Voos diários
“Bom
dia, meninas! Como vocês estão se sentindo nesta sexta chuvosa? Estamos aqui
para conversar não só sobre gravidez, mas sobre a vida”, disse Maristela
Stoianov, de 32 anos, com o jaleco branco já amarelado. Entrou na sala
pendurando o estetoscópio no pescoço e enrubescida pelos dez minutos de atraso.
Ela não gosta de atrasos, muito menos quando eles acontecem na sexta.
Todas
as sextas-feiras, às nove da manhã, ela coordena um grupo de gestantes na
Unidade Básica de Saúde (UBS) da Vila Dalva, periferia da zona oeste de São
Paulo, próxima ao campus Butantã da Universidade de São Paulo. A UBS é o seu
local de trabalho há cinco anos, desde que passou no concurso público para
ingressar em uma instituição da saúde pública.
Até o
início deste ano, orientar as cerca de quinze mulheres que comparecem ao grupo
era mais uma das muitas atividades que ela desempenhava desde que se formou na
Escola de Enfermagem da Unifesp, em 2003. Mesmo sendo a atividade de que mais
gosta dentre as realizadas em seus dias, agora tudo mudou de cara, de
importância e significado.
Falar e
ouvir sobre o ciclo gravídico puerperal ganhou uma nova dimensão. Maristela também
está grávida e compartilha seus medos e expectativas com aquelas que vivem em
condições socioculturais diferentes da sua. Ela se diz pertencente à classe
média; seus pacientes são membros da classe trabalhadora ou desempregados que
lutam para sobreviver à vida paulistana.
Durante
a graduação em enfermagem, Maristela sempre se imaginou no trabalho que ela
realiza atualmente: gerente de enfermagem de uma unidade básica de saúde na
periferia. “A maioria dos meus colegas preferiu ir trabalhar em UTI’s e grandes
hospitais, eu fui meio que a ovelha negra da galera”, conta.
Presidente
do centro acadêmico enquanto estudante na “Paulista”, como a Unifesp é
conhecida, a futura enfermeira lutava pelas melhorias nas condições de saúde da
população e por um SUS de qualidade. Foi a mais de vinte protestos durante a
graduação, além de ter participado da União Nacional dos Estudantes, a UNE. “Os
anos se passaram, e às vezes eu me sinto com a euforia dos meus 21 anos, mesmo
que agora eu saiba que algumas lutas da época tenham se tornado apenas sonhos
de jovens”, ela me conta.
Em
visita ao seu apartamento, bem próximo à UBS da Vila Dalva, assistimos a alguns
vídeos que ela converteu para DVD, que mostram uma jovem em reuniões no “porão
da luta”, como chamavam aqueles que faziam parte do movimento estudantil com
ela, na Unifesp. Enquanto me mostra os vídeos e as fotos, ela toma um chá de
camomila. “Meu médico diz que é para acalmar os meus ânimos, porque grávida não
pode ser agitada assim”, ela me conta, tentando respirar mais calma.
Maristela
mora com Marcos, médico pediatra, seu namorado que virou marido recentemente.
Eles se conheceram nas reuniões do diretório acadêmico da Unifesp, quando
Marcos cursava medicina, e ela, enfermagem. Casaram-se no dia 23 de janeiro
deste ano, poucos dias após os resultados dos testes de farmácia terem dado
positivo. Hoje eles moram com um gato, um cachorro e em um apartamento com várias
estantes lotadas de livros sobre saúde, sociologia, antropologia e psicologia.
No total, mais de 300.
“É
engraçado morar com alguém tão nerd como
eu, somos dois malucos por estudos nas nossas áreas”, me disse Marcos, andando
de chinelos pela casa e com uma cerveja na mão. Para ela, só o chá. “Não posso
nem sonhar em chegar perto de bebidas alcoolicas com o meu filho por nascer”,
me conta Maristela, que aprecia um bom vinho chileno, acompanhado de queijo
brie.
“Não
sei quando irei casar e engravidar, só sei que neste momento eu quero preservar
a minha liberdade”, disse Maristela quando nos conhecemos, em 2011, época em
que eu cursava enfermagem na Universidade de São Paulo e fazia estágios na Vila
Dalva, sob a supervisão da “Maris”, como todos a chamavam. Uma das atividades
que deveríamos realizar no estágio era passar o dia ao lado de um profissional
de saúde, para vermos como era a rotina de alguém que trabalha em uma
instituição de saúde pública em São Paulo.
Tanto
em 2011, como agora em 2013, acompanhei o dia a dia dela, que chega todos os
dias às oito da manhã com um sorriso no rosto, mesmo sabendo que atenderá casos
complexos, como o de dona Maria Rosa, de 73 anos. Dona Rosa, como a senhora é
chamada por Maristela, tem hipertensão e diabetes, e é uma das pacientes que
mais frequenta a UBS, sempre atendida pela “enfermeira mais dedicada e bem
humorada do mundo”, segunda suas palavras.
Maristela
decidiu cursar enfermagem logo cedo, muito antes do que normalmente acontece
com os jovens. Ela participava de um grupo de escoteiros – movimento de
crianças e jovens, que têm caráter educativo e participativo, realizado muitas
vezes em contato com a natureza - e sua função no movimento era a de carregar a
malinha dos primeiros socorros e atender quem precisasse durante as atividades
do grupo. Isso tudo quando ela ainda tinha 13 anos.
Naquela
época, “Maris já era muito responsável, e buscava sempre novos desafios, mesmo
que fosse fazer um curativo no dedo de um colega”, me contou a sua mãe, Helena
Garcia, enquanto conversávamos no apartamento de Marcos e Maristela. Desde
adolescente, Maristela acreditou que seguiria a aventura de salvar vidas e
melhorar o dia a dia das pessoas de quem cuidasse. Dona Maria Rosa é um exemplo
de alguém que foi cuidada pela enfermeira. “Ela é muito gentil, nunca nos
assusta com os nossos problemas de saúde, e o mais importante, nos trata como
se fôssemos iguais a ela”, emociona-se Maria Rosa.
A
dúvida entre medicina e enfermagem a incomodou por alguns anos, até que,
enquanto fazia cursinho, conversou com diversos profissionais da área, e chegou
à conclusão de que gostaria de estar mais próxima dos pacientes, função
atribuída à enfermagem. Hoje ela me responde, com a convicção e segurança que
passa para quem trabalha com ela e para os seus pacientes, que está no lugar
certo.
Mesmo
assim, há um outro sonho que ainda não se realizou: viajar por vários países
durante um ano sabático. Desde o início do namoro de Maristela com Marcos, em
1992, eles fazem viagens frequentes ao interior do país, para fazer saltos de
paraglider. “A capacidade de voar me lembra sempre da liberdade que eu sempre
busquei para mim, tanto no trabalho, quanto nas minhas relações pessoais”, ela
me fala, acrescentando que já ganhou quatro vezes o campeonato brasileiro de
paragliders.
Após
ter feito o seu primeiro salto grávida – sim, uma loucura para muitos,
inclusive para sua mãe -, Maristela quer viajar pela Europa pulando de
paraglider. Mas isso só vai ocorrer depois que Felipe nascer. Orientações
médicas, dessas que impedem a liberdade total que Maristela sempre buscou,
segunda ela me diz, reclamando em voz baixa. Discussões com o marido acontecem
de vez em quando, já que “ela parece uma adolescente desobediente”, como me
conta Marcos, dando uma risada irônica.
Com a
mão na barriga que carrega o feto de seis meses, ela inicia a orientação para
as futuras mães em uma sala no fim do corredor principal da UBS. Ela tira os
sapatos e cruza as pernas, sentando-se no chão, e pedindo para que todas façam
o mesmo. As mulheres reúnem-se em roda, todas concentradas na voz tranquila da
enfermeira. “Estou aqui para escutar vocês todas e saber como cada uma está se
sentindo hoje, e como vocês se sentiram desde o nosso último encontro na outra
sexta”.
De
cabelos presos e colares coloridos, que são como seu uniforme, Maristela não
pretende fazer um discurso sobre a gravidez e os cuidados com o bebê. “Detesto
quando profissionais dizem exatamente o que os outros precisam fazer, no meu
trabalho eu busco ouvir as necessidades de cada um, principalmente na gravidez,
que é um momento de sensibilidade maior”, ela me diz.
O papo
vai desde os problemas pessoais das mulheres presentes, até dúvidas sobre o que
elas podem ou não podem comer e beber, atividades físicas, sexo e amamentação.
Com um caderno de anotações nas mãos, Maristela escreve o que cada gestante
fala e o que cada uma aparenta estar sentindo, para conversar em particular com
cada uma depois da reunião em grupo.
Como
também futura mãe, ela conta as experiências próprias, “para que as mulheres
entendam que eu sei pelo que elas estão passando e confiem em mim”, diz,
passando algumas anotações do caderno para o seu diário pessoal, que ela
carrega para todo lugar a que vai. O diário é vermelho, e as páginas contêm
desde relatos de pacientes, até pensamentos que passam pela cabeça dela ao
longo do dia.
Ela me
conta que aquele diário vai virar um livro algum dia, em que ela pretende contar
as histórias de pessoas que passaram pela UBS, ou aquelas às quais ela visitou
em consultas domiciliares. “Tem muita gente por aqui que tem uma história
incrível, que passa por doenças muito complicadas, com toda a coragem do
mundo”. A maioria das pessoas atendidas pela UBS da Vila Dalva é de baixa renda
e vive em casas com apenas um cômodo, sem acesso a saneamento básico.
Maristela
trabalha lá todos os dias, das 8h às 18h. Durante essas horas, ela atende cerca
de 20 moradores da Vila Dalva, além de organizar o grupo de gestantes às
sextas-feiras, quando ela já está se programando para a viagem do final de
semana. Em alguns meses em que ela e Marcos desejem viajar mais, ela dá
plantões noturnos no setor de primeiros socorros do Hospital das Clínicas.
Quando
eu pergunto como ela se sente trabalhando tanto, mesmo grávida, ela me responde
que quer que o filho dela cresça sabendo que é preciso trabalhar muito, mas só
quando existe paixão pelo trabalho, pois quando se gosta do que se faz, é como
se fosse uma felicidade todos os dias. E quando a felicidade não vem, tem o fim
de semana – e os saltos de paraglider – para compensar algum desconforto do
cotidiano.
“Ganho
dinheiro para viajar, e agora, para cuidar do Felipe quando ele nascer”, ela
diz, enquanto dirige o seu Fox vermelho, após uma sexta-feira de trabalho.
Mesmo depois de trabalhar sem parar durante as nove horas (uma para almoço), o
bom humor se mantém, pois ela e Marcos passarão o fim de semana em Boituva,
para, desta vez, voar de balão. “Acho que o Felipe vai adorar, mais uma vez,
essa sensação de estar no ar e ver o continente de longe”. Quando ela me diz
isso, sinto que é necessário voar mais, seja no dia a dia, no trabalho, no
lazer ou nos sonhos.
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