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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Priscila Kesselring


Voos diários


“Bom dia, meninas! Como vocês estão se sentindo nesta sexta chuvosa? Estamos aqui para conversar não só sobre gravidez, mas sobre a vida”, disse Maristela Stoianov, de 32 anos, com o jaleco branco já amarelado. Entrou na sala pendurando o estetoscópio no pescoço e enrubescida pelos dez minutos de atraso. Ela não gosta de atrasos, muito menos quando eles acontecem na sexta.
Todas as sextas-feiras, às nove da manhã, ela coordena um grupo de gestantes na Unidade Básica de Saúde (UBS) da Vila Dalva, periferia da zona oeste de São Paulo, próxima ao campus Butantã da Universidade de São Paulo. A UBS é o seu local de trabalho há cinco anos, desde que passou no concurso público para ingressar em uma instituição da saúde pública.
Até o início deste ano, orientar as cerca de quinze mulheres que comparecem ao grupo era mais uma das muitas atividades que ela desempenhava desde que se formou na Escola de Enfermagem da Unifesp, em 2003. Mesmo sendo a atividade de que mais gosta dentre as realizadas em seus dias, agora tudo mudou de cara, de importância e significado.
Falar e ouvir sobre o ciclo gravídico puerperal ganhou uma nova dimensão. Maristela também está grávida e compartilha seus medos e expectativas com aquelas que vivem em condições socioculturais diferentes da sua. Ela se diz pertencente à classe média; seus pacientes são membros da classe trabalhadora ou desempregados que lutam para sobreviver à vida paulistana.
Durante a graduação em enfermagem, Maristela sempre se imaginou no trabalho que ela realiza atualmente: gerente de enfermagem de uma unidade básica de saúde na periferia. “A maioria dos meus colegas preferiu ir trabalhar em UTI’s e grandes hospitais, eu fui meio que a ovelha negra da galera”, conta.
Presidente do centro acadêmico enquanto estudante na “Paulista”, como a Unifesp é conhecida, a futura enfermeira lutava pelas melhorias nas condições de saúde da população e por um SUS de qualidade. Foi a mais de vinte protestos durante a graduação, além de ter participado da União Nacional dos Estudantes, a UNE. “Os anos se passaram, e às vezes eu me sinto com a euforia dos meus 21 anos, mesmo que agora eu saiba que algumas lutas da época tenham se tornado apenas sonhos de jovens”, ela me conta.
Em visita ao seu apartamento, bem próximo à UBS da Vila Dalva, assistimos a alguns vídeos que ela converteu para DVD, que mostram uma jovem em reuniões no “porão da luta”, como chamavam aqueles que faziam parte do movimento estudantil com ela, na Unifesp. Enquanto me mostra os vídeos e as fotos, ela toma um chá de camomila. “Meu médico diz que é para acalmar os meus ânimos, porque grávida não pode ser agitada assim”, ela me conta, tentando respirar mais calma.
Maristela mora com Marcos, médico pediatra, seu namorado que virou marido recentemente. Eles se conheceram nas reuniões do diretório acadêmico da Unifesp, quando Marcos cursava medicina, e ela, enfermagem. Casaram-se no dia 23 de janeiro deste ano, poucos dias após os resultados dos testes de farmácia terem dado positivo. Hoje eles moram com um gato, um cachorro e em um apartamento com várias estantes lotadas de livros sobre saúde, sociologia, antropologia e psicologia. No total, mais de 300.
“É engraçado morar com alguém tão nerd como eu, somos dois malucos por estudos nas nossas áreas”, me disse Marcos, andando de chinelos pela casa e com uma cerveja na mão. Para ela, só o chá. “Não posso nem sonhar em chegar perto de bebidas alcoolicas com o meu filho por nascer”, me conta Maristela, que aprecia um bom vinho chileno, acompanhado de queijo brie.
“Não sei quando irei casar e engravidar, só sei que neste momento eu quero preservar a minha liberdade”, disse Maristela quando nos conhecemos, em 2011, época em que eu cursava enfermagem na Universidade de São Paulo e fazia estágios na Vila Dalva, sob a supervisão da “Maris”, como todos a chamavam. Uma das atividades que deveríamos realizar no estágio era passar o dia ao lado de um profissional de saúde, para vermos como era a rotina de alguém que trabalha em uma instituição de saúde pública em São Paulo.
Tanto em 2011, como agora em 2013, acompanhei o dia a dia dela, que chega todos os dias às oito da manhã com um sorriso no rosto, mesmo sabendo que atenderá casos complexos, como o de dona Maria Rosa, de 73 anos. Dona Rosa, como a senhora é chamada por Maristela, tem hipertensão e diabetes, e é uma das pacientes que mais frequenta a UBS, sempre atendida pela “enfermeira mais dedicada e bem humorada do mundo”, segunda suas palavras.
Maristela decidiu cursar enfermagem logo cedo, muito antes do que normalmente acontece com os jovens. Ela participava de um grupo de escoteiros – movimento de crianças e jovens, que têm caráter educativo e participativo, realizado muitas vezes em contato com a natureza - e sua função no movimento era a de carregar a malinha dos primeiros socorros e atender quem precisasse durante as atividades do grupo. Isso tudo quando ela ainda tinha 13 anos.
Naquela época, “Maris já era muito responsável, e buscava sempre novos desafios, mesmo que fosse fazer um curativo no dedo de um colega”, me contou a sua mãe, Helena Garcia, enquanto conversávamos no apartamento de Marcos e Maristela. Desde adolescente, Maristela acreditou que seguiria a aventura de salvar vidas e melhorar o dia a dia das pessoas de quem cuidasse. Dona Maria Rosa é um exemplo de alguém que foi cuidada pela enfermeira. “Ela é muito gentil, nunca nos assusta com os nossos problemas de saúde, e o mais importante, nos trata como se fôssemos iguais a ela”, emociona-se Maria Rosa.
A dúvida entre medicina e enfermagem a incomodou por alguns anos, até que, enquanto fazia cursinho, conversou com diversos profissionais da área, e chegou à conclusão de que gostaria de estar mais próxima dos pacientes, função atribuída à enfermagem. Hoje ela me responde, com a convicção e segurança que passa para quem trabalha com ela e para os seus pacientes, que está no lugar certo.
Mesmo assim, há um outro sonho que ainda não se realizou: viajar por vários países durante um ano sabático. Desde o início do namoro de Maristela com Marcos, em 1992, eles fazem viagens frequentes ao interior do país, para fazer saltos de paraglider. “A capacidade de voar me lembra sempre da liberdade que eu sempre busquei para mim, tanto no trabalho, quanto nas minhas relações pessoais”, ela me fala, acrescentando que já ganhou quatro vezes o campeonato brasileiro de paragliders.
Após ter feito o seu primeiro salto grávida – sim, uma loucura para muitos, inclusive para sua mãe -, Maristela quer viajar pela Europa pulando de paraglider. Mas isso só vai ocorrer depois que Felipe nascer. Orientações médicas, dessas que impedem a liberdade total que Maristela sempre buscou, segunda ela me diz, reclamando em voz baixa. Discussões com o marido acontecem de vez em quando, já que “ela parece uma adolescente desobediente”, como me conta Marcos, dando uma risada irônica.
Com a mão na barriga que carrega o feto de seis meses, ela inicia a orientação para as futuras mães em uma sala no fim do corredor principal da UBS. Ela tira os sapatos e cruza as pernas, sentando-se no chão, e pedindo para que todas façam o mesmo. As mulheres reúnem-se em roda, todas concentradas na voz tranquila da enfermeira. “Estou aqui para escutar vocês todas e saber como cada uma está se sentindo hoje, e como vocês se sentiram desde o nosso último encontro na outra sexta”.
De cabelos presos e colares coloridos, que são como seu uniforme, Maristela não pretende fazer um discurso sobre a gravidez e os cuidados com o bebê. “Detesto quando profissionais dizem exatamente o que os outros precisam fazer, no meu trabalho eu busco ouvir as necessidades de cada um, principalmente na gravidez, que é um momento de sensibilidade maior”, ela me diz.
O papo vai desde os problemas pessoais das mulheres presentes, até dúvidas sobre o que elas podem ou não podem comer e beber, atividades físicas, sexo e amamentação. Com um caderno de anotações nas mãos, Maristela escreve o que cada gestante fala e o que cada uma aparenta estar sentindo, para conversar em particular com cada uma depois da reunião em grupo.
Como também futura mãe, ela conta as experiências próprias, “para que as mulheres entendam que eu sei pelo que elas estão passando e confiem em mim”, diz, passando algumas anotações do caderno para o seu diário pessoal, que ela carrega para todo lugar a que vai. O diário é vermelho, e as páginas contêm desde relatos de pacientes, até pensamentos que passam pela cabeça dela ao longo do dia.
Ela me conta que aquele diário vai virar um livro algum dia, em que ela pretende contar as histórias de pessoas que passaram pela UBS, ou aquelas às quais ela visitou em consultas domiciliares. “Tem muita gente por aqui que tem uma história incrível, que passa por doenças muito complicadas, com toda a coragem do mundo”. A maioria das pessoas atendidas pela UBS da Vila Dalva é de baixa renda e vive em casas com apenas um cômodo, sem acesso a saneamento básico.
Maristela trabalha lá todos os dias, das 8h às 18h. Durante essas horas, ela atende cerca de 20 moradores da Vila Dalva, além de organizar o grupo de gestantes às sextas-feiras, quando ela já está se programando para a viagem do final de semana. Em alguns meses em que ela e Marcos desejem viajar mais, ela dá plantões noturnos no setor de primeiros socorros do Hospital das Clínicas.
Quando eu pergunto como ela se sente trabalhando tanto, mesmo grávida, ela me responde que quer que o filho dela cresça sabendo que é preciso trabalhar muito, mas só quando existe paixão pelo trabalho, pois quando se gosta do que se faz, é como se fosse uma felicidade todos os dias. E quando a felicidade não vem, tem o fim de semana – e os saltos de paraglider – para compensar algum desconforto do cotidiano.
“Ganho dinheiro para viajar, e agora, para cuidar do Felipe quando ele nascer”, ela diz, enquanto dirige o seu Fox vermelho, após uma sexta-feira de trabalho. Mesmo depois de trabalhar sem parar durante as nove horas (uma para almoço), o bom humor se mantém, pois ela e Marcos passarão o fim de semana em Boituva, para, desta vez, voar de balão. “Acho que o Felipe vai adorar, mais uma vez, essa sensação de estar no ar e ver o continente de longe”. Quando ela me diz isso, sinto que é necessário voar mais, seja no dia a dia, no trabalho, no lazer ou nos sonhos. 

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