias. “De tudo, talvez o que me caracterize mais seja a minha formação, que recebi no colégio em que eu estudei. Tentar dar meu melhor: sempre buscar o melhor de mim nas coisas que faço”. Helen, hoje com 19 anos, participa da ONG Teto, que constrói casas emergenciais nas favelas de São Paulo: “Em determinados momentos, algumas coisas me ‘chamam’. Ano passado senti um chamado muito forte do Teto”. E conta com entusiasmo sobre a primeira casa que ajudou a construir. “Era de uma família muito pobre. Foi importante porque pude mostrar para as pessoas que elas fazem a diferença. E que nós não somos indiferentes à situação precária delas, que também achamos um absurdo que chova em suas cabeças”.
Além da ONG, também faz trabalho voluntário em um albergue, localizado no bairro da Mooca, onde mais de 1200 homens são acolhidos: “Lá faço de tudo: desde dobrar lençol, até limpar o chão e arrumar as coisas para o bazar, que acontece mensalmente”. Toda essa energia tem uma explicação. Helen não tem muita certeza sobre o futuro, mas tem uma visão muito clara sobre o que não deseja ser. “Eu não quero virar uma pessoa quadrada, que se acostumou com a pobreza, com as injustiças, com essa vida ‘bege’. Sei que eu não quero ter uma vida mais ou menos”.
Pode-se dizer que a vontade de se destacar da multidão não vem de hoje. Na quarta série (agora equivalente ao quinto ano do Ensino Fundamental), a menina foi expulsa da escola em que estudava: “Eu tive fases. Na minha primeira fase, já sabia que ia ter que mudar de colégio e achava que isso seria horrível. Estava meio perturbada. Levava advertências e suspensões sempre. Pensava, ‘já que eu vou sair mesmo’. Não estudava. Tinha muita dificuldade em Matemática e aprontava muito. Roubava a lancheirinha das meninas e jogava no telhado. Uma vez, fui chamada na sala da diretora porque batia em uns moleques muito mais velhos. Não me encaixava no grupo de lá. Mas foi divertido! Hoje eu vejo como uma coisa divertida”.
A fase adulta não chegou de uma hora para outra. Mesmo durante o Ensino Médio, ainda era chamada na sala da diretora por suas brincadeiras, como, por exemplo, trancar a professora de Geografia na sala, ou jogar sabão em pó na fonte da escola. Mas a conversa com uma professora fez com que repensasse sua postura: “Eu e dois amigos fomos chamados por ela para conversar. Ela disse que nós riamos muito, e quem ri muito quer esconder alguma coisa. Talvez nós estivéssemos escondendo o medo de crescer”.
A moça traz um sorriso no canto da boca ao lembrar porque escolheu fazer faculdade de Letras: sempre se destacou na escola por ser a única que tinha interesse por leitura, respeitava muito os professores de Português. Com treze anos já se interessava por Chico Buarque e Caetano Veloso. Era boa na escrita e sabia muito bem elaborar uma redação. Buscava assistir documentários que hoje assiste na faculdade: por um lado, infantil, por outro, esforçava-se para ser adulta.
No entanto, seria impossível mergulhar em sua personalidade sem falar de seus ideais políticos e religiosos, com os quais lida muito bem. Sobre a igreja, ela acredita em mudanças. Não espera que elas venham do topo (por exemplo, fica feliz com o fato do novo Papa ser jesuíta, mas tem plena consciência de que ele não é um revolucionário) e entende que existe um lado que as pessoas nunca veem: “Você pensa em igreja e o que vem a cabeça? Um padre velho, conservador, chato, rabugento, que vai dizer que você tem culpa. Ninguém pensa que tem gente com vinte anos, ou com noventa, mas que possui outra forma de pensar. Existe um lado da igreja muito positivo e que faz bem às pessoas”.
Ela também participa de protestos como o que aconteceu contra o pastor Marco Feliciano e a chamada Marcha das Vadias, a favor dos direitos das mulheres: “Meu protesto não era contra o pastor Marco Feliciano. Meu protesto era contra o Marco Feliciano e as ideias que ele traz. Estava lá porque o considero muito ultrapassado e sem a menor consistência ou competência para representar qualquer minoria – que deveria ser o trabalho dele. Da minha parte não era um movimento contra a religião nem as crenças de ninguém”. Nas últimas semanas tem frequentado também a todos os atos contra o aumento da tarifa da passagem. É uma grande incentivadora do movimento.
“Espera aí que eu vou fazer um brigadeiro”, disse levantando. Após a Manhã de Oração, andou do colégio até em casa. Sua casa é frequentada por muitos amigos, e já ficou conhecida entre eles como um ponto de encontro. Ela vive com a mãe e a irmã mais velha, e tem a sala de jantar e o quarto cheio de livros. Está fazendo um curso de massagem e pensa em ingressar nesse mercado. Também trabalha em uma agência de eventos coorporativos, com festas de empresas e dá aulas particulares. No entanto, seu estágio “oficial” é no Museu Paulista: “Tenho o privilégio de trabalhar com uma senhorinha de noventa e um anos. Ela é arqueóloga, a professora Margarida Andreatta. Meu trabalho é organizar toda a obra dela, e estou super apaixonada porque sinto que é uma coisa importante. Sempre quis trabalhar no Museu, já que cresci aqui no bairro. Costumava descer a rampa do Parque de skate e me estatelava toda no chão”.
Risos, depois silêncio. Ela raspa o fundo da lata de leite condensado com a colher e diz: “Você não vai me perguntar do grego? Todo mundo me pergunta do grego!”. Acontece que Helen não é uma estudante de Letras qualquer. Sua opção foi estudar a língua grega, e isso costuma despertar muito a curiosidade das outras pessoas. “Existe uma disciplina dentro do ciclo básico da Letras chamado Introdução aos Estudos Clássicos, e minha professora era muito boa. Quando você entende a cultura grega, percebe que eles tinham valores muito legais de serem estudados, e me senti muito atraída. Ela é toda pautada nos valores de equilíbrio e de lugar público. Depois que começa a entender a cabeça do povo helênico, não quer parar mais de estudar”.
Helen é surpreendente em todos os sentidos. É a primeira a se oferecer para qualquer trabalho pesado e, quando menos se espera, para no meio da rua para distribuir carinhos em um gato perdido. É do tipo que não fica em casa: prefere correr o risco de sentir o efeito de quatro bombas de gás lacrimogênio, como de fato sentiu, do que deixar a história acontecer sem se sentir parte dela. É jovem em todos os aspectos possíveis: bonita, cheia de ideais, de vontade, de bom humor, de amigos. Possui uma característica rara: sua energia preenche os espaços em branco dos lugares por onde passa.
Talvez por isso consiga interagir com o mundo e fazer dele um lugar um pouco melhor. 

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