Veterano
do som
“Eu sou o Índio Blues, o
segundo DJ mais velho do Brasil”. Foi o bastante para me intrigar por completo.
Não soube o motivo, primeiramente. Talvez por imaginar que ele tinha muitas
histórias para contar. Ou que deveria ter um conhecimento vasto sobre música.
Também porque nunca cogitei encontrar o segundo DJ mais velho do país no
primeiro andar de uma galeria, no Centro. Sua figura chamou-me a atenção no
instante em que vi. De longe, tudo o que podia enxergar era que tinha cabelos
compridos presos em um rabo-de-cavalo e usava botas amarelas, calça jeans
rasgada e uma camiseta preta. Organizava uma caixa de papelão cheia de discos
de vinil.
Eu estava à procura de um
parecer sobre a volta dos vinis para uma reportagem. Especificamente, procurava
a loja Ventania Discos, porém, o avistei no tal Sebo do Disco. Por todo o tempo
que fiquei na frente da loja, tomando coragem para entrevistá-lo, reparei que
não dirigia seus olhos para mim. Continuava concentrado nos discos. “Olá, tudo
bem?”, disse, nervoso. Ele não reagiu. Fiquei calado, esperando uma resposta.
Ele olhou. “Preciso fazer uma entrevista sobre vinis, pode ser?”, indaguei. “Pô,
de novo?” foi a resposta. Fiquei intimidado.
Essa é a primeira impressão que
se tem de Índio Blues. Reservado, mal-humorado, rabugento. E foi a impressão
que tive por toda a duração do encontro. Antes de sentar no fundo da loja para
nos ouvir, ele foi até o banheiro e encheu um copo com água da torneira. Despreocupado,
acendeu um cigarro. Nesse momento que pude reparar com mais atenção em suas
feições indígenas. Na mão esquerda, havia um anel com a cabeça de um cacique.
Depois de defender o vinil do início ao fim, novamente perguntei o seu nome.
Com o mesmo mau humor respondeu “Índio Blues, cara. É como a galera conhece”.
A reação foi bem diferente em
nosso último encontro. “E aí, Victor, tá beleza?”, ele exclamou, animado,
quando adentrei o estabelecimento para mais algumas perguntas. “Puta que o pariu,
velho. Terça, quarta, quinta, ontem e hoje. Show”. Desde terça-feira, índio
vinha assistindo a uma série de concertos, no Best Of Blues Festival, que
ocorreu no WTC, em São Paulo. Participaram Shemekia Copeland, filha do
guitarrista de blues americano Johnny Copeland, Buddy Guy, Doctor John, o
brasileiro Nuno Minelis e Taj Mahal. Por fim, já fora do tal festival, ele
assistiu a dois shows de Roberto Frejat, que se apresentaria novamente naquele
dia, no Sesc Belenzinho. A empolgação com que o velho índio dizia os nomes dos
artistas que tinha presenciado era contagiante. “Foi porrada, brother!”.
O gosto pelo Blues rendeu-lhe o
apelido, ainda na juventude. “Foi um amigo meu chamado Lilico Brandini que me
deu. Aí ficou”. Mais do que uma mera alcunha, Índio Blues parecia ter se
tornado um pseudônimo do DJ. Só conheci o curitibano Ademildo Canteiro, 61, em
nossa última conversa. Levantando-se da cadeira em que estava sentado,
relaxado, no fundo da loja de discos, ele parecia apreensivo desta vez. Na
verdade, estava ansioso para fechar a loja e ir embora para casa. Iria
reunir-se com Frejat e a banda, antes do ultimo show, na capital.
Ambos, segundo ele, são amigos
há quase 30 anos. Conheceram-se num concerto do Barão Vermelho, no Projeto SP,
na Barra Funda. Um amigo de Índio disse que conhecia os integrantes da banda e
que poderia apresentá-los. “Fomos para o show, num sábado de tarde. O Negão
falou que daria um jeito de colocar a gente pra dentro com o Guto, o batera do
Barão. Então, fiquei esperando ele na porta. Aquele filho da puta não conhecia
ninguém!”. Quem ajudou os dois a entrar foi o dono do estabelecimento. Lá, Índio
encontrou uma conhecida: Alice Pellegatti, Licinha, esposa de Frejat, que trabalhava
na Warner, na época. “Eu só ouvi ‘Índião! Não acredito! ’. Então, ela disse que
falava muito de mim para o Frejat e me colocou pra dentro do camarim”.
Índio conhece muitas pessoas
envolvidas no meio musical, que fez amizade ao longo da carreira como DJ. Não
foi nada planejado. Aos 18 anos, decidiu sair da casa dos pais para trabalhar
com música. “Foi um caos quando falei para minha mãe. Aquele papo de que não ia
ter futuro”. Ele se mudou do Jardim Paulista para o Centro. Começou a trabalhar
na Hi-Fi, uma das mais tradicionais lojas de discos da cidade, no Iguatemi,
onde ficou por sete anos. “Um dia, do nada, apareceu uma mulher, que estava
abrindo uma casa noturna. Ela me pediu pra tocar lá e eu aceitei”. A casa
chamava Happy Days, localizada na Avenida Faria Lima.
O começo não foi fácil. Índio
não sabia manusear a mesa de som, técnica que foi aprendendo com o tempo. Ele
também não conhecia nenhum DJ que pudesse servir de inspiração. No Iguatemi,
quando trabalhava ainda na loja, conheceu dois DJs do Papagaio Disco Club, Robertinho
e Luiz Carlos, que se tornaram amigos muito próximos. Depois veio a conhecer o
famoso DJ Gregão. “O Gregão ia inaugurar uma casa e estava comprando alguns
discos. Virou meu irmão”. O Happy Days inaugurou a carreira de Índio Blues, que
decolou. “Era uma puta casa, cara, só tocava Jazz. Depois de lá, eu fui para o
O Ponto”. Contudo, a casa noturna que consolidou sua carreira foi a
Hippopotamus, onde ficou por quase 10 anos. Foi a época em que mais ganhou
dinheiro, chegando a faturar o equivalente a cinco mil reais por noite.
Ao som de Moody Blues, que
rodava em uma pick up do outro lado das fileiras de vinis, Índio embalava os
discos em sacos de plástico. Como se estivesse conversando consigo mesmo,
lembrava-se de como eram as noites nas casas noturnas. Sempre direto e
lacônico, parou de cortar os sacos de plástico e voltou-se para mim. “Brother,
a noite está resumida a duas coisas: boceta e droga”. Como DJ, Índio tinha alguns privilégios e
também chamava a atenção das mulheres que frequentavam as casas. Com ar agora
bem humorado, dirigiu-se a Marcelo, outro DJ, proprietário do Sebo do Disco,
que acessava a internet num computador bem velho, no fundo da loja. “Marcelão,
você comeu muita mulher?”. Os dois deram risada. Marcelo balbuciou algo, constrangido,
enquanto Índio continuou falando, orgulhoso da quantidade de mulheres com quem
se relacionou.
Ele casou quatro vezes. Tem
três filhos, um casal que mora em São Paulo e um que mora no Rio de Janeiro.
Também tem netos, quatro. Nunca foi apegado à família. “Minha parte eu já fiz”,
diz, despreocupado. Falar do assunto não parecia muito cômodo para ele. Só
falou dos pais para explicar de onde vinha o seu gosto pela boa música. Tanto
estes como os avós o influenciaram. Na infância, ouvia bossa nova e artistas
como Jerry Lee Lewis, Ray Charles, Nat King Cole e Chuck Berry. “Também ouvi
muito Beatles. Aí, em 1963, escutei Satisfaction, dos Rolling Stones. Eu saí do
ar”, disse. Em cada palavra que proferia sobre música, via-se paixão. Sabia que
tinha tomado o rumo certo.
Outro artista que marcou sua
vida foi o habilidoso guitarrista mexicano Carlos Santana. Ele chegou a
conhecê-lo pessoalmente e poderia tê-lo conhecido melhor. Santana veio para São
Paulo, onde faria algumas apresentações, no Vitória Club, onde Índio era DJ, na
época. Em um domingo, às 16h, haveria uma coletiva de imprensa com o
guitarrista, no hotel Mak Soud, onde estava hospedado, e Índio decidiu ir.
Pegou uma sacola de supermercado e colocou dois quadros com fotos de Santana
para que pudesse autografá-los. No térreo, encontrou o tecladista da banda.
“Ele não acreditou que o chamei pelo nome. Perguntei pelo Santana e ele disse
que estava descendo”. Lembra, com detalhes, que sentou numa cadeira bem ao
canto da sala, perto de um aparador, onde havia baldes de cerveja. Ele criticou
os jornalistas presentes, dizendo que não conheciam a carreira de Santana o
suficiente e só faziam “perguntas idiotas”.
“Uma hora ele olhou pra mim e,
então, eu fiz uma pergunta sobre os músicos da banda de 1968. Aí ele reconheceu
que eu manjava da trajetória dele”. No final, o guitarrista pediu para que Índio
esperasse por uma última entrevista que daria à revista Guitar Player.
Convidou-o para jantar e para assistir a um show, em seguida. “Aceitei, é claro.
Mas primeiro voltei para casa, já que morava por perto. Quando cheguei, comecei
a tomar whisky e acabei esquecendo”,
disse, com uma ponta de desgosto na risada e no olhar.“Sabe de quem era
o show? Jethro Tull. Perdi um show do Jethro Tull, que ia curtir com o Santana”.
A relação de Índio com as
drogas foi longa. Foi viciado em cocaína, crack e admite fumar maconha desde os
14 anos. “Antes de entrar no chuveiro, fumo uma bomba”. Diz ser a favor da
legalização porque seria cobrado um imposto em cima e haveria uma quantidade e
lugares certos para usufruir. Com a mesma despreocupação, ele explicou que a
cocaína chegou, no Brasil, na década de 1970 e fez muitas vítimas. Em suas
“noitadas”, tanto nas casas em que trabalhou como em festas que aconteciam
continuamente, nos apartamentos dos mais endinheirados, a cocaína era
generalizada. Quanto ao crack, droga considerada mais pesada, foi usuário por
cinco anos e diz ter abandonado vício por conta própria. “Eu peguei uma pedra
enorme e joguei na privada. Um brother meu que estava usando também, quase
chorou. Eu sou um sobrevivente do crack. Quem é mais forte: eu ou a danada?”,
contou, rindo.
O telefone tocou enquanto
conversávamos. Índio foi atender e percebeu que algo faltava no ambiente.
Música. Respondendo ao telefone, logo colocou a agulha do toca-discos em outro
disco que selecionou dentre as caixas repletas de vinis. Era um som típico dos
anos 1980. A década preferida dele era a de 1970, em que foi contratado pelo Hippopotamus
e de lá, em suas palavras, “foi para o mundo”. Tocou, ainda, na Xmillion,
Estúdio 82, Latitude 3001, Area, Olimpia e o Vitória, onde pode conhecer muitos
artistas com quem nunca sonhou em estar lado a lado, como o já citado Santana,
Deep Purple e Sting. Tocou até em uma casa noturna voltada ao público
homoafetivo, a Colorido. “Só tinha veado rico, tipo Clodovil e Nei Galvão. Foi complicado
ver mil e quinhentas bichonas se pegando toda noite”, Contudo, considera o
Barco, outra casa noturna, que se localizava na Avenida 23 de Maio, o auge de
sua carreira. “Era uma caravela gigantesca no meio da avenida, feita de
concreto por fora e madeira por dentro. Você imagina o som daquilo? Era
sensacional”.
Depois do grandioso Barco, foi
trabalhar em um bar chamado Iron Horse, que só tocava rock. De lá, seguiu para
mais algumas casas noturnas e decidiu parar, seguindo com seu programa na rádio
Bandeirantes, o Midnight Blues, da meia-noite à 1h, toda segunda-feira. Também
inaugurou a 95 de Santos, onde manteve mais um programa de Blues. “Eu parei com
casas noturnas. Perdi o tesão em fazer performance. Mas depois abri o show de
algumas bandas gringas e continuo aqui”.
Devido aos anos de profissão,
que lhe renderam um conhecimento musical invejável, Índio é muito requisitado
por músicos, que pedem para que ele dê a opinião sobre seus trabalhos. “Estou
muito orgulhoso do seu elogio”, disse João Carvalho, um músico que foi à loja,
em nosso último encontro. Ele havia deixado um CD, que há pouco tempo gravara, com
Índio, para ter sua avaliação. Depois dele, dois integrantes de uma banda de
reggae que está lançando o primeiro álbum vieram pedir para encontrá-lo depois.
Índio admitiu que tem um gosto bastante apurado. “Eu sei se algo é bom na
primeira nota”, declarou, “Modéstia parte, muita gente vem me pedir opinião.
São muitos anos de estrada, brother. Eu conheço a parada”. Recentemente, remixou
uma música do Barão Vermelho, junto a Marcelo, e disse que a banda gostou
muito.
Índio Blues vê a música
brasileira hoje com muita insatisfação, mas afirma que há muito da nossa
historia musical a se considerar. Valoriza muito as raízes. “Não é preciso
ouvir Ivete Sangalo, Claudia Leite e essas bandas sertanejas universitárias que
tem muito hoje. A gente tem muita coisa boa”.
Quanto à profissão de DJ, ele
diz que não gosta da tecnologia que é empregada hoje e que a excitação era pelo
uso dos vinis. “Aqui, no Brasil, a profissão foi poluída. Mas no exterior só
tem monstro. Tem um DJ brasileiro lá fora, o Marky Mark, que toca muito, cara”.
Perguntei o que define um bom profissional e ele parecia não ter uma resposta
certa. Disse só que precisava “tocar bem”, “ter bom gosto musical”, “ter
feeling”. Deduzo que definir um bom DJ só é possível ao vê-lo em ação.
Hoje, o velho Índio trabalha no
Sebo do Disco, onde que está há quatro meses, e mantém um programa na internet,
que é transmitido, ao vivo, de segunda-feira. É, certamente, uma relíquia da
nossa cultura. À sua maneira, relaxado, despreocupado, talvez irresponsável e
rabugento, ele me transmitiu a sensação de estar frente a frente a uma fonte
transbordante de sabedoria, em suas poucas palavras. Uma boa conversa com ele e
é possível perceber a necessidade de ser decidido e o quanto a vida vale mais
se houver paixão no que se faz. Ao perguntar o porquê de a música ser tão
essencial em sua vida, Índio respondeu: “A música é a união dos povos, meu
amigo. Se as pessoas fossem mais ligadas a ela, o mundo seria bem melhor”.
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