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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Isabella Santoro


Cinquenta anos de vida útil



As melhores histórias são aquelas que, quando analisada por fora, parecem comuns e sem novidades e, quando analisadas mais a fundo, são cheias de particularidades. Um desses casos é a história de Sonia Cristina Tabosa. Você a conhece? É bem provável que não. Mas suas ações fizeram muita diferença na vida de muitas pessoas; tantas, que ela nem consegue lembrar o número exato.
Sonia é professora de educação física e tem 50 anos. Baixinha, mas não invocada, tem cabelos na altura dos ombros, perfeitamente escovados, pintados de castanho avermelhado. “Pinto eles por causa dos fios brancos, ninguém precisa saber que eu não tenho 25 anos!”, diz Sonia, brincando com a idade. Aliás, sua aparência é uma das coisas que a mais preocupa. Entre idas e vindas de academias, ela já testou incontáveis dietas, mesmo estando dentro do peso. Possui pouquíssimas marcas de expressão no rosto, somente em volta da boca, porque sorri demais, e no meio da testa, porque costuma mexe-las em qualquer situação.
Gosta de acupuntura, massagem, ioga e cremes para o rosto, mas não usa maquiagem: o marido não gosta. Casada há mais de 25 anos com João Paulo, o casal mora no bairro do Belenzinho, zona leste de São Paulo, junto com as duas filhas e a neta. “Peraí, você tem uma neta? E você só tem 50 anos?”, perguntei. “Sim, minha filha mais nova apareceu com um presentinho há uns anos atrás”.
Fiquei sabendo de sua história através da minha avó: as duas moram no mesmo prédio. Elas ajudam a organizar os bazares, as festas juninas e outros eventos do condomínio. Além do mais, sempre que possível, passam as tardes assistindo Sessão da Tarde e Vale a Pena Ver de Novo. Entretanto, não é sempre que Sonia tem esse tempo disponível.
Sonia trabalha em duas escolas diferentes, ambas no bairro vizinho, no Tatuapé. Uma, particular, a outra, pública. O dia inteiro, a professora fica correndo nas quadras, usando o apito seguidas vezes e falando muito alto para poder ser escutada. Por conta disso, ela possui vários calos vocais, e quase sempre está rouca. “Tem vezes que minha voz fica tão fraca que preciso usar aqueles megafones, sabe? É muito prejudicial, sinto dores terríveis na garganta, mas são ossos do ofício. É por isso que eu tomo chá”, disse ela, bebericando o chá que minha avó preparou para nossa visita.
A rouquidão de sua voz é muito perceptível, principalmente quando nos encontramos em locais públicos. Durante a conversa, no pátio aberto do SESC Belenzinho, não havia muito barulho ao redor, mas quando passavam crianças ou muitos carros na rua ao mesmo tempo, era difícil escutá-la e eu tinha que pedir para repetisse. As tosses também são uma constante: na outra vez que a encontrei, dois dias depois, assistimos Sessão da Tarde na casa da minha avó. “Sonia, vou aumentar o volume, não tá dando pra escutar as conversas com essa tosse”, brincou minha avó, mas sem um quê de verdade.
Sua carreira no magistério começou nos anos 80, logo após se formar na Faculdade de Mogi das Cruzes em Educação Física. Antes, havia feito técnico em Decoração de Interiores na ETEC Carlos de Campos, no Brás, mas não sentiu vontade de seguir a carreira. Nessa mesma época, quando estava acabando o colegial, conheceu João Paulo jogando tênis no clube da Polícia Militar. Namoraram durante oito anos, até se casarem em 1986. Dois anos depois, nascia Ana Clara, primeira filha do casamento. A irmã veio em 90, e deram o nome de Beatriz. Durante todo esse período, Sonia teve que se desdobrar para conseguir dar aulas em quatro escolas diferentes. “Era um sufoco, foi a época mais complicada e também mais feliz da minha vida. Tive minhas filhas, casei, conquistei uma casa própria, mas sentia cansaço o tempo todo, dormia em qualquer canto. Cheguei a dormir em pé, na fila do banco”.
Essa vida corrida a acompanharia por muitos mais anos, mesmo que ela tentasse contornar isso. Na tarde em que fomos ao SESC ela estava sem aulas marcadas por conta da época de provas da escola em que trabalha. Durante quatro dias, as tardes seriam dela. “Mesmo assim não consigo ter sossego. Nesse tempo livre, consigo preencher os diários de classe, dar um jeito na casa e resolver certas pendências”. A escola em questão é a estadual Professor Loureiro Junior, localizada próximo ao metrô Tatuapé. As aulas que ela ministra são para os três anos do ensino médio, alguns à tarde, e outros no período matutino.
Sonia trabalha no local há mais de 10 anos, e por isso coleciona muitas histórias e alunos que acabaram se tornando amigos. “A Sonia é uma das professoras mais incríveis com quem eu já tive aula, ela realmente se importa com os alunos, tem vontade de ajudar, de saber mais sobre as nossas vidas. É impossível não gostar dela”, diz Lais Esteves, uma de suas alunas que consegui contato pelo Facebook. Inclusive, seu perfil na rede social é extremamente popular: Sonia tem mais de 1500 amigos adicionados. “Se eu tivesse paciência de entrar naquilo mais vezes, acho que teria bem mais amigos, porque a lista de solicitações de amizade não tem fim! Nunca consigo vencer aquela fila”.
Loureiro Junior é somente uma das instituições em que a professora já trabalhou. Desde que começou a dar aulas, Sonia já passou por mais de 10 escolas. Por conta disso, a lista de amigos e alunos é enorme, assim como as histórias que se envolveu. Quando a aluna Lais comentou que Sonia tem vontade de ajudar as pessoas, não foi da boca para fora. Em 2007, uma de suas alunas da época contou pra ela que estava grávida, mas não tinha coragem de avisar os pais. Ela foi até a casa da moça e, junto da jovem, conseguiram contar aos pais sobre a gravidez. O gesto foi tão bem visto pela família que, após isso, ela sempre era convidada para jantar. Acabou virando madrinha da criança quando a batizaram.
Outro caso que ela nunca mais esqueceu foi há quase 10 anos. “Tinha uma moça na escola pública que eu trabalhava antigamente que o pai estava desempregado, a mãe doente e ela não tinha mais dinheiro para ir à escola. Quando fiquei sabendo da situação, organizei um rateio entre todos os alunos, professores e funcionários e conseguimos arrecadar dinheiro suficiente para pagar os remédios da mãe dela, além de descobrir uma pessoa que poderia dar carona para ela todos os dias. Fui pessoalmente entregar o dinheiro na casa dela, em Guaianazes. A mãe me abraçou e chorava, falando que eu era uma santa. Até parece!” Contou-me Sonia, enquanto dividíamos um brownie de chocolate comprado no SESC. A forma que a menina encontrou para agradecer foi tatuando o nome da professora na nuca: “Soninha, amizade eterna”. “Infelizmente, perdi contato com ela. Última vez que nos falamos, foi há uns três anos atrás”.
O envolvimento dela com seus alunos, entretanto, nem sempre é visto de bom tom. “Já aconteceu de diretores me chamarem para perguntar o porquê de eu conversar tanto com os meus alunos, qual era o objetivo daquilo”, confidencia. Mas superiores descontentes eram somente parte do problema. Namoradas ciumentas já ligaram para sua casa no meio da noite fazendo ameaças, pois achavam que Sonia estava “dando em cima” de algum aluno.
O caso mais sério em que esteve envolvida foi com um jovem viciado em drogas. Na época, ela era professora em uma escola estadual chamada Amadeu Amaral, no Belenzinho. Um de seus alunos faltava com muita frequência nas aulas de Educação Física, era problemático com os colegas e tirava notas baixíssimas. “Fiquei intrigada, pois ele parecia um bom moço, apesar de tudo. Quando estamos há muito tempo no ramo, conseguimos sentir quando uma pessoa é realmente boa, ou quando é falsa e não quer ajuda”.
Sonia descobriu através de conversas que o menino estava envolvido com roubos e andava com traficantes da favela próxima à escola. Um dia, após decidir contar aos pais do jovem, Sonia estava em seu carro, saindo do prédio em que mora, quando o rapaz bateu no vidro com uma faca. “Eu sei onde você mora. Sei que você tem duas filhas e é casada. Se você contar o que descobriu para os meus pais, eu juro que mato você e sua família”. Foi uma das poucas vezes que ela se enganou quanto à índole de alguém.
Ao contrário de outros professores, Sonia, além de se preocupar com a vida pessoal dos alunos, também se importa com a formação escolar em si. Em quase todas as escolas em que trabalhou, organizou grupos de estudo para ajudar aqueles que não conseguiam tirar boas notas em certas matérias. “Eu descobria alguém que mandasse bem em Física, por exemplo, e estivesse disposto a ensinar, e perguntava se não gostaria de ajudar aqueles que não conseguiam entender as aulas muito bem”. Com isso, além de ajudar nas notas, Sonia ajudou na criação de amizades e até formou casais. Um dos casais que se conheceu através desses grupos convidou Sonia para o casamento deles, ano passado.
Já é extremamente louvável uma pessoa se importar tanto com os alunos, e ainda realmente partir para a ação e ajuda-los. Mas essas atitudes se tornam ainda mais notáveis quando lembramos que ela chegou a trabalhar em quatro escolas ao mesmo tempo, tendo uma casa para cuidar, duas filhas, marido, e agora uma netinha. A vida dela já seria corrida por si só, mas sua boa vontade acaba diminuindo mais ainda seu tempo livre.
Perguntei se alguma vez a vida profissional prejudicou a pessoal, e Sonia me contou que nunca chegou a atrapalhar, mas se misturaram. “Alguns alunos acham que tem direito de dar em cima das minhas filhas, ou então algumas meninas resolvem ir todo dia à minha casa. Eu sei que são pessoas carentes de atenção, e eu faço tudo que posso para ajudar, mas tudo tem limite”.
Após acabar o filme da Sessão da Tarde que estávamos assistindo, perguntei a ela se ela mudaria alguma coisa em sua vida. “Em que sentido?”, perguntou, levantando do sofá e indo até a cozinha da minha avó para buscar algo para comermos. “Você já se arrependeu de ter abandonado o design de interiores e ido para a educação física? Porque com certeza isso foi o que desencadeou tudo que aconteceu com você. Os alunos problemáticos, as idas até as casas deles, esse tipo de coisa”, expliquei. Sonia comeu um biscoito de chocolate inteiro antes de responder. “Com toda a certeza do mundo, a resposta é não. É o meu combustível, é o que me fez ser professora. Meus alunos são quase todos de escola pública, tem poucas pessoas que se importam com eles, famílias desestruturadas, essas coisas... mas eu me importo, e muito”.
Depois de me encontrar duas vezes com Sonia e escutar várias casos de seus alunos (tive que selecionar só alguns para contar aqui), percebi que sua história é de uma pessoa que, apesar de todas as dificuldades, se importa tanto com os outros quanto com si mesma. Por fora, pode parecer só mais uma professora simpática e atenciosa, mas quando a conhecemos melhor, vemos que o que a completa e dá sentido a sua vida não é a profissão em si, e sim o ato de ajudar o máximo de pessoas possível, e a forma que ela encontrou para conseguir isso foi virando professora. Parafraseando a minha avó, a Sonia é daquelas pessoas que só se sente bem quando é útil para os outros. E que ela se sinta assim por muitos anos ainda.

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