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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Nathália Aguiar


Ithamar Trabalho


O encontro estava marcado para aquela nublada terça-feira de maio às nove horas da manhã. Apesar da proximidade, saí do Tatuapé com uma hora de antecedência rumo à produtora de áudio-visual Infinity, localizada na Mooca. O par trânsito intenso e Gps quebrado resultou num misto de ansiedade e desespero que me fizeram pedir socorro ao meu pai, velho conhecido do meu entrevistado. Graças à assistência do meu genitor, que compreendera minha aflição em chegar atrasada, estacionei na Rua Curupacê pontualmente às nove. Antes que eu apertasse a campainha da produtora, Ithamar apareceu na janela do primeiro andar e prontamente liberou a entrada. De camisa verde, ele me recebeu na porta com um bom humor que descobri, posteriormente, ser característico. Ele logo me perguntou se foi fácil chegar à sua querida Mooca e, sem omitir a dificuldade que tive, contei a ele o trajeto que fiz. Continuamos conversando sobre trânsito enquanto seguíamos para uma sala de reuniões dentro de seu acomodado e silencioso espaço de criação.
Gravador ligado, Ithamar acomoda-se numa cadeira próxima à janela entreaberta e revela uma mania: pergunta se seria um problema ele fumar. Recebendo meu alvará, cruza as pernas e acende um cigarro. Começo indagando: por que a Mooca? Ithamar nasceu no bairro em que vive e trabalha, mas explica que morou por dois anos em Curitiba devido a um emprego de seu pai. Foi aos cinco anos de idade, morando na capital paranaense, que o menino Ithamar aprendeu a ser comunicativo, apesar de não frequentar a escola. Ele conta que sua casa ficava próxima a uma república onde passava o dia inteiro ao lado de estudantes universitários. Seus pais não se importavam muito, já que gostavam dos estudantes. “Eu ficava lendo, ouvindo as conversas das meninas e vendo os meninos aprontarem. Um dia me fizeram cortar o próprio cabelo. Meu pai quase me matou”, relembra Ithamar, cujas pernas não param por um instante sequer, mesmo permanecendo sentado. Para ele o tempo vivido em Curitiba foi um intensivo: “muito do meu jeito de ser comunicativo, brincalhão e de gostar de aprontar foi por causa da convivência com esses caras numa época em que eu era criança e estava aprendendo as coisas”.
Essa não foi a única experiência dele fora da Mooca. Ithamar Lembo morou por seis meses na Vila Carrão, por alguns períodos no Rio de Janeiro e, novamente, em Curitiba, todos a trabalho. Mas sempre voltou ao bairro de origem. Seu cigarro chega ao fim no momento em que responde minha pergunta inicial: “nada é como a Mooca. Meu filho estuda num colégio com crianças que são filhas de amigos meus de infância cujos pais estudaram com meus pais. E não é um ou outro, são vários. Aqui as pessoas realmente se conhecem e quase toda rua tem uma vila”. Mooquense apaixonado, diz não sair de seu bairro por nada, nem se ganhar na loteria. “É uma coisa de raiz. Hoje em dia tudo é impessoal, as pessoas não têm mais raízes, são ligadas somente no fazer sucesso e ganhar dinheiro”, analisa com o auxílio das mãos, como um típico morador da Mooca.
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Ithamar gosta de falar. E fala bem. Em virtude, talvez, de suas profissões. Atualmente ele é ator, diretor, locutor, roteirista e dono da Infinity Filmes. Timbre e personalidade, ambos fortes, foram importantes em sua trajetória. Assim como as coincidências, nas quais ele credita muitos encontros e oportunidades que teve ao longo da vida. Aos sete anos de idade, ele teve seu primeiro contato com o teatro, numa peça de final de ano da escola. “Eu fazia o papel de mato. A única função era simular um crescimento, mas foi sensacional”. A amizade com o colega de sala Matheus Carrieri, que já aparecia em programas de tevê, possibilitou alguns trabalhos na infância. A possibilidade de fazer uma peça com personagem e melhor estruturada surgiu aos doze anos, época em que Ithamar se dedicava ao futebol. Jogador do Juventus e apaixonado pelo esporte, ele só participou da peça por insistência de sua mãe, que via no teatro um meio de acalmar seu agitado filho. “Eu me lembro da primeira vez que entrei no palco. No momento em que eu vi a plateia, senti uma sensação diferente. Quando acabou [o espetáculo], eu tive certeza absoluta que iria fazer aquilo para o resto da vida”, recorda Ithamar após 35 anos do episódio.
O gosto pela coisa foi intensificado quando Ithamar conquistou uma bolsa de estudos para um curso de teatro. Ele tinha 14 anos e, no mesmo período, trabalhou como office boy, sem se esquecer do futebol. Ainda tinha dúvidas quanto à futura profissão: ator ou jogador? “Nunca cheguei a ser profissional. No colegial, minha vida girava em torno do “Showcante”, um festival anual que acontecia no meio do ano com muitas atividades artísticas”, conta enquanto descruza as pernas e volta a chacoalhá-las.  “Conclusão disso: repeti três vezes o primeiro colegial. Mudei para um colégio particular no qual fazia técnico em marketing, à noite, para poder trabalhar e ter dinheiro para pagar meus bailinhos, minhas roupas...”, continua Ithamar. Nessa época ele começou a trabalhar na Comolatti, empresa onde seu pai trabalhava, na função de coordenar as lojas de pneus. Trabalhava lá também Nelson Rodrigues, encarregado do setor fiscal da empresa e meu pai. Por ter acesso a todos os departamentos do grupo, Nelson conheceu Ithamar e, embora fossem adversários nos campeonatos internos de futebol, eram colegas. “Lembro-me bem do Ithamar brincalhão, amigo de todos, sempre puxando conversa. Convivemos por pouco tempo, mas pude perceber que tínhamos a mesma postura descontraída”, relata meu genitor que, apesar da distância, acompanhava a carreira dele por meio dos comerciais e participações em novelas.
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Ithamar acende outro cigarro. Explica que não demorou muito para perceber que vender pneus não era sua área. “Soube que o TUCA ia reabrir. Eles estavam selecionando atores para um curso profissional e essa turma faria o espetáculo de estreia”, lembra Ithamar que só ficou sabendo no dia que as inscrições terminaram. Mas isso não o impediu de ir até o TUCA, conversar com o coordenador e participar da primeira montagem de “O homem e o cavalo” de Oswald de Andrade. Prestes a se formar no curso, Ithamar recebe um telefonema que esperara desde 1986. Naquele ano, ele assistiu um musical de Oswaldo Montenegro, “Aldeia dos ventos”, cuja montagem o impressionou. “Falei para os meus amigos que um dia iria trabalhar com aquele cara. Eles morreram de rir. No camarim, enquanto ele autografava meu CD, anotei meu número num cartão e disse que queria muito trabalhar com ele”, conta o obstinado Ithamar. Anos depois, entrou para a companhia de Montenegro.
O ritmo frenético de ensaios e peças fez com que Ithamar montasse, em parceria com dois amigos, uma companhia. “Quer água? Tem água gelada lá”, ele interrompe com gentileza. Ithamar produziu o espetáculo “Do kitsch ao sublime”, uma comédia musical que lhe proporcionou se descobrir como autor: “todo mundo queria saber quem tinha feito aquele texto. Passaram a fazer encomenda de textos e eu nem sabia que eu sabia escrever”, diz o atual roteirista. Multifacetado, Ithamar relembra como se tornou locutor: “minha vida é cheia de por acasos. Fiz um comercial para as Casas Bahia, em 1997, e eles queriam a mesma voz da TV no rádio. Nunca tinha pensado em locução, sabia que era panela e que poucos entravam sem contato”. Dono de uma voz grave, Ithamar foi chamado para duas ou três locuções, mas foi sem pretensão. “Achava que estaria quebrando um galho. Me ligaram, pediram o número da minha conta e caiu uma puta grana. Pensei comigo: esse negócio aí é legal”, revela Ithamar, há 20 anos marcando sua voz nas mais diversas publicidades.
A instabilidade, característica do seu ramo, pesou em 2001. “Estava namorando e falei para a minha mulher: estou indo para os 40 anos fazendo esse negócio. Preciso de algo fixo”, diz Ithamar. Um amigo o chamou para ser sócio de um bar na Mooca. Agarrou a oportunidade com unhas, dentes e muito trabalho, mas deram azar. O bar durou um ano, período no qual Ithamar ficou afastado do mercado de trabalho e tornou-se pai. ”Pensei comigo: o que fazer agora? Mas como minha vida é cheia de coincidências sensacionais...” prossegue Ithamar, em meio a risos. Coincidências e amigos. Surge a possibilidade, graças a um amigo desesperado, de atuar como diretor de criação do lançamento mundial do carro da GM. “Nunca tinha feito aquilo, era roteirista. Há três meses do evento fui conversar com o cara. Iria dirigir um show, na Costa do Sauípe, para duas mil pessoas, cheio de atrações... uma coisa monstruosa!”, diz. E assim o fez. “Tem que ter cara de pau e, ao mesmo tempo, confiar muito em você”, ensina Ithamar que, após dois anos na empresa, recebeu outra proposta. Ele ficou sabendo que um cara queria montar o maior prêmio de jornalismo do Brasil. O tal cara, Rodrigo Azevedo, mostrou as ideias a ele e acabaram criando o maior prêmio de jornalismo do Brasil. Ithamar roteirizou e dirigiu todos os Prêmios Comunique-se, esse ano, rumo a 11ª edição.
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Ajeitando-se na cadeira, cruza as pernas inquietas enquanto gesticula e segue a retrospectiva: “aí voltei a fazer locução, comercial, teatro, participação em novela...”. Entre as diversas emissoras e novelas na qual Ithamar trabalhou, pergunto a ele se na Rede Globo, onde apareceu recentemente nos capítulos finais de Insensato Coração, sentiu maior visibilidade. E ele responde: “O trabalho, para nós que fazemos, é uma coisa. (...) O telespectador tem ilusão de que estar na Globo é melhor do que estar em outra emissora. Para nós não é verdade”. Após Insensato, Ithamar recebeu proposta para outro projeto na emissora, mas preferiu atuar em Carrossel, no SBT. “O contrato foi mais longo, ganhei mais do que ganharia na Globo e não precisei ir para o Rio. Adoraria viver só de atuação, mas não dependo só da minha vida de ator para viver; tenho meu filho, minha empresa, minhas locuções e roteiros. Não vou fazer só por ser na Rede Globo”, finaliza com a experiência que seus 47 anos de idade lhe proporcionaram.
Ithamar aventurou-se, também, no cinema. Participou do longa-metragem vencedor da 29ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, intitulado Quarta B, famoso no meio universitário. Atuou em diversos curtas e, entre cinema, novela e teatro, fica com os três. “Gosto de todos, apesar de serem muito diferentes. A novela possibilita a criação de um personagem de maneira mais profunda, mais densa. O teatro também, mas precisa verbalizar e gesticular muito para existir. No cinema, às vezes, um close resolve, desde que se tenha cara para isso”, diferencia Ithamar. Para ele, o personagem do cinema e da novela é imutável em comparação ao teatral. “O teatro não acontece sem ator, é o mais solitário dos trabalhos. O personagem é construído todos os dias, durante meses falando a mesma coisa, fazendo os mesmos gestos. E tem que ser feito com o mesmo frescor da primeira vez”, conclui antes de dizer que, se tivesse realmente que escolher entre cinema, novela e teatro, ficaria com a última opção.
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O teatro Bibi Ferreira, naquela noite de dia das mães, estava consideravelmente cheio. Há oito meses Ithamar está em cartaz na peça Toc Toc, uma comédia escrita em 2005 que já passou por diversos elencos durante os cinco anos em que é encenada. A peça tem como enredo o encontro de seis personagens, cada um com um tipo diferente de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), na sala de espera de um consultório. No palco, Ithamar transforma-se em Vicente, “o cara que entra para tumultuar”, em suas palavras, e que não consegue parar de fazer contas. Ao final do espetáculo, acompanhado de uma garrafa d’água e visivelmente cansado, Ithamar nos cumprimenta na porta. “E aí, gostaram?”, pergunta como se houvesse a possibilidade de não gostarmos de uma peça na qual se ri do começo ao fim. Ithamar possui a mesma ironia e maneira de tirar sarro de Vicente. “Quando se tem uma personalidade forte, marcante, é muito difícil se transformar em outra pessoa no vídeo ou no teatro. Não dá para se anular totalmente. (...) Sempre será você, não dá para jogar fora sua voz, seus gestos”, explica Ithamar.
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Apesar de não se considerar um usuário assíduo das redes sociais, Ithamar frequentemente publica textos, um tanto quanto polêmicos, em seu perfil do Facebook. Ele diz não sentir necessidade de entrar no site a todo o momento, embora considere a rede social uma importante ferramenta na divulgação de seu trabalho. “Gosto muito de humor, é a principal arma para se discutir as coisas. Mas adoro escrever sobre política, sobre a sociedade... Já consegui trabalhos por causa de textos meus no Facebook”, observa ele, cujo perfil é seguido por quase quatro mil pessoas. Com relação às críticas que recebe em forma de comentário, Ithamar é enfático: “Acho válido, mas prepare-se para a réplica. (...) Mudo constantemente de ideia sobre as coisas, mas tem que ter disposição para me fazer mudar de opinião”. Convicção é uma palavra que define sua personalidade. “Eu odeio o Lula. Já votei [nele], mas hoje, para mim, ele é o maior engodo da história desse país. (...) Tenho amigos petistas e a gente conversa sadiamente sobre política. Mas não venha defender sem argumento”, diz logo após afirmar que pode ficar três dias falando do mesmo assunto, sem problemas.
Após duas horas de conversa, pergunto a Ithamar, em seu terceiro cigarro, o que costuma fazer nos momentos de ócio. “Na verdade, sobra muito pouco tempo da minha vida fora do trabalho. Leio muito, mas, quando leio, é para o trabalho. Para mim, ler nada mais é do que alimento para escrever”, responde. Insisto na pergunta, julgando ser impossível não ter um momento de puro lazer, algo banal. Ithamar vai com frequência ao cinema. Mas diz prestar atenção no enquadramento do diretor, no roteiro, nos efeitos utilizados... Após rirmos, ele explicou: “Ao mesmo tempo em que tudo para mim é trabalho, nada é trabalho. Como se trabalhar não fosse algo que não pudesse dar prazer. Trabalhar, para mim, é um prazer. Quem faz o que gosta, não trabalha e, sim, vive”. Só então pude entender as multi profissões bem sucedidas e a preferência por estar em cartaz ao invés de jogar futebol e cacheta com os amigos. “Estou há sete meses sem jogar por causa da peça. É claro que eu sinto falta, mas não troco”, finaliza Ithamar, cujo sobrenome é Lembo, mas que poderia muito bem ser Trabalho.

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