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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Maria Anne Bollmann


Um gênio inquieto




O sábado de primeiro de junho estava nublado às 14h20 em São Caetano do Sul, com apenas alguns tímidos raios de sol impedindo o dia de estar decididamente feio. Na Rua Piauí, bairro Santa Paula, passavam apenas um carro aqui e ali, como que para provar que a cidade não estava abandonada. Um belo contraste com o movimento do restaurante no número 809.
Mesmo com o adiantado da hora, a frequência de aproximadamente 280 pessoas por dia do Piatto Te continuava intensa e fiel, constante. Apesar de simples, o salão é amplo, com muitas mesas bem espalhadas e quase todas ocupadas. O buffet fica no centro do salão; o balcão de pagamento, no canto direito assim que se passa pela porta de madeira simples e bem desenhada da entrada; o balcão de pesagem, no canto direito ao fundo, perto das duas portas delicadamente decoradas dos banheiros e da porta de metal simples da cozinha, no centro da parede do fundo do salão. Esta porta é sem dúvida a mais movimentada, uma vez que o chef do restaurante, Isley Tranquitelli, transita incansavelmente de seu santuário para o salão o tempo todo.
O cliente pode estar em sua primeira visita ao quilo, mas não passará despercebido pelos olhos atentos de Isley. Ou mesmo deixará de perceber o chef. Isley é o tipo de sujeito que chama atenção pelo simples fato de respirar. É um homem alto de 49 anos, com aproximadamente 1.80m, um pouco acima do peso, de olhos castanhos escuros. Na orelha esquerda, um alargador preto e outros três piercings prateados. Seus antebraços vivem tatuados com queimaduras de fogão e panelas. A cada dia, seu cabelo preto – levemente acinzentado nas laterais – parece estar em um ângulo diferente. Com topete, sem topete, linha para o lado direito, para o lado esquerdo, com franja, sem franja... E mesmo que não tivesse dito, seus gestos e jeito afobado denunciam sua origem italiana.
Os clientes no Piatto não podem reclamar de mesmice. “Ele não gosta de ser previsível”, explica Erico, um frequentador de longa data do restaurante. Isley não suporta ficar preso na cozinha, em frente a seu fogão. O elétrico chef faz questão de ir pessoalmente ao salão repor cada prato e, a cada viagem, aproveita e cumprimenta seus clientes, explicando o que é e como é feita cada iguaria em seu buffet, além de pedir o usual update sobre a vida de seus clientes mais frequentes e queridos. “Tudo bem com você? Melhorou do resfriado?”, pergunta ele a uma velhinha, que sorri e agradece a preocupação antes de responder que melhorara sim do resfriado. Às vezes, o chef até mesmo senta por alguns instantes em uma mesa e bate um papo, mesmo com o restaurante em grande movimento.
Os tiques de Isley se refletem no cardápio, sempre diferente e inovador. Isley não suporta preparar o mesmo prato com frequência, o alterando sempre. O salmão assado, uma de suas especialidades de sábado, nunca é acompanhado pelo mesmo molho por pelo menos um mês. “Não suporto fazer a mesma coisa todo dia. Me irrita. Eu gosto de criar, de fazer diferente. De experimentar. E isso vai para a minha comida”, pondera.
Descrever a personalidade de Isley é instigante. Aquariano, o chef tem fala mansa, mas rápida. É ansioso, dedicado, humilde, curioso, animado, otimista, complexo. É prolixo e tem dificuldade de ser objetivo. Não acha a rotina algo reconfortante e leva a família à loucura. “Um dia chegamos do restaurante mais tarde, todo mundo super cansado. Tomei banho, coloquei meu pijama, deitei na cama, olhei pra Adriana e disse: ‘vamos comer uma pizza lá em São Paulo?’. Ela quase me bateu...”, lembra, com um sorrisinho.
Adriana, quando chamada pelo marido para confirmar a história, apenas soltou um longo suspiro de resignação. Não foi preciso mais para ver que, apesar das excentricidades do marido, o casal é feliz.
É preciso deixar claro que Isley possui a alma de um artista e dedicou toda sua vida a essa paixão. Queria ser arquiteto, mas as duras críticas e o bullying que sofreu na escola por conta dessa escolha profissional o fizeram desistir de tentar o curso na faculdade, além de lhe trazerem um bloqueio para qualquer tipo de cálculo. “Se alguém me para na rua e me pergunta que horas são, eu olho no relógio e não vejo nada. É louco.”, comenta, com um sorriso sem graça.
Um pouco desapontado, acabou por fazer um curso técnico de publicidade e, de lá, foi para uma agência de publicidade de São Caetano, já mergulhando no mercado. Lá, trabalhou com um rapaz chamado John que, mais tarde, o levaria para a Brastemp, para fazer desenhos técnicos na área de criação. Perdeu esse emprego em uma das demissões em massa da empresa nos anos 2000, mas não se abalou. “Meu chefe era um idiota. Arrogante, nariz empinado. Quando ele me mandou embora, me tratou como se eu fosse um lixo, mesmo depois de todos os anos que passei na Brastemp. Eu fiquei com raiva, é lógico, mas depois desencanei e até tive um gostinho de vingança. Há uns anos atrás, o sujeito apareceu aqui [no restaurante] e me viu. Ele disse ‘Isley?!’ e eu ‘Oi, como vai?’ e ele ‘Você virou garçom?’. Babaca total... Educadamente disse que era o chef e perguntei se ele ainda estava na Brastemp. [imita com sarcasmo a voz do homem] ‘Não cara, também me demitiram...’. Quase ofereci uma posição de garçom pra ele”, conta ele, rindo.
O chef acabou sem formação superior, mas isso não impede seu espírito artístico de aflorar. A decoração do restaurante, nos mínimos detalhes, é criação sua, assim como o logo do Piatto, a fachada do prédio e até mesmo os móveis em sua casa. “Quem sabe, quando eu tiver meus 60 anos, não acabe entrando numa faculdade pra agitar a galera?”, brinca. Ele tem tanto jeito para design que, quando encomenda seus móveis, os outros clientes do marceneiro que frequenta pedem para copiar os modelos. Isley nunca cogitou em cobrar royalties e acredita que continuará assim.
Desenha até hoje, exibindo seu talento em uma tela de pano pintada a mão logo na entrada do restaurante e também em uma tela igualmente colorida no canto perto da janela. “Aquela ainda não terminei. É quase uma obsessão. Tem que ter mais cor, ser menor, mais diferente... Não sei se um dia vou acabar.”, desabafa ele, olhando sonhadoramente para o quadro mais que completo aos olhos de qualquer outra pessoa. Seus outros hobbys incluem música. Apesar de já ter tocado violão e flauta doce quando mais novo, agora Isley diz que prefere só apreciar a música dos outros. “Você pega meu Ipod, tem mais de 3000 mil músicas. E eu conheço e gosto de todas”, diz. Seu gênero preferido é música contemporânea, especialmente holandesa, sueca e inglesa.
O restaurante foi inaugurado no dia 3 de abril de 2006 com 200 mil reais emprestados por um amigo do chef. Era a aposta final do casal, o tudo ou nada que contava apenas com o talento natural de Isley na cozinha, com a formação administrativa de Adriana e com a boa vontade dos pais do chef para ajudá-lo no estabelecimento. E deu muito mais que certo, em parte por conta da personalidade inquieta de Isley, que sempre traz o inesperado para o cardápio.
Todas as manhãs recebe as frutas e verduras frescas de um fornecedor de feira livre de São Paulo que ele mesmo encontrou e faz as outras compras para o restaurante pessoalmente no Sam’s Club. Isley fez questão de montar a própria rede de fornecedores simplesmente na tática da tentativa e erro. Ao chegar ao Piatto, combina com a equipe quem fará o que e entram na correria para deixar tudo perfeito para a clientela. Umas três e meia da tarde, o restaurante fecha as portas e é hora do almoço dos funcionários. Isley não se faz de rogado e sempre almoça com eles, rindo e fofocando. “Um dia uma senhora me viu sentado no meu almoço e disse que ficou emocionada. Ai eu fiquei todo feliz achando que foi a comida, mas ela disse que fui eu, porque não é comum dono de restaurante sentar com empregado. Até é verdade, mas pra mim isso não existe. Trabalha comigo, eu sou o chefe, mas também é meu amigo”, determina.
Isley também não tolera críticas infundadas. Ele acredita que todos têm direito à opinião, mas que não tem justificativa desrespeitar o trabalho de um estabelecimento usando como único argumento o gosto pessoal de cada um. “Eu não suporto gente que come a minha comida com cara de nojo. Você tem todo direito de comer e não gostar, é uma coisa sua. Mas me chamar na sua mesa para me dizer que eu cozinho mal é imperdoável. Eu cozinho mal para você, problema seu, não volta mais. Uma vez coloquei um casal para fora por isso. A moça olhava o buffet como se a comida fosse lixo. O cara tratou o pessoal aqui super mal de graça. Quando eu vi aquilo, nem esperei os dois sentarem. Cheguei neles e disse que eles estavam sendo intimados a se retirar. Primeiro eles acharam que era brincadeira, mas eu insisti e disse que eles nem precisavam pagar a conta, que eu só queria que eles sumissem. Acho que convenci”.
Apesar das tentativas da esposa de fazê-lo decidir o cardápio de véspera para colocarem no site do Piatto, Isley não consegue evitar decisões de última hora no mercado ou mesmo na cozinha, já com a mão na massa. Nada a que seus funcionários não estejam acostumados, ainda mais levando em conta que os pais, esposa e os filhos de Isley o ajudam a tocar o estabelecimento. O pai fica na balança; a esposa reveza o caixa com a filha Marcella; a mãe supervisiona a limpeza das mesas, recebe os clientes e prepara os bolinhos de chuva que são servidos de cortesia junto com o cafézinho; e o filho Enrico faz as vezes de garçom quando não está na escola.
O pai de Isley em especial tem um gênio muito forte, totalmente oposto ao do filho. É fechado, seletivo, grosso. A clientela sente isso, pois o chef já foi informado pessoalmente que, apesar da excelente comida, nunca mais seria visitado por seu pai ser um “estúpido”, como o chef mesmo o descreve. O próprio Isley não fala com o pai há três meses graças a uma briga, mesmo o vendo todos os dias e trabalhando juntos. O chef se queixa que o pai não reconhece sua maturidade e lamenta: “Pai não pode esquecer que filho também cresce. Que tem que ter liberdade. Se depender de mim, vamos acertar nossas contas só lá em cima, porque aqui já deu”.
Mesmo com esse atrito com o pai, Isley não acha ruim trabalhar com a família. “É estressante, mas eu acho que é mais fácil de manter o respeito. A gente se estressa, fala mais grosso, mas nunca perde o respeito. A gente nem fica mais chateado um com o outro quando acontece. Passamos por cima e fica tudo bem”, declara.
O resto da equipe, mesmo não partilhando do sangue de Isley, definitivamente partilha de seu coração. Uma das coisas que o chef raramente faz é a sobremesa, por exemplo. Se não instrui o time sobre o que deseja servir, traz já pronto de casa, para não atrasar o ritmo da cozinha.
Em outros tempos, Isley não se sentiria totalmente seguro para confiar em sua equipe, mas agora estufa o peito para falar de seus funcionários. “Todo mundo sabe o que o cliente espera daqui. Ontem eu precisei ficar em casa por causa de uns móveis novos que iam chegar e eu não podia estar mais tranquilo, sabe? Eu sei que essas pessoas que estão comigo aqui dão conta do recado e não vão me decepcionar. É um sentimento muito bom”, revela o chef.
Por hora, ele se contenta com o restaurante como ocupação oficial. Por hora.

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