Um futuro incerto
Ricardo acorda todos os
dias às 8 da manhã em ponto, levanta-se ainda de cueca e pega um iogurte de
laranja com cenoura e mel na geladeira. Abre a porta da frente, pega a Folha de
S.Paulo do dia e senta-se à mesa de sua casa para comer o iogurte lendo as
notícias do dia.
Aos 51 anos, sendo 25 de
jornalismo, Ricardo - ou Anderáos, como prefere no ambiente de trabalho - passa
por uma fase difícil. O Grupo Abril, empresa na qual ele ocupa a vaga de
Diretor de Mídias Digitais há pouco mais de um ano vem sofrendo
financeiramente, passando por reajustes e os temidos cortes. Seu departamento
iniciava um processo de unir todos os responsáveis por mídias digitais nos diversos
veículos do grupo e instruí-los sobre estratégias e dicas para um melhor
desempenho online. Com as dificuldades, o grupo decidiu extinguir o novo
departamento. Anderáos agora busca encaixar seus funcionários em outros
departamentos para minimizar as demissões, mas a realidade é que nem de seu
próprio destino ele tem certeza. Entretanto, ele sustenta um bom relacionamento
com o presidente da empresa e outros executivos de cargos superiores, o que o
tranquiliza quanto à sua permanência na Abril.
Formado em História pela
USP, é doutor em História da Arte, mas trabalha principalmente com jornalismo
tecnológico. Sempre inteligente, Ricardo inicialmente cursou Arquitetura e
Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie pois era a vontade de seu
pai. Não se identificou, abandonando o curso depois de alguns meses. Dos tempos
de FFLCH, relembra o ativismo nas causas políticas e algo curioso: participou
por meses do grupo de ballet clássico no Estúdio de Ballet Cisne Negro, para
juntar dinheiro. Comenta, rindo: “Nunca peguei tanta mulher na minha vida.
Imagina você e mais um cara viajando com cinquenta mulheres”.
Sobre o início no
jornalismo, Ricardo conta que não foi exatamente uma decisão, mas algo que
acabou acontecendo em sua vida. “Eu estava começando a pós-graduação em
História Social da Arte e elaborando um projeto para pedir uma bolsa de estudos
e seguir carreira acadêmica e era desempregado na época. Aí eu vi um anúncio na
Folha de S.Paulo do 1º Programa de Treinamento da Folha, era o primeiro curso
de Jornalismo promovido por um jornal em 1988 e era voltado pra pessoas que
tivessem faculdade de Ciências Humanas e não estivessem cursando jornalismo. O
anúncio falava que os selecionados iriam fazer esse treinamento de 30 dias e os
mais bem colocados seriam contratados pra trabalhar no jornal. Eu fiz a prova
de seleção, fui aprovado, fiz o programa de 30 dias, fui um dos mais bem
colocados e imediatamente fui contratado pra trabalhar como repórter na Folha
Ilustrada. Então não foi exatamente uma decisão que eu tomei, mas uma coisa que
acabou acontecendo na minha vida”.
Anderáos foi repórter e
correspondente internacional da Folha de S.Paulo na Espanha, criou o primeiro
CD-ROM brasileiro - que coincidentemente foi lançado no mesmo dia em que sua
filha mais velha nasceu, em 19 de abril de 1994 - foi webmaster do UOL e gerente de Novas Mídias
do Itaú Cultural. Escreveu a coluna de tecnologia da
Carta Capital durante dez anos, criou e editou o Link, caderno de comportamento
e tecnologia de O Estado de S. Paulo e manteve programa diário de tecnologia na
rádio Eldorado. Implantou o jornal Metro no Brasil e foi o Diretor Editorial da
versão paulistana. No Grupo Bandeirantes de Comunicação criou e implantou o portal
eBand
e o site de jornalismo colaborativo eBandRepórter.
Quando perguntado sobre o
seu feito do qual mais se orgulha, Ricardo não tem dúvidas. “De ter criado numa
empresa de fundo de quintal o primeiro CD-rom brasileiro. Era uma revista
chamada Neo Interativa, que não apenas foi o primeiro produto de mídia digital
brasileiro em português mas também foi o produto que inventou o mercado de
mídia digital. Nessa revista, nós tivemos o primeiro anúncio comercializado em
mídia digital, que por acaso foi comprado pela Microsoft, tivemos o primeiro
acordo de distribuição em larga escala de um produto desse tipo (um bundle com
computadores Itautec) e foi um grande laboratório também, a Neo Interativa
atraímos muitos jornalistas do primeiro time da imprensa brasileira fazendo
experiências em mídia digital pela primeira vez. Nomes como Paulo Lima, editor
e fundador da Revista Trip, que fez uma materia falando de surf misturando
vídeo e áudio, ou um especialista em gastronomia como Josimar Mello, ou um
crítico musical como Carlos Calado... ou seja, nós conseguimos mesclar o melhor
do jornalismo com uma plataforma completamente nova, um modelo novo, e tudo
isso em 1994, quando não existiam iniciativas como essa. Isso me deixa muito
orgulhoso até hoje. As revistas que você vê em iPad feitas dezoito anos depois
da Neo Interativa ainda não saíram do mesmo modelo que nós utilizamos. Ou
melhor, ainda não superaram. A tecnologia evoluiu mas do ponto de vista
jornalístico, de conteúdo, já estava tudo ali”.
Na geladeira, bilhetes de
seus filhos mostram o pai dedicado e amoroso que é. “Pai, te agradeço por me
dar essa vida perfeita! Obrigada por morarmos na Ilha - paraíso, cercado de
sorrisos... Quero que saiba que sempre ao voltar de viagem, após uma semana de
trabalho, terei muito prazer em recebê-lo com um abraço. Assinado sua
borboletinha. Te amo. 23/07/2011” diz o bilhete de sua filha Lorena, a do meio,
hoje com catorze anos. A saudade de Ilhabela é uma constante em sua vida, como
ele mesmo ressalta: “Não gosto de ficar em São Paulo. Cada minuto que eu estou
aqui, estou descontente. Por isso, assim que me livro dos compromissos de
trabalho por aqui já pego o carro ou a moto e escapo pra Ilha. Normalmente às
quintas-feiras”.
Sobre o budismo,
sobram-lhe palavras para contar como começou a sua experiência e o que mudou em
sua vida ao se tornar adepto da religião. “Eu nunca me senti atraído por
religiões, muito pelo contrário, isso sempre me pareceu coisa de
mistificadores, exploração barata da ignorância alheia. Mas numa época em que
eu atravessava uma grande crise pessoal, uma amiga que era Budista me levou ao
centro que frequentava. As palavras da Lama Tsering me tocaram profundamente, e
percebi que não precisava necessariamente acreditar em nada sobrenatural ou
metafísico para tirar proveito daqueles ensinamentos. Há componentes
filosóficos e psicológicos muito fortes no Budismo, tão importantes quanto os
religiosos. Assim comecei a estudar e me envolver cada vez mais”.
Quando perguntado
sobre as dificuldades que teve, seus olhos castanhos se arregalam e ele exclama:
“Sem dúvida nenhuma! A princípio, o envolvimento com o Budismo complementou e
aprofundou o que eu já desenvolvia nas sessões de psicanálise que frequentava
há alguns anos. Com o tempo, transformações mais profundas começaram a
acontecer. Senti-me muito mais perto das pessoas. Parei de negar e temer a
morte. Passei a aceitar melhor a mim mesmo e aos fatos básicos da vida. Em uma
palavra, amadureci. É claro que continuo tendo minhas limitações, e vez por
outra "caio nos mesmos buracos", cometo os mesmos erros. Mas agora
não preciso mais me defender deles, fingir que não existem. É como se eu
tivesse me aberto para a vida, passado a me aceitar melhor, e por extensão a
todas as outras pessoas.”
Quando trabalhava
no jornal O Estado de S.Paulo, teve a oportunidade de fazer umas entrevista
exclusiva com o Dalai Lama, líder atual da religião budista. Enquanto me dizia
essas palavras, seus olhos brilhavam. Não me restaram dúvidas de que foi uma
das experiências mais intensas de sua vida. “Foi duplamente interessante,
porque fui fazer uma entrevista exclusiva com ele para o jornal O Estado de S.
Paulo, então foi uma experiência como jornalista, mas também uma experiência
como praticante do budismo. O mais impressionante foi a simplicidade, o calor
humano e a doçura dele. Fica muito fácil entender o que é iluminação, o que é
superação do ego, no contato direto com uma pessoa assim. Também tive
oportunidade de privar com vários outros lamas e mestres budistas, e todos têm
em maior ou menos grau, essas mesmas qualidades. Mas ele, sem dúvida, é o mais
amoroso, o mais aberto, o mais simples de todos. E sendo também a personalidade
mais famosa, o contraste fica ainda mais evidente”.
Sobre o viveiro de
mudas da mata atlântica que tem no jardim de sua casa em Ilhabela, ele também
se empolga ao falar. O viveiro Viva Floresta, projeto iniciado entre 2009 e
2010 por sua entidade não-governamental e que sustenta projetos
sócio-ambientais Ilhabela.org, já conta com 24 mil mudas da mata atlântica
prontas para o plantio, de 71 diferentes espécies. As mudas são vendidas para
empresas ou doadas para projetos de reflorestamento. A preocupação com o
meio-ambiente combinada com o budismo fez com que sua família tivesse uma
conscientização um pouco diferente do que se está acostumado a ver. Se aparece
um animal dentro da casa - o que ocorre frequentemente, já que a casa fica no
topo de um morro, onde só se chega através de uma esburacada estrada de terra,
as crianças não correm para matá-lo. Uma barata é capturada pela criança com
uma rede e jogada fora de casa, para que possa continuar vivendo em outro
ambiente. Já animais mais perigosos, como escorpiões e cobras, são tratados do
mesmo modo, mas quem realiza a captura é Ricardo ou Gisela, sua mulher.
Perguntei-lhe então
se mudaria algo em sua trajetória, se pudesse. “Eu acho que eu teria falado
menos o que eu penso e ouvido mais os outros. Não apenas eu teria muito mais
amigos hoje como eu teria tido muito mais sucesso profissional. Quando somos
jovens achamos muito importante os outros saberem o que pensamos, e quando
vamos ficando mais velho percebemos que é muito mais importante sabermos o que
os outros sentem”.
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