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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Marina Panizza


Invenções mentais



“Agora nós temos que subir lá”, diz José Fernando Amaral. Estava referindo-se aos ajudantes que teriam que subir no telhado. Sem notar, ele se colocava no meio da ação. Infelizmente, foi exatamente subindo num telhado que ele deixou de subir em qualquer telhado. Zé Fernando, como é conhecido o arquiteto e marceneiro, é tetraplégico, e está numa uma cadeira de rodas há 13 anos.
Quando cheguei a sua casa, alta e arborizada, no bairro da Previdência, no Butantã, ele estava mexendo no computador, óculos sobre o nariz. Arrastando lentamente o mouse com os dedos fechados ele procurava no Google alguém que pudesse consertar sua máquina de lavar. Pede para um amigo discar o número. “Ó Marina, eu não consigo ligar pra lugar nenhum”, me explica Zé. “Mas quem fala é ele”, garantiu o amigo João Baptista, que conhece desde 74, “ele contrata o serviço, contrata o material”.  
Até 2000, Zé Fernando era sócio do irmão numa fábrica de escadas de madeira chamada Madeira Viva. Em abril daquele ano, eles estava fazendo um show room, uma loja demonstrativa, na rua Vital Brasil, no Butantã. Durante a montagem, quando estava em cima do telhado trocando telhas velhas, uma delas quebrou e ele caiu de aproximadamente quatro metros de altura. Teve uma lesão de medula na altura da C5, a quinta vertebra, perdendo o movimento do tórax para baixo, conservando apenas um movimento precário dos braços. As mãos, no entanto, permanecem fechadas, sem autonomia.
Ao olhar para o lado de fora, João vê um peça de plástico grande e branca.
-Ah chegou o policarbonato Zé?
- Chegou, fui lá buscar. – diz referindo-se ao fato de ter ido buscar a peça de carro com seu empregado Francisco.
As nove e meia da manhã, Chico, seu ajudante há pouco mais de 3 meses, lhe dá um remédio, junto de um copo d’água. “Remedinho...alguém aceita?” , brinca Zé. Em seguida, toma um copo de leite. Apoia o braço direito na lateral da cadeira de rodas e faz um esforço para se movimentar, jogando a cabeça para trás. Parece querer ajudar seu corpo a engolir melhor o medicamento. Não consegue segurar nada com as mãos; consegue levar alguns objetos até a boca equilibrando-os com as costas das duas mãos.
João pensa em pessoas que possam consertar a máquina de Zé. Ele, no entanto, não quer mais saber de telefonemas, quer começar a trabalhar: “Eu tô querendo é atacar esse policarbonato, viu!”. O que ele tinha programado para aquele dia era completar a cobertura de sua oficina. A pequena oficina encontra-se num corredor na lateral da casa. Resume-se a uma bancada de madeira, cheia de ferramentas e uma serra retrátil, localizada embaixo da bancada. “Essa máquina aqui é projeto do Zé”, diz João referindo-se a serra. “Ela é muito legal mas tem que ficar ligado”, adverte Zé sobre os perigos da máquina. João, alias já cortou profundamente o dedão quando cortava uma madeira. Foi Zé Fernando que inventou o processo de deixar a serra embaixo da mesa e subir apenas quando for ser usada. Também fazem parte de sua oficina uma extensão da casa, feita totalmente de madeira - onde estava colocado o policarbonato, o fundo da casa, cheio de armários repletos de ferramentas e outros materiais, e ainda a garagem. Ao lado de seu velho Voyage prateado 93, estão dispostas dezenas de madeiras – a maioria reciclada- e ferros de todos os tipos e tamanhos.. Em um canto, encontra-se uma lixadeira movida com um motor de maquina de lavar, outra adaptação original dele. A bancada na lateral da casa antes ficava descoberta, e a chuva muitas vezes atrapalhava as construções. Zé projetou uma cobertura de policarbonato e era isso que queria terminar naquele dia: ainda faltava um pedaço para cobrir. Ele estaciona sua cadeira de rodas na porta de correr da salinha de madeira enquanto seu amigo João descobre a bancada e prepara o local de trabalho.
O corintiano de 61 anos possui cabelos brancos e ralos, e um principio de careta que está começando pelo topo da cabeça. Sua barba é grisalha e curta. Vestia uma camisa xadrez azul clara, agasalho azul ao redor do pescoço, calça de moletom também da cor azul. Tudo confortável e quente para um dia frio e chuvoso. Sua cadeira de roda, furada em alguns lugares por causa da idade e do uso frequente, possui uma adaptação de madeira, coberta com um pano azul desenhado, onde Zé pode apoiar os braços. Além disso, ele mantém uma bola entre os joelhos – para não se encostarem, um travesseiro sob os pés, e outro preso com um cinto em cima de suas pernas. O movimento do rosto é normal. As rugas em volta dos olhos salientam-se quando ele dá um sorriso alegre, deixando a vista seus dentes um pouco amarelados. Antes um homem alto e forte, depois de 13 anos parado se tornou magro, frágil e pequeno.
Zé Fernando está sempre construindo e inventando. Em cada canto de sua casa surge uma obra de sua autoria. Instrumentos musicais, como banjos, violas, cavaquinhos, jogos de madeira como “resta um”, invenções como o afiador de broca ou a serra retrátil. Ele faz o projeto de todos os objetos primeiro no computador para depois reproduzir na vida real. Tudo é projetado perfeitamente antes da execução. Ele sabe todas as medidas, todas as etapas do processo. Precisa apenas de mãos que executem suas ideias. Para isso, existem seus ajudantes- aprendizes. João, por exemplo, vai toda segunda-feira visitar o amigo e realizar algum trabalho para ele. O empregado Chico, além de ajudar a dar remédio, tirar Zé da cama e ajudar a movimentá-lo, também se torna aprendiz de marcenaria nas mãos do patrão.
Zé Fernando é uma pessoa muito inteligente. Apesar da limitação física, está sempre trabalhando e gosta de tudo bem feitinho. “Zé gosta de fazer bonito, mas com toda a exatidão”, explica João,ele é o mentor intelectual”.  “Ele tem um pensamento, muito técnico e exato.”, completa o filho Calixto.  
Sempre gostou muito de ferramentas. Seu pai, que também era um apaixonado, o influenciou bastante. “Mas acho que o Zé é ainda melhor que o pai”, opina João.  Além disso, Zé se formou em arquitetura no Mackenzie em 77. Mesmo na cadeira de rodas não abandonou seu amor por sua vocação. Conta que só esse ano já fez dois projetos de sobrados. Faz no computador, utilizando o programa Autocad, típica ferramenta dos arquitetos. “Vira e mexe aparece alguma coisinha”, conta. Ele mantem o CREA e continua pagando imposto para assinar plantas.
Dentro de uma de suas violas sua função está descrita no adesivo de dentro: projeto e supervisão. A execução fica preenchida com o nome dos amigos-ajudantes. No entanto, não há duvidas de que apesar de não ter colocado “a mão na massa”, todas as obras são frutos da inteligência e dedicação de Zé. Apenas com a fala e com a didática, ele explica o que quer a seus ajudantes. E eles entendem!
Para terminar a cobertura da oficina, eles vão utilizar aquele policarbonato que Zé buscou na loja. “Já tenho tudo na cabeça”, diz Zé, “é só fazer”. Primeiro devem entortar a estrutura de ferro, depois, essa estrutura vai ser presa sobre o resto da estrutura metálica que já se encontrava presa entre o telhado e a cobertura já pronta.
Parado na porta, observa de longe o movimento dos ajudantes, mas sempre de olhos e ouvidos atentos. “Caiu alguma coisa ai”, observa quando João derruba um pequeno parafuso que ninguém tinha reparado.
- O Zé tem um ouvido e olho danado, brinca João.
-Já estive melhor, rebate Zé.
 “Cadê”, “pegue”, “faça assim”, sentado em sua cadeira de rodas ele vai dando ordens.  Orienta milimetricamente e didaticamente. “Qualquer burro trabalha com o Zé”, diz João.  Possui muita paciência para ensinar e explicar várias vezes. Não se irrita pelo fato de não poder sair da cadeira e mostrar como se faz. “se ele pudesse sair da cadeira, faria ele mesmo, nem precisava da gente”, comenta João.
Os ajudantes, aliás, muitas vezes não sabem o que se passa na cabeça de Zé, apenas o obedecem. “É isso mesmo?, pergunta João, em dúvida. “Ééé...pra passar o parafuso”, explica Zé.  No fim, descobrem o que ele queria e percebem que ele tinha razão. “Ele fica orientando e até entender o por quê da coisa demora um pouco, mas depois você vê que ele tinha razão”, diz João.
Zé Fernando explica aos ajudantes cada passo que eles têm que fazer. Primeiro faz isso, agora faz aquilo, vai orientando. “eu vou explicar pro João o que nós vamos fazer primeiro”, diz para Chico.
“João traz o ‘sanduiche’ aqui!”, diz referindo-se ao conjunto ferro-borracha-ferro. Queria ver se estava correto e queria também explicar os próximos passos. Sempre de forma didática: “então nós vamos fazer um furinho no meio e põe um parafusinho para firmar, para dar uma certa armada. Tá? E aí, nós vamos fazer um arame, dois ganchinhos com arame, um do lado de cá e o outro do lado de lá. E com uma cordinha, a gente vai fazer a curvatura dela, para manter a curvatura lá de cima (da estrutura que já se encontrava no alto)”.
João o interrompe e se volta para mim: “Escreve ai: ele tem que explicar quatro, cinco vezes para eu entender!”.
“Depois que a gente imitar a curvatura”, continua Zé, “aí nós vamos fazer os outros furos e colocando parafusos”. Zé Fernando explica mais uma vez. “Ah fazer tipo um arco e flecha?”, João finalmente entende. “Isso!”.  Após explicar ao amigo, Zé tenta me explicar também o por que de todo o processo: eles devem supor uma curvatura para fazer os furos no lugar certo, para os furos não “fugirem” no momento de colocar na cobertura do teto. “E eu vou exagerar na curvatura”, completa Zé, “porque a tendência é sempre voltar; então vamos exagerar um pouco”. “Bota uma madeira embaixo e começa a furar” Depois de furado, o ferro manteve-se curvado, “era o que a gente queria”, comemora Zé.
“Esse ai tá pronto. Agora Chico, acho que você vai me descer ai embaixo, pode descer de ré”. Depois disso, seus amigos - ajudantes vão para o telhado colocar a estrutura para terminar a cobertura. Zé fica embaixo, sempre dando explicações minuciosas, preocupado com um trabalho correto e perfeito. Com sua voz forte, explica aos ajudantes o que devem fazer com a estrutura que se encontra no telhado. “Cuidado ai, esse negócio não tá firme”, exclama sempre preocupado com a segurança dos amigos.
Passam horas medindo, furando, apertando, pregando, sempre sob a orientação do mestre.  Ele fala e João e Chico obedecem. São humildes nesse sentido, pois sabem que quem conhece cada detalhe do projeto e sabe exatamente qual será o resultado esperado é Zé Fernando.
Ele não pode subir, mas é como se estivesse lá. Certa vez, durante uma reforma em seu telhado, Zé projetou toda a obra em seu computador. Sabia a medida de cada viga e cada telha. Apesar de não subir escadas, ele orientou a obra através de fotos que os pedreiros tiravam. Ele fez toda a reforma utilizando a câmera como uma extensão do seu olho; ela lhe dizia o que acontecia num lugar que, para ele, era inacessível.
Enquanto trabalhavam, ele atende um telefonema – a empregada fica segurando, come duas bolachas com a ajuda das costas das mãos, coça o rosto e dá um bocejo alto como um rugido. Em certo momento, pergunta: “Tá entendendo Marina?”. A didática é tanta que ele se preocupa se até eu estou entendendo os procedimentos.
Ele repete um movimento do corpo de tempos em tempos: apoia o braço na cadeira e faz um esforço para se movimentar, jogando o corpo e a cabeça para trás. Parece que a posição constante o incomoda. Como tem problemas de estômago – e já teve que tirar um pedaço do intestino – pode ser um jeito de engolir a saliva. Apesar de apresentar uma respiração difícil, dá risadas e sorri.
Ao meio dia ele prefere parar o trabalho “agora é melhor parar porque não adianta fazer as coisas com pressa”. Quer parar, mas mostra ansiedade para terminar o trabalho começado. “tem umas duas horas durante a semana João?”
Sua dedicação também está presente na parte agrícola. Ele tem uma pequena horta no terraço a frente de sua casa. Ele não planta, claro, mas pensa em tudo que quer e precisa para fazer sua hortinha ficar bonita. Prepara também uma plantação na água, um hidropônico. “Ainda não tem nada, mas já tenho o projeto e algumas mudas”. A plantação localiza-se na parede em cima da área de serviço. A raiz da planta fica dentro de uma solução de nutrientes e ela cresce, recebendo agua por uma bomba. Além disso, Zé também já criou minhoca numa caixa d’agua.
- ele inventa né?”, comenta João com a empregada.
-demais!, concorda Sandra.
Entramos na pequena sala ao lado da oficina, onde estão localizados a televisão e o computador. Zé me mostra seus projetos no Autocad. Projeto dos banjos, projeto da estrutura de metal com que trabalharam naquela manhã, e até projetos para o futuro. Está fazendo projeto de um guindaste para levantá-lo da cama sem precisar da ajuda de ninguém. Hoje em dia, é necessário duas pessoas para tirá-lo da cama. Na prateleira ao lado do computador, entre livros de história de sua mulher, Rosa, existe uma pasta vermelha onde ele guarda todos seus projetos.
 “Vou te mostrar a ponte azul”, me diz, orgulhoso de mais um de seus inventos. A “ponte azul” é uma tábua que fica presa por um imã na parede ao lado da sua cama. O projeto que Zé fez possui seis funções: levantar a cama, acender e apagar a luz, possui apoio para o controle remoto, liga e desliga o ventilador e abre e fecha a janela através de dispositivo manual. Por fim, há um sistema para tomar água. Como ele não consegue fazer a agua parar de descer pelo canudo, ele levanta uma madeira ligada ao canudo e este sobe, saindo da agua e parando de descer. De noite, alguém solta essa ponte da parede e deixa em cima da cama dele. Dessa maneira, não precisa chamar ninguém. Zé acorda de madrugada e fica pensando nas coisas, fazendo cálculos. “Eu acordo as 2 da manhã e fico imaginando como fazer esses negócios. Essa instalação nossa de hoje eu fiquei pensando essa noite”, revela.
Seu quarto fica no andar de baixo, entre a sala principal e a pequena sala. Além de uma tv, existe uma cômoda ao lado da cama e um armário. Neste armário, cada porta é enumerada e ele sabe exatamente o conteúdo dos armários e das gavetas. E exigi que seja mantido tudo em ordem. O mesmo acontece com os objetos de sua oficina. Na hora de pedir um material para um ajudante, ele sabe, mesmo sem ir até lá, exatamente onde está. Ao lado de sua cama, está localizada também uma almofada branca que ele utilizada para prender sobre os joelhos. Precisa fazer isso por causa dos espasmos que tem durante a noite. “Eu pulo muito, não tenho controle nenhum”. E isso aumenta com o tempo. Essas adaptações mudaram sua vida. A almofada o possibilitou dormir de barriga para cima e a ponte azul, o fez não precisar chamar a mulher ou o filho durante a noite. Ele realmente é uma figura muito inventiva, está sempre buscando meios criativos e bolando pequenos projetos para solucionar os problemas que um deficiente físico, como ele, pode se deparar no dia a dia”, observa o filho Calixto.  “Várias vezes eu já o ouvi dizendo que iria divulgar suas ideias, principalmente as que estão relacionadas ao seu cotidiano, para ajudar possíveis pessoas que se encontram na mesma situação que ele”, lembra Calixto.
Antes de se acidentar ele fazia várias coisas. Depois de se acidentar ele continuou fazendo várias coisas. E é isso que o torna especial. “O especial dele é a volta por cima.”, diz João, “Tanta gente que fica tetraplégico e ‘entrega a rapadura’ e ele superou. Dar a volta por cima como ele deu, queria ver quem dava!” Feliz, positivo, inteligente, didático, vitorioso, inventor, pai, marido, amigo. São tantos os adjetivos que podem acompanhar o nome de José Fernando. Um homem abençoado, que conseguiu superar as provações que a vida lhe impôs e adaptá-las ao seu cotidiano da melhor maneira que conseguiu. Sempre com uma invenção original!

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