Ithamar
Trabalho
O
encontro estava marcado para aquela nublada terça-feira de maio às nove horas
da manhã. Apesar da proximidade, saí do Tatuapé com uma hora de antecedência
rumo à produtora de áudio-visual Infinity, localizada na Mooca. O par trânsito
intenso e Gps quebrado resultou num misto de ansiedade e desespero que me
fizeram pedir socorro ao meu pai, velho conhecido do meu entrevistado. Graças à
assistência do meu genitor, que compreendera minha aflição em chegar atrasada,
estacionei na Rua Curupacê pontualmente às nove. Antes que eu apertasse a
campainha da produtora, Ithamar apareceu na janela do primeiro andar e
prontamente liberou a entrada. De camisa verde, ele me recebeu na porta com um bom
humor que descobri, posteriormente, ser característico. Ele logo me perguntou
se foi fácil chegar à sua querida Mooca e, sem omitir a dificuldade que tive,
contei a ele o trajeto que fiz. Continuamos conversando sobre trânsito enquanto
seguíamos para uma sala de reuniões dentro de seu acomodado e silencioso espaço
de criação.
Gravador
ligado, Ithamar acomoda-se numa cadeira próxima à janela entreaberta e revela
uma mania: pergunta se seria um problema ele fumar. Recebendo meu alvará, cruza
as pernas e acende um cigarro. Começo indagando: por que a Mooca? Ithamar
nasceu no bairro em que vive e trabalha, mas explica que morou por dois anos em
Curitiba devido a um emprego de seu pai. Foi aos cinco anos de idade, morando
na capital paranaense, que o menino Ithamar aprendeu a ser comunicativo, apesar
de não frequentar a escola. Ele conta que sua casa ficava próxima a uma
república onde passava o dia inteiro ao lado de estudantes universitários. Seus
pais não se importavam muito, já que gostavam dos estudantes. “Eu ficava lendo,
ouvindo as conversas das meninas e vendo os meninos aprontarem. Um dia me
fizeram cortar o próprio cabelo. Meu pai quase me matou”, relembra Ithamar,
cujas pernas não param por um instante sequer, mesmo permanecendo sentado. Para
ele o tempo vivido em Curitiba foi um intensivo: “muito do meu jeito de ser
comunicativo, brincalhão e de gostar de aprontar foi por causa da convivência
com esses caras numa época em que eu era criança e estava aprendendo as coisas”.
Essa
não foi a única experiência dele fora da Mooca. Ithamar Lembo morou por seis
meses na Vila Carrão, por alguns períodos no Rio de Janeiro e, novamente, em
Curitiba, todos a trabalho. Mas sempre voltou ao bairro de origem. Seu cigarro
chega ao fim no momento em que responde minha pergunta inicial: “nada é como a
Mooca. Meu filho estuda num colégio com crianças que são filhas de amigos meus
de infância cujos pais estudaram com meus pais. E não é um ou outro, são
vários. Aqui as pessoas realmente se conhecem e quase toda rua tem uma vila”.
Mooquense apaixonado, diz não sair de seu bairro por nada, nem se ganhar na
loteria. “É uma coisa de raiz. Hoje em dia tudo é impessoal, as pessoas não têm
mais raízes, são ligadas somente no fazer sucesso e ganhar dinheiro”, analisa
com o auxílio das mãos, como um típico morador da Mooca.
*
Ithamar
gosta de falar. E fala bem. Em virtude, talvez, de suas profissões. Atualmente
ele é ator, diretor, locutor, roteirista e dono da Infinity Filmes. Timbre e
personalidade, ambos fortes, foram importantes em sua trajetória. Assim como as
coincidências, nas quais ele credita muitos encontros e oportunidades que teve
ao longo da vida. Aos sete anos de idade, ele teve seu primeiro contato com o
teatro, numa peça de final de ano da escola. “Eu fazia o papel de mato. A única
função era simular um crescimento, mas foi sensacional”. A amizade com o colega
de sala Matheus Carrieri, que já aparecia em programas de tevê, possibilitou
alguns trabalhos na infância. A possibilidade de fazer uma peça com personagem
e melhor estruturada surgiu aos doze anos, época em que Ithamar se dedicava ao
futebol. Jogador do Juventus e apaixonado pelo esporte, ele só participou da
peça por insistência de sua mãe, que via no teatro um meio de acalmar seu agitado
filho. “Eu me lembro da primeira vez que entrei no palco. No momento em que eu
vi a plateia, senti uma sensação diferente. Quando acabou [o espetáculo], eu tive
certeza absoluta que iria fazer aquilo para o resto da vida”, recorda Ithamar
após 35 anos do episódio.
O
gosto pela coisa foi intensificado quando Ithamar conquistou uma bolsa de
estudos para um curso de teatro. Ele tinha 14 anos e, no mesmo período,
trabalhou como office boy, sem se esquecer do futebol. Ainda tinha dúvidas
quanto à futura profissão: ator ou jogador? “Nunca cheguei a ser profissional.
No colegial, minha vida girava em torno do “Showcante”, um festival anual que
acontecia no meio do ano com muitas atividades artísticas”, conta enquanto
descruza as pernas e volta a chacoalhá-las. “Conclusão disso: repeti três vezes o primeiro
colegial. Mudei para um colégio particular no qual fazia técnico em marketing,
à noite, para poder trabalhar e ter dinheiro para pagar meus bailinhos, minhas
roupas...”, continua Ithamar. Nessa época ele começou a trabalhar na Comolatti,
empresa onde seu pai trabalhava, na função de coordenar as lojas de pneus. Trabalhava
lá também Nelson Rodrigues, encarregado do setor fiscal da empresa e meu pai.
Por ter acesso a todos os departamentos do grupo, Nelson conheceu Ithamar e,
embora fossem adversários nos campeonatos internos de futebol, eram colegas. “Lembro-me
bem do Ithamar brincalhão, amigo de todos, sempre puxando conversa. Convivemos
por pouco tempo, mas pude perceber que tínhamos a mesma postura descontraída”,
relata meu genitor que, apesar da distância, acompanhava a carreira dele por
meio dos comerciais e participações em novelas.
*
Ithamar
acende outro cigarro. Explica que não demorou muito para perceber que vender
pneus não era sua área. “Soube que o TUCA ia reabrir. Eles estavam selecionando
atores para um curso profissional e essa turma faria o espetáculo de estreia”, lembra
Ithamar que só ficou sabendo no dia que as inscrições terminaram. Mas isso não o
impediu de ir até o TUCA, conversar com o coordenador e participar da primeira
montagem de “O homem e o cavalo” de Oswald de Andrade. Prestes a se formar no
curso, Ithamar recebe um telefonema que esperara desde 1986. Naquele ano, ele
assistiu um musical de Oswaldo Montenegro, “Aldeia dos ventos”, cuja montagem o
impressionou. “Falei para os meus amigos que um dia iria trabalhar com aquele
cara. Eles morreram de rir. No camarim, enquanto ele autografava meu CD, anotei
meu número num cartão e disse que queria muito trabalhar com ele”, conta o
obstinado Ithamar. Anos depois, entrou para a companhia de Montenegro.
O
ritmo frenético de ensaios e peças fez com que Ithamar montasse, em parceria
com dois amigos, uma companhia. “Quer água? Tem água gelada lá”, ele interrompe
com gentileza. Ithamar produziu o espetáculo “Do kitsch ao sublime”, uma comédia
musical que lhe proporcionou se descobrir como autor: “todo mundo queria saber
quem tinha feito aquele texto. Passaram a fazer encomenda de textos e eu nem
sabia que eu sabia escrever”, diz o atual roteirista. Multifacetado, Ithamar relembra
como se tornou locutor: “minha vida é cheia de por acasos. Fiz um comercial
para as Casas Bahia, em 1997, e eles queriam a mesma voz da TV no rádio. Nunca
tinha pensado em locução, sabia que era panela e que poucos entravam sem
contato”. Dono de uma voz grave, Ithamar foi chamado para duas ou três
locuções, mas foi sem pretensão. “Achava que estaria quebrando um galho. Me
ligaram, pediram o número da minha conta e caiu uma puta grana. Pensei comigo:
esse negócio aí é legal”, revela Ithamar, há 20 anos marcando sua voz nas mais
diversas publicidades.
A
instabilidade, característica do seu ramo, pesou em 2001. “Estava namorando e
falei para a minha mulher: estou indo para os 40 anos fazendo esse negócio.
Preciso de algo fixo”, diz Ithamar. Um amigo o chamou para ser sócio de um bar
na Mooca. Agarrou a oportunidade com unhas, dentes e muito trabalho, mas deram
azar. O bar durou um ano, período no qual Ithamar ficou afastado do mercado de
trabalho e tornou-se pai. ”Pensei comigo: o que fazer agora? Mas como minha
vida é cheia de coincidências sensacionais...” prossegue Ithamar, em meio a
risos. Coincidências e amigos. Surge a possibilidade, graças a um amigo
desesperado, de atuar como diretor de criação do lançamento mundial do carro da
GM. “Nunca tinha feito aquilo, era roteirista. Há três meses do evento fui
conversar com o cara. Iria dirigir um show, na Costa do Sauípe, para duas mil
pessoas, cheio de atrações... uma coisa monstruosa!”, diz. E assim o fez. “Tem
que ter cara de pau e, ao mesmo tempo, confiar muito em você”, ensina Ithamar
que, após dois anos na empresa, recebeu outra proposta. Ele ficou sabendo que
um cara queria montar o maior prêmio de jornalismo do Brasil. O tal cara,
Rodrigo Azevedo, mostrou as ideias a ele e acabaram criando o maior prêmio de
jornalismo do Brasil. Ithamar roteirizou e dirigiu todos os Prêmios
Comunique-se, esse ano, rumo a 11ª edição.
*
Ajeitando-se
na cadeira, cruza as pernas inquietas enquanto gesticula e segue a
retrospectiva: “aí voltei a fazer locução, comercial, teatro, participação em
novela...”. Entre as diversas emissoras e novelas na qual Ithamar trabalhou,
pergunto a ele se na Rede Globo, onde apareceu recentemente nos capítulos
finais de Insensato Coração, sentiu maior visibilidade. E ele responde: “O
trabalho, para nós que fazemos, é uma coisa. (...) O telespectador tem ilusão
de que estar na Globo é melhor do que estar em outra emissora. Para nós não é
verdade”. Após Insensato, Ithamar recebeu proposta para outro projeto na emissora,
mas preferiu atuar em Carrossel, no SBT. “O contrato foi mais longo, ganhei
mais do que ganharia na Globo e não precisei ir para o Rio. Adoraria viver só
de atuação, mas não dependo só da minha vida de ator para viver; tenho meu
filho, minha empresa, minhas locuções e roteiros. Não vou fazer só por ser na
Rede Globo”, finaliza com a experiência que seus 47 anos de idade lhe
proporcionaram.
Ithamar
aventurou-se, também, no cinema. Participou do longa-metragem vencedor da 29ª
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, intitulado Quarta B, famoso no
meio universitário. Atuou em diversos curtas e, entre cinema, novela e teatro,
fica com os três. “Gosto de todos, apesar de serem muito diferentes. A novela
possibilita a criação de um personagem de maneira mais profunda, mais densa. O
teatro também, mas precisa verbalizar e gesticular muito para existir. No
cinema, às vezes, um close resolve, desde que se tenha cara para isso”,
diferencia Ithamar. Para ele, o personagem do cinema e da novela é imutável em
comparação ao teatral. “O teatro não acontece sem ator, é o mais solitário dos
trabalhos. O personagem é construído todos os dias, durante meses falando a
mesma coisa, fazendo os mesmos gestos. E tem que ser feito com o mesmo frescor
da primeira vez”, conclui antes de dizer que, se tivesse realmente que escolher
entre cinema, novela e teatro, ficaria com a última opção.
*
O
teatro Bibi Ferreira, naquela noite de dia das mães, estava consideravelmente
cheio. Há oito meses Ithamar está em cartaz na peça Toc Toc, uma comédia
escrita em 2005 que já passou por diversos elencos durante os cinco anos em que
é encenada. A peça tem como enredo o encontro de seis personagens, cada um com
um tipo diferente de TOC (transtorno obsessivo-compulsivo), na sala de espera
de um consultório. No palco, Ithamar transforma-se em Vicente, “o cara que
entra para tumultuar”, em suas palavras, e que não consegue parar de fazer
contas. Ao final do espetáculo, acompanhado de uma garrafa d’água e
visivelmente cansado, Ithamar nos cumprimenta na porta. “E aí, gostaram?”,
pergunta como se houvesse a possibilidade de não gostarmos de uma peça na qual
se ri do começo ao fim. Ithamar possui a mesma ironia e maneira de tirar sarro
de Vicente. “Quando se tem uma personalidade forte, marcante, é muito difícil
se transformar em outra pessoa no vídeo ou no teatro. Não dá para se anular
totalmente. (...) Sempre será você, não dá para jogar fora sua voz, seus
gestos”, explica Ithamar.
*
Apesar
de não se considerar um usuário assíduo das redes sociais, Ithamar
frequentemente publica textos, um tanto quanto polêmicos, em seu perfil do
Facebook. Ele diz não sentir necessidade de entrar no site a todo o momento,
embora considere a rede social uma importante ferramenta na divulgação de seu
trabalho. “Gosto muito de humor, é a principal arma para se discutir as coisas.
Mas adoro escrever sobre política, sobre a sociedade... Já consegui trabalhos
por causa de textos meus no Facebook”, observa ele, cujo perfil é seguido por
quase quatro mil pessoas. Com relação às críticas que recebe em forma de
comentário, Ithamar é enfático: “Acho válido, mas prepare-se para a réplica.
(...) Mudo constantemente de ideia sobre as coisas, mas tem que ter disposição
para me fazer mudar de opinião”. Convicção é uma palavra que define sua
personalidade. “Eu odeio o Lula. Já votei [nele], mas hoje, para mim, ele é o
maior engodo da história desse país. (...) Tenho amigos petistas e a gente
conversa sadiamente sobre política. Mas não venha defender sem argumento”, diz
logo após afirmar que pode ficar três dias falando do mesmo assunto, sem
problemas.
Após
duas horas de conversa, pergunto a Ithamar, em seu terceiro cigarro, o que
costuma fazer nos momentos de ócio. “Na verdade, sobra muito pouco tempo da
minha vida fora do trabalho. Leio muito, mas, quando leio, é para o trabalho.
Para mim, ler nada mais é do que alimento para escrever”, responde. Insisto na
pergunta, julgando ser impossível não ter um momento de puro lazer, algo banal.
Ithamar vai com frequência ao cinema. Mas diz prestar atenção no enquadramento
do diretor, no roteiro, nos efeitos utilizados... Após rirmos, ele explicou:
“Ao mesmo tempo em que tudo para mim é trabalho, nada é trabalho. Como se
trabalhar não fosse algo que não pudesse dar prazer. Trabalhar, para mim, é um
prazer. Quem faz o que gosta, não trabalha e, sim, vive”. Só então pude
entender as multi profissões bem sucedidas e a preferência por estar em cartaz
ao invés de jogar futebol e cacheta com os amigos. “Estou há sete meses sem
jogar por causa da peça. É claro que eu sinto falta, mas não troco”, finaliza
Ithamar, cujo sobrenome é Lembo, mas que poderia muito bem ser Trabalho.
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