Pages

domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Nathália Giordano


Era madrugada quando recebi um convite para conhecer um novo grupo de amigos. Como estava disposta, resolvi aceitar. Foi uma festa, no centro da cidade. Eram seis amigos, todos artistas livres para amar. Uma menina em particular chamou a minha atenção. Clarice Schiller a caçula do grupo, com apenas 16 anos, que tentava se infiltrar e aparentava estar à vontade. Mas, observando atentamente era possível perceber que a realidade era outra. Não era um comportamento natural, a menina se esforçava para se encaixar junto aos amigos “cults” e despojados.

De pele branca, cabelos castanhos e olhos claros, Clarice vestia um short jeans, meia calça preta e uma blusa decotada, aparentemente sem sutiã. Seus peitos grandes chamavam a atenção dos que participavam dessa festa intimista. Nos pés, nenhum calçado - assim como todos ao seu redor.

Os amigos se tocavam delicadamente em um clima romântico-amigável. Sem pudor, alguns deles se beijavam, como se estivessem apenas conversando, como se fossem amigos contando como foi o dia de trabalho.

Eram todos magros, na reunião de sexta-feira não houve preocupação com o cardápio. Eles apenas bebiam e fumavam – vodka, cerveja e maconha. Os olhos vermelhos anunciavam o entorpecimento, mas as palavras pronunciadas por eles eram coerentes – ditas em ritmo lento.

Observando atentamente, meus olhos se voltaram para Clarice que conversava em tom de voz sobressalente. Sem ter consciência, ela pedia por atenção. Queria contar histórias e os amigos mais velhos não estavam interessados naquele momento. Educadamente, permaneci encarando-a e então a conversa passou a ser direcionada para mim.

Era notável a diferença de idade entre ela e os outros, mas percebi que seria ofensivo questioná-la na frente do grupo, de um assunto que costuma incomodar os mais novos que buscam se enturmar.

A conversa de Clarice realmente não estava tão interessante, mas continuei fascinada pelo “patinho feio” do grupo. Contou-me sobre a escola e sobre os pais que não se importavam com sua ausência. Tentava tocar a todos de maneira natural, como era o astral da festa. Porém era perceptível que não estava à vontade. O toque acontecia de maneira dura e rápida, no rosto um sorriso acuado.

Ela é completamente livre, não somente no amor, mas pelos pais que a deixam solta por acreditarem na responsabilidade de sua filha. Aos poucos, também fiquei sabendo que a mãe de Clarice não gosta de se preocupar – portanto, preferiu não se sentir responsável em saber do paradeiro da filha. Sendo assim, a menina vaga pela madrugada de São Paulo sem lenço nem documento.

Clarice me contou que sempre se sentiu em liberdade plena, não se recorda de momentos em que sua mãe – pedagoga de profissão – a proibiu de participar de algum programa. Provavelmente, esse comportamento ocorre pela relação existente nessa família de artistas. O pai, fotógrafo. A mãe, bailarina. E ela, uma menina sem pretensões de uma profissão no futuro.

“Meus pais são “sussas” (tranqüilos), eles não se preocupam em saber onde estou e nem em ver minhas notas, porque eu nunca dei muito trabalho. E também porque não teriam moral para isso, meu pai repetiu o segundo colegial”.

Clarice está de recuperação de todas as exatas do colégio – matemática, física e química. E de história também. Não tomou bronca e nem ficou de castigo.

Da matéria de sexo, amor e drogas, ela entende bem. A conversa perambulou entre esses assuntos durante um bom tempo. “Ah, fumo sempre sim! Quase todas as noites, porque me relaxa e eu durmo bem, mas tenho que sair de casa e acender lá no jardim”. Os pais devem imaginar, mas esse assunto nunca foi pauta dentro de casa. Aliás, esse, nem drogas e nem sexo.

Em meia hora de conversa, Clarice convence ser mais velha – discorre facilmente sobre suas experiências sexuais. “Já fui para cama com homens e mulheres, inclusive os dois juntos. Isso é amor, sabe? Se temos vontade, por que seria errado?” “Me masturbo há um bom tempo, nem sei desde quando. Nunca ouvi ninguém em casa dizer que era pecado. Ainda bem, né? Já imaginou essas meninas que ficam se sentindo mal por se tocarem?” Mas, na carteira de identidade, Clarice tem apenas 16 anos.

Sua primeira vez foi há dois anos com uma amiga do colégio. Uma loira, alta e um ano mais velha que ela. Clarice não se constrangeu em me contar essa história, disse que foi bom e que o sexo fica melhor a cada dia.

Para ilustrar a conversa, percebi que os casais tinham mudado. Os beijos aconteciam, mas nesse momento, entre pessoas diferentes. Fiquei entretida. Clarice explicou: “Aqui é assim, somos todos livres. O amor não pode ser preso”. De longe, um tutor mais velho a observava, acenando com a cabeça, como se dissesse “Isso, aprendeu direito!”

No rádio, quer dizer, na vitrola tocava Tim Maia. “Jacarezinho, avião!”. Não estavam dançando, ou essa era um tipo de dança que eu não conheço. As pessoas mexiam alguma parte do corpo suavemente. Ou os pés, ou as mãos, mas não saiam do lugar.

Clarice não estava interessada na música, tampouco na dança. Parece-me que ela não levava jeito para esses movimentos. Deve ser por isso que preferiu conversar comigo, até a hora em que o tutor – que comentei um pouco atrás – pegou-a em suas mãos e eles começaram a se beijar.

Já eram 5 horas da manhã, achei melhor ir embora.
Passaram algumas semanas, encontrei Clarice em uma aula aberta de circo na Vila Madalena. Incrível o jeito que ela tem para malabarismos. Tinham muitas pessoas, algumas foram só para assistir e outras, inevitavelmente, se tornaram protagonistas. Clarice se mantinha concentrada nas argolas que jogava para o alto e gostava dos olhares se voltavam para ela.

Depois da aula, sentamos em um bar chamado Puxadinho da Praça para tomar uma cerveja e conversar. O ambiente estava animado e ela um pouco distraída e preocupada com a briga que teve com a mãe e com a prova de história que ia fazer na manhã do dia seguinte.

Sua roupa estava mais discreta e não aparentava mais tão descolada. Vestia uma calça jeans, uma bata branca, bota de camurça e jaqueta de couro preta. O cabelo estava preso de um lado e ainda úmido da chuva que caiu no final da tarde dessa quinta-feira.

A briga com a mãe aconteceu porque Clarice quer alugar um apartamento com uma amiga na Vila Mariana, os pais moram no Embu das Artes e ela sofre cada vez que quer vim para o centro da cidade. O pai até entendeu o lado da filha, mas disse que a grana estava curta para bancar outra casa. A mãe achou inadmissível e se sentiu ofendida.

“Minha mãe ficou p. da vida, onde já se viu quer morar fora de casa... aqui tem tudo o que você precisa!” explicou Clarice, que ainda disse: “Vou arranjar um emprego e largar a escola. Tem umas lojas caras que pagam bem... Sei lá... Vai ver que da pra descolar um “apê” pequeno”.

No final da frase, ela virou o copo de cerveja. Estava com raiva e parecia também chateada, frustrada por não ter controle total de sua vida. Nesse momento seu celular tocou.

“Alô? Oi mãe... Olha eu nem vou perder meu tempo com você agora. Vou dormir fora hoje. Boa noite!” e desligou o telefone.

Ela olhou para mim, um pouco constrangida e disse que ainda nem sabia onde iria passar a noite. Falou que gostava dessa incerteza, sentia uma adrenalina nas pequenas aventuras do dia-a-dia.

Para deixar a conversa mais descontraída, perguntei sobre sua vida afetiva. Clarice me contou que estava apaixonada pelo amigo mais velho – o tutor que comentei alguns parágrafos atrás. Disse que ele era demais, que se preocupava com a satisfação dela e era bom de cama. Falou também que ele a ensinava coisas novas todos os dias – malabarismos, posições sexuais, filmes alternativos, lugares incríveis na cidade, pessoas interessantes...
“Eu queria fugir com ele. Temos planejado isso, mas, antes de qualquer coisa, preciso me formar”.

Clarice contou que queria fugir com ele para Amsterdam e que depois iriam para Barcelona. Viveriam com empregos que conseguissem por lá e que encontrariam uma mulher para morar com eles. Assim como em “Vicky, Christina, Barcelona” – filme preferido dela.       

O discurso me pareceu insano. Minutos atrás o apartamento na Vila Mariana era a meta de vida, para ser feliz precisaria morar perto do centro da cidade e ter um emprego que permitisse que ela se sustentasse. Agora, ela diz que está esperando sua formatura para fugir para a Europa com o tutor maluco. Sem falar que ter um diploma é o menor dos problemas, a complicação maior seria ir para a Europa sem a autorização dos pais.

Ela continuou por um bom tempo contando como seria a viagem. Eles seriam nômades, iriam escolher o destino na hora de se mudar, arranjariam empregos de um mês, na hora do aperto viveriam na rua, pediriam comida.

“Estou cansada dessa vida, as pessoas do meu colégio só querem saber de ter dinheiro. Comprar carros, casas e celulares novos. Fazem fofoca de tudo, “to” cansada disso! Quero viver livre com gente legal que se ama!”

Clarice chamou o garçom e pediu outra cerveja e um “CDB” – cu de burro, limão espremido com sal. Disse que tomaríamos juntas, porque é grande para uma pessoa só.

Esse bar que estávamos na Vila Madalena é incrível e alternativo. Só tinham pessoas divertidas. Eu já tinha ido algumas vezes, mas me interessei em saber que outros lugares desse tipo existem por aí.

Clarice me contou que sai muito na Vila Madalena – Centro Cultural Rio Verde, Espaço Urucum e Mercearia São Pedro. Disse também que sempre vai às festas Talco Bells. Gosta de música brasileira e um pouco de rock. Ela toca violão, mas diz que é só na brincadeira – nunca fez aula.

 O bar inteiro já tinha cumprimentado Clarice. Nesse momento chega outra amiga dela – Marcela de 18 anos que parecia dona do lugar. As duas se abraçaram, sorriram e Clarice disse que ia encontrá-la daqui um tempo na Praça para “acenderem um”.

A amiga desapareceu na aglomeração do bar e em instantes vi Clarice se distrair e esquecer de todo o planejamento – não planejado – de vida, típico da idade ou típico de Clarice. 
Quatro cervejas e ela já não se lembrava mais da prova de história, da viagem para Amsterdam, da mãe, do apartamento na Vila Mariana.

Clarice é uma “bon vivant”. Como diria Vinícius de Moraes “Um novo dia vem nascendo. Um novo sol já vai raiar. Parece a vida, rompendo em luz, e que nos convida a amar!”. Ou seja, para que se preocupar tanto, para que decidir o que fazer para o resto da vida? O melhor deve ser seguir vivendo tranquilamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário