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terça-feira, 18 de junho de 2013

Perfil - Lucas Brêda


FOCO


As pernas cruzadas, o cigarro na mão, o mexer incessante das pernas. O boné a esconder os cabelos castanho claro (cada vez mais próximos do branco), os olhos fechados ao falar (emoldurados por um par de óculos de bordas pretas e grossas). Quem vê o fotógrafo Rui Mendes, não vê as mais de 300 capas de disco que criou, ou as milhares de revistas com as quais contribuiu, mas alguém que casou-se oito vezes, fuma dois maços de cigarro por dia, é extremamente hiperativo, e dá suas opiniões tão facilmente quanto clica uma máquina fotográfica.

Se o rock dos anos 1980 no Brasil tem uma cara, essa cara é a de Rui. O trabalho que mistura muita técnica – para ele, 90% do ofício - e experimentação foi estampado na capa de centenas de revistas e discos. Além disso, ele acredita estar no lugar certo, na hora certa. Cursava jornalismo e cinema na ECA-USP no começo dos anos 80, era colega de sala de Paulo Ricardo (fundador o RPM) e estava inserido em todo o panorama do rock àquela época: “Era uma turma que vivia esse movimento do rock nos 1980”.

Filho de pais baianos, mas nascido em Assis, no interior de São Paulo, Rui fez um ano e meio de intercâmbio no Oregon, Estados Unidos. E foi lá onde substituiu todas as matérias de exatas – queria ser engenheiro – por tudo que era relacionado a arte e fotografia. Quando voltou para cá, já conhecia o mundo dos flashes e filmes: “com 16 anos eu tinha certeza que iria ser fotógrafo”. E o que não sabia da teoria, aprendeu “metendo a cara nos livros”. A faculdade, segundo ele, em nada foi importante na sua formação: “a ECA é um lixo. Tirando história da arte, era tudo muito chato”. Foi lá onde Rui fez um abaixo-assinado contra uma professora que, segundo ele, “lia um livro dentro da sala”. “A gente fez um acordo: ela me deu 5 até o final do ano e eu nunca mais fui naquela aula”.

Nenhum dos dois cursos – jornalismo e cinema - foi concluído. Mas foi na ECA que Rui montou uma chapa anarquista – de nome “Os Picaretas” - para concorrer ao Centro Acadêmico. Contra a chapa “Liberdade e Luta” - “quem mais tarde viria a fundar o PT” -, ele ganhou a eleição, e propôs um fechamento simbólico do CA, com um cadeado. “No final das contas, o CA da ECA ficou fechado dez anos”.

Amigo de Lobão, Rui afirma ter sérios problemas com o partido da presidente da república: “Mas ser contra o PT hoje em dia é ser reacionário, então eu sou reacionário”. E fala da política no Brasil - onde há muita fome, falta de educação, falta de senso crítico -, para quem o bolsa família serve para comprar calça jeans. Diz ainda que a juventude atual não tem discurso, não há movimento estudantil: “todo mundo diz amém para o Lula. Que esquerda é essa?”.

No caso de Rui, seu ofício diz muito sobre sua personalidade. O foco de suas câmeras está sempre apontado para alguém. Ao longo da conversa, suas convicções sobre os lugares por onde passou e as pessoas com quem viveu passam a ser o assunto principal, aos quais ele se refere com muita certeza. Rui só fala de si quando perguntado.


TRABALHO AUTORAL

“Eu nunca consegui ser instrumento de outro. Eu até poderia ter ganho muito mais dinheiro”. E ele não dava ouvidos a ninguém. A técnica, apurada com a prática de quem começou aos 17 anos de idade dava alicerces para a experimentação e a criação de um trabalho totalmente autoral. Uma de suas capas favoritas é a do disco “Música Calma Para Pessoas Nervosas”, do Ira. Nela, retratos tremidos dos integrantes da banda casam perfeitamente com o título do álbum. “O bom de trabalhar com o Rui é que ele sempre arruma soluções criativas e loucas para tudo”, é o que diz Flávio, seu companheiro de trabalho, e com quem dirigiu o último DVD ao vivo do Lobão.

Na direção do clipe de “Balada do Louco”, de Arnaldo Baptista, ele arriscou. Para uma música reflexiva, que fala do limite da loucura e, da sua necessidade para o encontro com a felicidade, ele teve a ideia de retratar um cantor sorridente, quase babaca. As cenas se passam na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais, com crianças vestidas de anjos no nas ruas.

Para Rui, as pessoas o chamam porque procuram qualidade no trabalho, e porque já conhecem seu estilo. Ele não dá, assim, brechas para pitacos na sua profissão: “meu trabalho pessoal e meu trabalho profissional são os mesmos”. Sobre os fotógrafos atuais, ele desconhece. Suas influências vem de outras fontes, principalmente o cinema, a música, e as artes plásticas. “Meu trabalho sempre é autoral. Eles podem falar o que quiserem para mim. Os caras sabem disso. É que nem você, que é jornalista, o cara vai virar para você e falar: escreve aí que nem o Paulo França? Não”.

Antes da morte do ex-vice-presidente José Alencar – “mais presidente que o Lula, que só vivia viajando” -, Rui foi convidado para retratá-lo na capa da revista Alfa. A pedidos de fazê-lo com uma “cara de triste”. “Ele falou: eu vou estar no meu prédio à uma e quatro. Uma e quatro ele estava na minha frente. Estava encarando o câncer com o maior bom-humor. Eu tirei a foto dele daquele jeito e ganhei o prêmio Abril daquele ano”.

O fotógrafo acredita ter sido chamado por uma de suas qualidades: a rapidez. “Se eles precisam de alguém para tirar a foto, já sabem, chamam o Rui”, ele fala de si mesmo na terceira pessoa. E 33 anos de experiência profissional trazem certos aprendizados: “nos primeiros 5 minutos você tem um bom retrato, o resto é só encheção de linguiça”.

*

“Quem viveu os anos 80 e se lembra, não viveu os anos 80”. Que essa época foi de experiências, não há dúvidas. E não há arrependimentos da parte do fotografo: “foi uma época muito libertária para essa juventude”. Ele não enaltece o uso de drogas, mas confessa: “usei de tudo”. Apesar disso, reforçou a ideia de que sempre foi trabalhador, e de que nunca exagerou em nada: “tanto é que eu tô vivo aí”.

-       Você vai pedir o que?
-       Feijoada.
-       Então eu entro. Mas pede magra, hein!? Magra!

As portas de onde estávamos, em seu estúdio, na Barra Funda se abriram durante a conversa pela primeira vez. Um de seus companheiros questionava o que Rui comeria no almoço. A resposta veio acompanhada da entrada de Maia. A pequena cachorrinha deu pulos de alegria quando viu o fotógrafo. “Ela é um amor de pessoa”. Questionado se o animal o pertencia, ele tratou de responder: “não, ela fica aqui no estúdio. Eu tenho meus dois, mas elas ficam lá em casa, agora que eu só ando de moto”.

O sol se fazia presente por entre a grandes janelas que ocupavam toda uma parede do estúdio fotográfico, onde está há 15 anos. Fábio, seu assistente, pintava as paredes do lado oposto. Segundo Rui, a frequência da troca de cor dependia da semana, mas era algo em torno de 3 a 4 vezes. Sobre a luz do sol, ele faz questão de trata-la como um diferencial: “eu acho muito bonito. Eu algo que só tenho aqui. E se eu não quiser, só é jogar papel por cima, e dá tudo certo”.

É impossível falar de Rui sem mencionar sua hiperatividade. As pernas cruzadas não paravam de se mexer, e foram poucas as vezes em que ele não tinha um cigarro aceso em mãos. A conversa era pausada a cada tragada, e os olhos quase sempre fechados mostravam um esforço quase banal de concentração. O ambiente, entretanto, tratava de distrai-lo: “Do que a gente tava falando?”


“RIM” Mendes

“Eu sou sempre dou umas ratas perto dele. Pergunto se ele quer beber água, ou cerveja. Ele não bebe nada (risos)”, diz Magaly Prado, professora de radiojornalismo na Faculdade Cásper Líbero e amiga de Rui desde os anos 1970. “Ele anda com um saquinho, né?”.

“Eu não lembro. Não lembro exatamente o que eu tava fazendo”. Rui se esforçou, mas não conseguiu recordar quais foram suas fotos presentes na primeira edição da revista Bizz (importante revista de música brasileira, da qual Rui foi o fotógrafo de maior destaque). A medicação em excesso devido às quatro sessões semanais (de quatro horas cada) de diálise agem diretamente sob a memória do fotógrafo, que descobriu que não tinha um rim aos 41 anos de idade.

Após voltar de uma viagem ao exterior – “eu estava escalando uns vulcões na Nova Guiné” -, em 2003, Rui estava na casa de um amigo quando começou a sentir mal. A pressão era 18/10. “Era uma dor que não passava, que não passava, que não passava... ‘idioticamente’ tomei uma aspirina, e cai no Sírio Libanês com 24/16 de pressão. Eu era uma bexiga prestes a explodir. Me colocaram para fazer ultrassom na mesma hora. O cara olhou pra mim e falou assim: ‘você não tem um rim, né?’, e eu: ‘HÃ?’”.

O problema foi uma má formação no sistema urinário, que deteriorou aos poucos um de seus rins e “prendeu” o fotógrafo ao hospital, impedindo-o de continuar a fotografar em viagens. E mais: “minha mulher me abandonou. Minha ex-ex-ex-ex. Não... minha ex-ex-ex-mulher me abandonou”. E em alguns segundos, ao mastigar o almoço, Rui mudou a coloração da conversa. O problema da falta do rim, apesar de perturbá-lo – “tô esperando um doador há oito anos, coisa de país subdesenvolvido. Acho que vou ter que tomar uma atitude: comprar um rim logo logo.” – parece já fazer parte de sua vida.


MULHERES

Perguntado sobre quantas vezes foi casado, ele respondeu: “oito vezes. Estou no oitavo relacionamento”. Recordar não é tão fácil para a cabeça de Rui, e ele demora quase três minutos para conseguir lembrar o nome de todas: “como é o nome daquela gaúcha? uma que era linda de morrer. Me largou porque achou que eu rico (risos). Foi morar com um francês”. A apuração foi: Cláudia, Paula, Tereza, Renata, Carla, Rosa, Luciana. E após conseguir tal façanha, ele conclui: “engraçado que não repete o nome, né?”

Apesar de ter ficado oito anos com Paula – a única com quem não conversa hoje em dia -, Rui enche a boca para falar de Luciana, para quem era uma menina muito inteligente. Ele conta: “ela queria que eu fosse para Curitiba. Meu trabalho não tem nada lá. Aqui tem o melhor hospital do mundo para fazer o que eu faço, não vou sair daqui”. E dá risada para contar que não sabia que o casamento havia terminado, “ela terminou comigo e eu não me liguei, continuei casado, só que ela não”.

Sobre a atual: “uma figura que a gente namorou intercaladamente todas essas mulheres”. Depois de 30 anos de namoro interrompido, enfim o casamento. Seu oitavo. Com festa, papel passado e tudo. E ele muda o diálogo da conversa mais uma vez. Agora, para falar da Lei Seca, e que as pessoas não bebem mais em casamentos porque têm de voltar dirigindo. E Maia surge para ganhar um ossinho. “Ossinho de bisteca. Osso bão”, ele diz a ela. E quanto dentro da caixa não havia mais cigarros, ele grita: “Tá na hora de vocês tomarem uma atitude”.

*

Na sua sala, um computador do tipo iMac – com a maior tela em que é fabricado – é sua ferramenta. Além das luzes e do estúdio com quem divide mais pessoas, que ele define como “gente que faz um monte de coisa parecida”. Tudo relacionado a arte – de design a fotografia e direção. A janela dá visão à rua, e prateleiras contém livros e mais livros sobre arte e técnica fotográfica. Em seu computador, ele me mostra uma capa de um CD de sertanejo universitário que está produzindo. Um desafio: “quando foge muito do meu universo, eu dou uma pesquisada e peço para eles me trazerem influências, senão não dá”.

Aos 21 anos de idade, ele já tinha uma coluna no jornal Folha de S.Paulo: a “Fotografe Sem Mistério”. Era 1983/85. Estudante de jornalismo na ECA, “escrevia direitinho”, e conseguiu o espaço por indicação de amigos. “A Folha tava começando a imprimir a cores, então eu fazia uma foto legal e ela sabia completamente fora de registro”. A má qualidade da impressão contrastava com o assunto da coluna, o que, ironicamente, era motivo de risada. Na coluna, Rui falava sobre filmes, flashes e equipamento, dando de dicas e testando novas tendências do mercado. “Era como um manual crítico mesmo”.

Da revista Bizz – importante revista de música brasileira, publicada pela editora Azul, “braço” da Abril -, foi o freelancer mais importante e atuante, durante toda sua trajetória. Para ela, fotografou um ensaio emblemático com Raul Seixas. Quando o fotógrafo chegou à casa do música, ele estava dormindo, mas logo se levantou e foi daquele jeito mesmo para o ensaio, com remela no olho. O produto final mostra um Raul em preto e branco, com seu violão, dos mais importantes da carreira de Rui.

Quando a banda Skank vendeu o primeiro milhão de discos, a Bizz o convidou para fazer uma foto onde a banda estaria segurando um milho gigante. Ele recusou. “Isso é idiota, bixo. E fizeram. Chamaram um tal de um fotógrafo de merda e fizeram a foto de merda. É uma besteira fundamental”. Ele ainda lembra do ensaio que fez com os integrantes do Skank jogando bola, onde ele estava deitado na grama, tirando as fotos todas de baixo. “Tem uma foto do Samuel (Rosa, vocalista) onde ele tá chutando uma bola no ar assim (mostra), com umas nuvens atrás”.

“Sou um fotógrafo retratista”. E de estilo único. Diz ter trabalhado em todas editoras brasileiras que possuem – ou possuíram – uma revista. Para a revista de música Rolling Stone, ele já fotografou a banda Fresno numa roupagem rock’n’roll, “chamei eles e falei: vou transformar vocês em uma banda de rock”; o Mano Brown (vocalista dos Racionais MCs); e a banda NX Zero, então sensação, com todos os integrantes pelados – “eles são bem profissionais, foi tudo muito rápido”. Sua opinião sobre a revista: “é chapa branca, né? Hoje em dia é tudo chapa branca”. A frase saiu baixinha, quase um sussurro de quem não quer, nesse momento, ser ouvido.

Na internet, seu Flickr mostra um pouco do seu trabalho, com 105 fotos bem escolhidas, que mostram desde Fernando Henrique Cardoso até Renato Russo, passando por gente como Renato Fraga, Antônio Banderas e BB King. Em 2013, realizou uma exposição sobre o pós punk no Brasil, e trabalha agora em um livro com uma compilação de retratos de sua autoria.

Ele mesmo disse, “para mim, se nada teve tanta importância, tudo teve muita importância. Não é um fato isolado”. Na vida de Rui Mendes, as mulheres, as experiências, seu trabalho, sua saúde, tudo tem um peso. Se a memória já não é a mesma, o que é lembrado marca muito. Na esperança de conseguir um doador, ele segue trabalhando, sincero e amargo com as pessoas que atravessam seu caminho, e sempre em busca da conversa, de dar suas opiniões.

A música, tão presente há trinta anos, parece ter ficado no passado: “se eu te falar que eu ouço muito Beatles, eu não estou mentindo”. Cita os Novos Baianos como a banda de rock mais legal que já passou por aqui, e alfineta o que há de novo “tudo soa muito deja vu para mim. Se é para copiar, vamos parar até o quarto carbono, daí para frente, fica chato (risos). E completa: “Não gosto de Coldplay, não gosto de Radiohead”.

Dos trejeitos aos gostos bem definidos, das várias mulheres aos maços de cigarro. Como em suas fotografias, Rui Mendes parece deixar toda sua vida em foco. Cada faceta tem a sua importância. Cada lugar, cada pessoa, cada trabalho. Se fica de lado um orgulho pelo passado, há uma vontade incessante de nunca parar. É difícil ver Rui aposentado, sem trabalhar. Assim é como é difícil vê-lo falar de si, em detrimento dos outros assuntos. Para diversas lentes, a vida do fotógrafo está em evidência. Para sua câmera, entretanto, talvez o único retrato que tenha ficado fora de foco tenha sido o seu próprio.

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