Sorriso entrincheirado
Era uma terça feira cinzenta quando cheguei na rua Martim Pescador, número 39. Fui acolhida com um suco de laranja e um casal de velhinhos simpáticos e sorridentes – Giuseppe Murlo e Caterina Murlo - sentados confortavelmente em seu sofá, cobertos com uma manta antiga, daquelas que só não é mais quente do que colo de mãe. E é claro, a recepção calorosa de sua cadela, chamada Funny, que latia insistentemente para não me deixar esquecer que aquele território era dela e que eu estava invadindo sem o menor pudor.
Estavam
assistindo Jornal Hoje, noticiário da Rede Globo transmitido na hora do almoço,
e esboçavam reação de choque a cada nova notícia sobre a manifestação Passe
Livre, na qual os estudantes pedem a redução no valor da tarifa do transporte
público (que sofreu um aumento de vinte centavos) e a melhoria do mesmo. Ver
esse tipo de expressão em Giuseppe é no mínimo irônico se compararmos com a sua
história. Afinal, o que é desordem pública perto da Segunda Guerra Mundial?
Comecei a
entrevista pedindo para Giuseppe contar um pouco de sua infância, num tom de
conversa informal. Ele faz uma longa pausa para se ajeitar no sofá, puxa o
cobertor para si e começa seu relato a partir dos 18 anos. Não o interrompi e
mergulhei dentro das memórias de uma pessoa que já ficou frente a frente com a
depredação mundial. Em uma mesma frase, repete diversas vezes: “quando fui pra
guerra” como se quisesse me convencer do fato, e continua a me contar. Giuseppe
foi para guerra em 1942, com dezoito anos, depois de três meses de treinamento
de tiros e defesa corporal, instruções que todos os combatentes recebiam.
Modesto, atribui sua vida à sorte, e diz que foi acaso de Deus estar entre nós.
Presenciou amigos de farda morrendo ao seu lado e chegou a se convencer que
podia ser ele a qualquer momento.
O italiano ficou
cerca de três meses em combate até ser “pego prisioneiro”, expressão que usa ao
longo da entrevista incontáveis vezes. Se escondeu em trincheiras,
desmistificando o que aprendi no meu ensino médio “era muito fácil cavar uma
trincheira, até porque estávamos no meio do deserto. Nós cavávamos e
colocávamos cerato em cima”. Enquanto uns ficavam de sentinela, outros dormiam,
numa espécie de rodízio. Usavam a mesma roupa dias a fios, “como ia se trocar
lá na guerra? Não tinha essa coisa toda, mal tinha água.”
Gesticulando com
as mãos o tempo todo, como um bom italiano, Giuseppe misturava momentos da
guerra ao relatar cada episódio. Hora estava me contando de quando foi preso,
hora estava me contando de seu treinamento pré-combate, e de repente estávamos
dentro de uma trincheira vendo bombas estourarem por toda a parte.
Sobre sua
prisão, não poupa detalhes. Foi pego após três meses de combate, numa emboscada
armada pelo exército inglês. Quando estavam em combate, foram cercados e assim
ficaram por dois dias e três noites. No terceiro, quando os ingleses começaram
a aparentemente se afastar, conseguiram fugir. Porém, logo foram recapturados e
dos quarenta e três que estavam com ele, apenas dezenove ficaram vivos para
contar história.
“Quando me
pegaram prisioneiro depois de três dias então nós estávamos querendo “voltar pra
trás”, os ingleses estavam avançando e nós tivemos que evacuar. Quando a gente
estava querendo fugir vieram aqueles carros tanques sabe? E me pegara
prisioneiro e me levaram a Alexandria, no Egito. Lá ficamos em 1600
prisioneiros num campo de concentração. Ficamos um ano e meio. Era um deserto,
tudo areia. Tinha barraca de lona e cada uma delas dormia 10 pessoas, no chão.
Davam duas cobertas, uma pra colocar em baixo. A noite era muito frio e de
manhã fazia em torno de quarenta e cinco graus.” Sobre a segurança, observa: “lá
tinha o arame farpado em volta e nos 4 cantos do campo de concentração tinha
sentinela inglesa com fusil, metralhadora pra se alguém quisesse fugir, eles
atiravam. Mas também, fugir pra onde? Lá no deserto? Era longe da cidade. De lá
depois me levaram pro Cairo, no Egito também. Aí depois fiquei lá por 36 meses,
3 anos. Depois de todo esse tempo, em outubro de 1945, começaram a mandar gente
ir embora.”
Indaguei-o a
respeito de notícias: eles recebiam? Sabiam o que se passava no resto do mundo?
A resposta, para minha surpresa, foi afirmativa. “Muitas vezes os próprios
soldados inimigos nos contavam”. Inclusive, depois de seis meses ele pode
comunicar seus pais a respeito de seu paradeiro. A cruz vermelha possibilitava
o intercâmbio de cartas como modo de conforto às famílias dos soldados. Já os
dias e anos exatos, não sabiam. Datas comemorativas, por exemplo, muitas vezes
passavam despercebidas. Aquela lenda de que no Natal havia uma trégua entre os
soldados é um boato leviano, segundo Giuseppe. E novamente, usa a água como
atributo “mal tinha água, como íamos comemorar o Natal?”.
O problema da
água, como pude constatar, foi um dos piores problemas, assim como a
alimentação. Banho era raro, feito através de canecas e só na parte da noite, já
que não havia água de manhã. Lavar a roupa era impossível, o que obrigava os
prisioneiros a rasgarem suas próprias vestimentas para que, enfim, possibilitasse
a troca (quando muito). Essa parte de “troca de roupas”, confesso que não ficou
esclarecida. Mas foi tudo o que pude saber, e não insisti.
A comida era
sempre insuficiente, incluindo de carne de camelo à farinha. “Variava muito,
mas era certo que sempre faltaria”. Giuseppe conta que certa vez, os soldados
lhes deram farinha para misturar no chá. Então todos os prisioneiros juntaram
suas farinhas e Giuseppe ficou encarregado de fazer uma massa. Foi pego em
flagrante, viu sua massa ser chutada na areia por dois soldados ingleses, e como
punição, teve que ficar quatro horas com os braços para cima (e com um rifle
apontado contra seu tórax, segundo sua neta).
Detalhes
sórdidos sobre a truculência sofrida eram amenizadas pelo italiano. Mas uma
conversa posterior com seus familiares me possibilitou alguns detalhes.
Giuseppe conta que apoiava Mussolini, Hitler e os motivos que guiaram a guerra.
Não o condenei em momento algum, afinal não é meu dever assumir um
posicionamento. Além disso, era a sua realidade, e de forma alguma alguém
conseguiria mudar isso. Mas essa afirmação não seria bem recebida a todos os
ouvidos. Letícia, sua neta, me conta que a forma como foi criado por esses
ditadores quando criança reflete até hoje: “toda vez que tem alguma
manifestação, meu avô não apoia e ainda diz que no tempo dele isso não
aconteceria. Apoia firmemente a repressão policial”.
O fator
“nacionalismo” também foi citado. Exemplifiquei o termo com americanos que
crescem venerando a bandeira e ouvindo o orgulho que é defender seu país de uma
guerra. Giuseppe responde: “A Itália também. No tempo do Mussolini nós cantávamos
o hino nacional, era a primeira coisa na entrada da escola, que era diferente
do atual porque era programado do Mussolini. Depois que ele morreu proibiram de
cantar aquele hino e criaram outro, que é o que se canta até hoje”. Também
afirma que era sim um orgulho defender sua pátria, mas não se entusiasma muito
nesse quesito. Parte dessa reação deve-se ao fato de que ele não compreendeu
realmente a questão e logo deteve-se novamente nos subterfúgios históricos, e fez
questão de traçar os pactos guerrilheiros. “O Mussolini que programou a guerra,
junto com o Hitler na Alemanha e o Japão. O Japão de um lado do combate e nós
do outro.” Apesar da ambiguidade, o Japão não estava contra a Itália. Na
verdade, Giuseppe citou os países do Eixo, um dos “grupos” da guerra, que
lutaram contra os Aliados (Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética, fora
muitos outros que apenas auxiliavam), os vencedores da Segunda Guerra, que só
para constar durou de 1939 à 1945.
O fato é que o
exército sempre esteve no sangue do perfilado em questão. Seu pai defendeu a
Itália na Primeira Guerra mundial, ainda que só a partir de 1918, quando já
estava acabando. E diferente do filho, não “ficou prisioneiro”. Os irmãos de Giuseppe não foram convocados,
mas alguns primos sim (segundo sua neta, Letícia). Seu pai foi com a mesma
idade que ele na época: 18 anos. Ele foi o único convocado, mas ressalta que a
consciência de estar sempre preparado para uma guerra existia e existe até hoje
em sua terra natal, um pouco diferente da terra onde reside atualmente.
Algo que me
intrigou ao longo da entrevista foi a naturalidade com que Giuseppe tratava da
morte, seja ela na guerra, seja ela nos dias de hoje. Desconhecido ou familiar,
tio Peppo (como assim é conhecido na Itália por seus familiares) falava da
morte como quem conta um fato curioso, mas irrelevante. Isso me fez pensar:
será que o guerrilheiro sentia algum remorso no campo de batalha? “Não podia
ter nenhum tipo de remorso porque os nossos também estavam morrendo e você não
podia fazer nada. Era atirar ou morrer, ficava aquele instinto de nervosismo de
não saber o que vai acontecer em seguida, não dava tempo pra se arrepender.” Ao
indagá-lo sobre sua real motivação, vingança ou medo, ele me lembra algo que
até então eu ignorava: o capitão. É claro que eles estavam ali sob ordem e
vigília, logo seus instintos e ordens coordenavam os seus atos. Giuseppe na
posição de atirador-chefe, cargo que ganhou ainda no treinamento pré-guerra
devido sua aptidão com a função, ficava frente a frente com o sentimento de
vingar seus companheiros e de se defender, não tinha como escolher um só que o
motivava. Quando via, seus auxiliares (que eram cerca de seis) já haviam
carregado novamente sua metralhadora, com um pente de 70 balas, e tudo que
fazia era atirar em cego.
Como
sair imune emocionalmente à uma turbulência que é a guerra? Não sei, mas
Giuseppe jura não guardar remorsos e ainda brinca “Num jogo em que a Inglaterra
joga, torço sempre pro adversário, fora isso, tudo normal.” Diz o tempo todo o
quanto eles foram maltratados na mão dos britânicos, mas em seguida emenda
“guerra é guerra, nunca foi nada pessoal”. Porém, ele não deixa de me relatar
cada cena com tamanha precisão, que ele mesmo observa “As impressões que
ficaram são as visões que tenho ao falar de tudo, consigo sentir cheiros,
visualizar em minha cabeça os lugares por onde passei/sofri.”
Orgulhoso, Peppo não assume qualquer outro
tipo de trauma, mas sua neta me revela nos bastidores um resquício,
relativamente mínimo já que poderia ser pior: seu nonno tem mania de estocar
comida. Inconscientemente ou não, ele compra uma quantidade demasiada de
alimento que acaba envelhecendo nos armários por motivos de sobra.
Decidi que já
sabia demais da guerra, e tive que interromper um insistente contador de
histórias a esquecer os “anos de chumbo” (pelo menos no contexto de sua vida)
para falar de coisa boa: dona Caterina, ou Cateri como é chamada por seu
conjugue e toda a sua família. O casal que está junto à 61 anos já deixou seis
herdeiros, respectivamente: Rosetta (1953 – nasceu quando ainda estavam na
Itália), Antonietta (1958), Pascualle (1961), Filippo (1964), Ana (1965) e
Cláudio (1968). Giuseppe até essa altura da entrevista havia falhado em raros
momentos com datas, fator em que se apega muito. Mas ao falar dos filhos,
confundiu datas diversas vezes, porém nunca assumindo. Quis me falar o ano, mês
e dia de nascimento de cada um dos seis filhos, especificando inclusive o
momento de suas vidas e da história do mundo em que nasceu cada um.
Ao lembrar como
conheceu a mulher, desencadeia diversas outras lembranças. Aparentemente, seu
retorno da guerra foi turbulento e cheio de acontecimentos. A vida de Giuseppe
parecia estar a milhão e então foi trabalhar com seu pai em uma firma na cidade
vizinha. Conheceu uma outra mulher, amiga de sua atual esposa,que morava no
andar de cima onde Giuseppe residia temporariamente. Entretanto, o pai dessa
outra namorada não aceitava de forma alguma o relacionamento, chegando a
agredir sua filha por ver os dois juntos. Esse episódio, na verdade, foi
decisivo para a vida dos dois amantes: Giuseppe entra para apartar a briga e a
partir disso a família da
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