Da infância até hoje
Toda criança tem ídolos; umas paixões se
dissipam com o tempo, enquanto outras se tornam modelos de inspiração e motivo
para admiração durante toda a vida. Quando pequena, o meu ídolo era baixinho, de cabelos
ainda pretos mesmo com a idade, sereno e de poucas palavras. Estava em casa
todas às segundas-feiras e quase nunca estava de domingo. Mantinha uma postura
um pouco distante, mas estava sempre presente na vida de todo mundo. Sabia que
eu preferia sorvete de coco ao de limão e diversas vezes me levou para passear
com o cachorro me deixando segurar a coleira.
Meu ídolo acordava cedo e dormia tarde,
tinha uma caligrafia que eu sempre achei linda e tentava imitar, molhava o pão
no café com leite e comia bolo de coco com manteiga. Tem uma casa no campo de
tijolos aparentes que eu adorava ir para passar a tarde toda tomando banho de
mangueira e capinando o mato. Meu ídolo fazia eu me sentir a garota mais
especial do mundo toda vez que me apresentava a alguém e dizia: “fulano, essa é
a minha neta”.
O tempo passou e eu cresci, assim como os
seus cabelos ficaram um pouco mais brancos; ainda que esteja longe de ser grisalho,
apesar dos seus atuais 72 anos de idade. O tempo passou e meu ídolo teve mais
netos; tanto os que nasceram dos casamentos dos seus filhos tanto aqueles que
ele adotou como tal, mas eu sempre senti que ele fosse só meu. O ídolo da minha
infância veio a ser também o da adolescência e da atual juventude.
Meu ídolo, a primeira pessoa que eu encontrei
no aeroporto quando voltei dos Estados Unidos após um intercâmbio de um ano,
chorou quando me avistou de longe no saguão. Foi a única vez que o vi chorar;
me surpreendi, ele não é de demonstrar grandes emoções. Como o próprio diz, “só
chora por dentro”. Ver suas lágrimas de alegria ao me reencontrar sempre será
uma das melhores lembranças que terei dele.
Apesar da infância humilde e sem
perspectivas, meu avô João, superou as expectativas e estatísticas. Tornou-se
um homem muito admirado em seu meio e de muitas facetas: avô, pai, professor,
pastor, mestre e presidente de uma das ordens evangélicas mais importantes do
nosso país. Com 72 anos de idade ainda
não se aposentou e nem pretende; continua dando aulas e palestras e persegue
com o seu trabalho de pastoreio. Mora em um apartamento com sua esposa e minha
avó, Eliete, na Vila Matilde, bairro da zona leste de São Paulo.
Meu avô é um homem baixinho, magrinho,
pardo, herança de sua mãe índia e seu pai negro, e com pouquíssimos fios de
cabelo branco. Jura que nascera com os cabelos lisos, mas que um barbeiro
inexperiente tornara seu cabelo crespo quando era jovem devido a sua” falta de
profissionalismo”. Durante muito tempo, acreditei que isso fosse verdade e
lembro-me de ter pensado que no fim das contas o suposto barbeiro até que havia
feito um bom trabalho, já que o cabelo baixinho combinava com meu avô. Vaidoso,
dorme com uma redinha de meia fina na cabeça, de acordo com ele , “para que o
cabelo não acorde amassado na manhã seguinte e abaixar os fios”. Tem olhos
escuros com e o contorno da pupila levemente azulado; perdera pouco cabelo com
a idade e sorri de forma ampla, mostrando todos os dentes, muito bem
conservados apesar da idade.
Poucas vezes vi meu avô de bermuda ou
calça jeans; independente de onde vai, veste sempre calça e camisa social de
manga curta, a calça quase acima do umbigo. No cinto, carrega uma pochete com
um porta-celular. Usa sapatos de amarrar e blusa de lã no inverno. Usa óculos
para ler e tem um óculos ray-ban wayfarer vintage que eu sempre quis pra mim.
Sua aparência e espírito jovial não
revelam a idade que tem. Parece sério, mas está sempre de ótimo humor e ar
despreocupado. É de poucas palavras, mas sabe sempre o que falar na hora certa
de falar. Nunca o vi elevar a voz, minha mãe, Kátia, que é sua filha
primogênita, diz que mesmo como pai ele jamais perdeu a paciência com qualquer
um dos filhos ou gritou com eles. João se faz ouvir com a serenidade das
palavras, não com a agressividade delas.
De vida simples, não precisa de muitos
luxos para ter prazer. Diverte-se com novela e futebol, que às vezes ainda joga
com os jovens da igreja. Dá risada com A Grande Família, Zorra Total e as
pegadinhas do programa do Sílvio Santos. De gosto um pouco exótico, compra bolo
de abacaxi, come arroz e feijão com banana e toma sorvete de milho verde com
coco queimado. Mesmo sendo um homem viajado e que já viu parte do mundo, é
muito apegado ao seu bairro, sua casa e suas pequenas manias.
João trabalha de quarta a domingo. Às
segundas e terças feiras vai à sua casa em Atibaia para descansar e ver se está
tudo em ordem. A casa é um dos seus grandes xodós: planejada e construída
exatamente como queria, desde a compra do terreno até os menores detalhes.
Aproveita os seus dois dias de folga trabalhando nela e ao mesmo tempo
aproveitando a paz que o lugar lhe oferece, escrevendo artigos para O Jornal
Batista, estudando e ouvindo as músicas que tanto gosta, MPB e as do rei
Roberto Carlos são suas preferidas. Pretende ir morar no campo quando se aposentar,
mas este parece um futuro ainda distante para um homem tão ativo.
Pastor batista da Igreja Batista de Vila
Salete por volta de 30 anos, os compromissos e programações da igreja são a sua
maior ocupação e alegria. Envolve-se em todas as atividade de qualquer faixa
etária: está presente no culto dos jovens, na escola bíblica das crianças, na
reunião bíblica das senhoras, nas reuniões de oração dos homens e prega todos
os domingos, uma vez de manhã e uma vez à noite. Conhece todos os membros e
frequentadores por nome, idade e muitos dele viu crescer, fez o casamento e
agora acompanha o crescimento de seus filhos.
João é o membro mais importante da
igreja; todos recorrem a ele em momentos de dificuldade e alegria. Como um pai
e avô para todos, visita regularmente todos os membros e nunca hesita em
prestar ajuda e atenção quando pode. Envolve-se emocionalmente com cada
história de vida e cuida de todos como se fossem seus próprios filhos e netos,
dando até presente no Natal e lembrando de dar parabéns no aniversário.
João Martins Ferreira nasceu em 19 de
junho de 1941 em Recife, Pernambuco. Filho de uma jovem índia com um servente
de pedreiro. Da mãe biológica não se lembra de quase nada, pois a perdeu quando ele tinha só dois anos de idade. João teve
apenas uma irmã, mais velha, Maria José. Porém, sua casa estava sempre cheia de
agregados e João teve vários irmãos adotivos, que eram tratados por seus pais,
Luis e sua madrasta, Josefa, como filhos legítimos.
Fugindo da pobreza do Nordeste e buscando
novas oportunidades de trabalho, a família Ferreira se mudou de Recife para a
capital paulistana. Com apenas três anos de idade, o pequeno João chegava à
terra da garoa com sua irmã e seu pai e foi morar no bairro da Brasilândia,
zona oeste. Em São Paulo meu avô cresceu, fez faculdade, se casou, teve seus
filhos e mora até hoje aqui.
Aluno de escola pública e morador da
periferia, João, juntamente com a sua família, teve que batalhar desde cedo, já
aos 14 anos. De pulso firme, Luís ensinou a seu filho caçula o valor do
trabalho quando ele ainda era muito jovem; e até hoje João não parou de
trabalhar. Ainda adolescente, fez diversos serviços para ajudar com o sustento
da casa: trabalhou como ajudante geral numa loja de móveis, foi operário numa
fábrica que fazia peças para a indústria, vendeu sabonete de porta em porta,
fazendo serviços na livraria Jaraguá no centro paulistano e até trabalhou
vacinando cachorros.
Na transição da adolescência para a
juventude foi morar com a sua família na pequena cidade de Itu, interior de São
Paulo. Lá teve um grupo musical junto com colegas da escola chamado “Ritmos da
América”. Aos 17 anos pediu para seu pai um violão que ele , autodidata, aprendeu
a tocar sozinho. Luis havia lhe dado o presente com a intenção de que o filho
tocasse na igreja, porém, João queria fama como artista de rádio: mesmo com a
desaprovação do pai, percorria as emissoras locais com o grupo e tocava nos
bailes juvenis da época.
Em um episódio específico, mentiu para
seu pai e madrasta para poder participar de um programa de calouros na rádio
local. Josefa, que ouvia o programa e
não imaginava ouvir seu enteado participando dele, ficou perplexa quando o
ouviu cantar no rádio. Chegando em casa, levou bronca e quase apanhou do pai. O
sonho de ser músico poderia até estar acabando, mas não sua paixão pela música:
ainda hoje dedilha a sanfona e estava
sempre ao redor da vitrola, como relata minha mãe, e hoje tem um apreço pelo seu
radinho de pilha.
Ao completar 18 anos de idade, foi
convocado ao exército e prestou serviço militar; porém, essa fase não duraria
muito tempo e João abandonou a carreira devido a uma lesão. Após perder-se do
caminho da música e das armas, meu avô encontrou o caminho que seguiria sua
vida toda: o da teologia cristã. Decidido a entrar para o seminário batista e
tornar-se pastor, como seu pai havia se tornado, foi para o Rio de Janeiro
estudar.
Com o término do curso na capital
carioca, vovô João foi convidado a pastorear uma igreja batista catarinense, em
Florianópolis. Dos irmãos da igreja ganhou uma bicicleta como meio de
transporte, que usava para ir visitar todos os membros e realizar seu trabalho
pastoral. Foi em Floripa que ele também encontrou o segundo caminho que o guiaria
durante sua vida: o da educação. Prestou vestibular para pedagogia na
Universidade Federal de Santa Catarina e lá se tornou pedagogo.
Formado e pastor, João volta a São Paulo.
Com 26 anos de idade, reencontra Eliete, minha avó, que conhecia desde criança
devido à proximidade de suas famílias. Ela, também filha de pastor e aluna do
antigo magistério e futura professora de crianças, tinha 19 anos na época. Com
pouco tempo de namoro, João e Eliete se casaram e assim estão até hoje,
completando 45 anos de matrimônio neste ano.
Ao mesmo tempo em que se tornou pastor da
Igreja Batista de Vila Salete, a qual retornou anos depois e permanece até
hoje, João foi professor de escolas estaduais da zona leste e foi até diretor
de uma delas. Em 1969 teve sua primeira filha, Kátia, seguida por Keila, que
nasceu no ano seguinte. Ávido por conhecimento, estudou Filosofia na
Universidade de São Paulo. Kátia, em uma de suas recordações, diz “lembro que
meu pai voltava tarde da noite e saía cedo; muitas vezes eu e minha irmã não o
víamos um dia inteiro; porém, de manhã quando acordávamos a gente encontrava
dois saquinhos de pipoca com queijo no armário, que ele comprava na USP e
trazia pra gente”. Formado em Pedagogia, Filosofia e Teologia, meu avô foi
professor de algumas escolas públicas na zona leste de São Paulo, de uma delas
foi diretor. Começou a dar aulas na Faculdade Teológica Batista, da qual é
professor de Filosofia ainda hoje, completando 37 anos de casa.
Com as duas filhas pequenas, João ganhou
uma bolsa para fazer um mestrado em Teologia na Union Teological, instituição
americana sediada em Nova York que oferecia bolsas de estudos para pessoas do
mundo inteiro. Concorrendo com quase 70 candidatos para uma vaga, João
conseguiu se classificar como único estudante brasileiro a ir. Para ser
selecionado, meu avô aprendeu sozinho a falar inglês e fez diversas provas.
“Lembro-me da minha mãe pedindo para eu e minha irmã ficarmos quietas porque o
papai estava estudando; ele ficava no quarto ouvindo discos didáticos e fazendo
exercícios”, relata Kátia.
A bolsa que ganhou seria de dois anos;
nesse período, Eliete e João tiveram seu terceiro filho, Kenneth. Enquanto
estudava na Union Teological e fazia diversos cursos na famosa Universidade de
Columbia, vovô ainda arranjava tempo para completar o orçamento da família:
trabalhou como jardineiro e bibliotecário da universidade. “Meu pai me levava
na Biblioteca para ficar ajudando com os livros durante a tarde”, diz Katia. Em
casa, Eliete cuidava dos seus três filhos e ainda fazia baby sitter.
Voltando ao Brasil, foi convidado para
ser pastor auxiliar da Igreja Batista da Liberdade e logo depois para ser
pastor titular na Igreja Batista da Pompéia. Mudou-se com a mulher e seus
filhos para o bairro e passou a dar aulas no Colégio Batista Brasileiro no
antigo curso magistério, lecionando a disciplina de Sociologia da Educação. No
colégio também foi professor de Educação Religiosa, enquanto sua esposa era
professora do Ensino Fundamental. Fez um
curso de liderança em Cingapura e também visitou a Coréia do Sul em congresso.
Desde então, João persegue no seu
exercício de profissão como pastor e professor. Foi eleito quatro vezes
consecutivas como presidente da Ordem dos Pastores do Estado de São Paulo,
posto que ocupa atualmente. Com os filhos já crescidos, voltou ao início de sua
carreira e voltou a pastorear a Igreja Batista de Vila Salete, em que está há
quase 30 anos. Voltou a morar com Eliete na zona leste e tem quatro netos: eu,
a mais velha, Leonardo, Lucas e Júlia.
Muitos olham para João e encontram
diversos Joãos: o presidente da Ordem, o professor, o pastor, o evangelista, o
missionário, o líder, o homem, o pai. Eu sempre enxerguei um só: o avô, que
dorme no sofá depois dos almoços de domingo e só acorda quando começa o futebol
na televisão. De todas as facetas que eu conheço, a de esposo, pai e avô foram
as que poucos tiveram o privilégio de conhecer e que eu sou grata por
testemunhar e elejo como minhas favoritas. Como diria meu pai e seu genro,
Cláudio, “há um homem por trás do mito que muita gente conhece”. E o homem por
trás do mito é o vovô João, de redinha cabeça no sofá da sala, molhando o pão
no café com leite e assistindo a novela.
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