A vida em um
plano-sequência
A tarde era fria. O dia, típico do outono brasileiro: a manhã é
extremamente congelante, para alguém acostumado com o clima tropical, é claro.
Durante o dia, faz sol e calor, e lá se vão os casacos e cachecóis que serviram
para aquecer o corpo contra o vento da manhã. À tarde, o ciclo se completa com
a volta do frio e dos agasalhos que foram carregados no braço na hora do
almoço. Mas não importa o clima que esteja na parte de fora, dentro daquele
prédio é sempre quente.
No verão, é insuportável. Ventiladores ligados não alcançam os alunos.
Ares-condicionados não são fortes o suficiente. Janelas?
Parece que não existem. Já no inverno, ao entrar em um dos oito elevadores
disponíveis, a sensação de ser aquecido por um aconchegante cobertor é
instantânea. É o melhor lugar para se refugiar dos ventos perfurantes da Av. Paulista e foi o melhor lugar
para fazer uma entrevista naquela tarde.
Ao lado da elegância da Reserva Cultural e em meio aos gigantes do
centro econômico de São Paulo, o prédio da Gazeta fica um pouco deslocado,
parece um pouco retrógrado e até frágil diante do alvoroço da avenida. Essa
carência foi percebida e obras estão sendo providenciadas para que o destaque
do prédio não seja apenas pela sua tradição, mas também pela sua arquitetura.
O clima agradável que acompanha o edifício contagia o terceiro andar,
ocupado por duas lanchonetes e uma praça de alimentação, que nunca fica
totalmente vazia. Entre alguns estudantes, alheios ao que se passa ao seu redor,
e alguns funcionários preocupados apenas em se distrair da rotina do trabalho,
um velhinho sai do elevador. Suas roupas casuais, o andar sereno (um pouco
cansado) e a postura já não tão ereta disfarçam a vitalidade da alma e da mente
que a experiência ajudou a construir.
Ele não chama a atenção de quem não o conhece. E quem se recorda
vagamente das reportagens produzidas no passado, não irá reconhecê-lo. O cabelo
ralinho e a barba, ambos grisalhos, transformaram a fisionomia de um repórter
que primeiro aprendeu a viver para depois aprender a ser jornalista. “Motorista
de táxi, de caminhão, piloto de avião, salva-vidas de praia, cineasta. Olha,
tem umas 60 e isso facilita eu falar a linguagem das pessoas com naturalidade,
porque eu fui aprendendo na vida.”
Foi com essa desenvoltura que Luís Filipe Goulart de Andrade, ou
apenas Goulart de Andrade, montou uma sólida carreira, reconhecida pelas
audácias de suas matérias e pelo talento em produzi-las. Com reportagens sobre
FEBEM, Carandiru, Juqueri e muitas outras, a sua intenção sempre foi “passar
com mais intimidade”. As marcas da idade em seu rosto dão lugar para o sorriso
de humor que aparece ao falar que se “travestiu de travesti”.
- Naquela época, dentro do meu programa existia um espaço que eu
chamava de Pele do Lobo, então eu me
vestia daquele personagem. Eu fui palhaço, maquinista de maria-fumaça, piloto
da barca de... aquele do Guarujá... da balsa! Eu fui uma porção de personagens,
uma delas foi o travesti.
Foram vivências como essa que influenciaram sua vida como jornalista.
“Se você aproveitar aquele período que está lá (incorporando um personagem),
você sai mais enriquecido do que se estivesse à distância. Eles lá, eu aqui. É
menos próprio ainda pra você identificar costumes e culturas do que se você
embarcar no ambiente como se fosse um deles”.
Apesar da sua longa jornada, a simpatia e o envolvimento com que
entrevistava pessoas de diversas situações sociais continuam o mesmo. Nosso
primeiro encontro aconteceu um mês antes da entrevista e o ambiente caloroso
que aquece os andares da Gazeta pareceu frio perto do clima com que esse
velhinho, que não gosta de ser chamado de senhor, recebe as pessoas.
Participei do programa Vem
Comigo, apresentado pelo próprio Goulart na Gazeta, e foi na gravação do
programa, ali em um estúdio do terceiro andar, que tive a chance de ver que os
80 anos que ele carrega nas costas não representam peso nenhum sobre os seus
ombros. “Ué, por quê? Eu só tenho 80 anos!”. Comentei que o meu avô também está
beirando a casa dos 80, mas não tem a metade da energia e vitalidade do
jornalista. Em tom de confidencialidade, ele revela: fala para o seu avô tomar
vinho.
Entretanto, todas as brincadeiras e a familiaridade com que ele
interage, tanto comigo quanto com a equipe do programa e com outros alunos da
faculdade, não me impediram de notar que o também ator (porque “quando se é
ator, vai ser sempre ator”) ainda tem uma agenda apertada. A entrevista, que
tinha sido marcada uma semana anterior, teve que ser remarcada. “O táxi está me
esperando, quanto tempo vai demorar? Vamos fazer o seguinte, podemos marcar
para a outra semana? Vamos fazer isso com propriedade”, sem deixar o carisma
desaparecer.
Na semana seguinte, com a entrevista marcada às 15h, ele apareceu um
pouco antes das 17h e já estava na hora de entrar para a gravação do Vem Comigo. Mas ele insistiu para
batermos um papo mesmo assim. Entre algumas interrompidas da equipe do programa,
Goulart contou o que faz além das gravações às quartas.
- Minha rotina é muito maior do que isso (gravação no estúdio), porque
eu desenvolvo a seleção daquilo que eu vou pegar no meu acervo, faço uma
avaliação junto com o pessoal da direção, que é o Marco, a produção. Gravo,
geralmente, nas segundas e terças, o chamado Vivenciar. Hoje eu acabei de
gravar o cara que me operou do coração em 1976. Enfim, a minha rotina, desde
que eu comecei a trabalhar, em 1955, é trabalhar todo dia.
Parecia que o barulho dos preparativos da gravação tinha sumido da
nossa conversa, ou talvez eu tenha deixado de prestar atenção nele, no momento
em que Goulart começou a contar sobre ser jornalista. Apesar das 60 profissões
que teve, elas eram apenas profissões. “Aqui não, não é uma profissão, não é um
emprego, jornalismo é um ofício. E eu precisava me comunicar, eu precisava de
um veículo para me comunicar”.
Acostumado em ter sido sempre novidade, ele ainda procura uma maneira
de se manter atualizado. Seu corpo idoso que aparenta fragilidade mostra, em
vários aspectos, que tem o espírito mais renovado que muitos adolescentes. Sempre
se “oxigenando com jovens”, Goulart procura participar de programas que
incentivam o aprendizado, como o Vem
Comigo. Por isso criou o 23ª Hora,
no qual chamou Marcelo Tas e Fernando Meirelles (na época, jovens), para participarem
do programa.
Com a mesma mente aberta com que fazia suas reportagens, Goulart
acredita que é possível misturar jornalismo com humor e afirma que nessa área,
o importante é “passar para outras pessoas o que você está vendo ou o que você
viu”.
- Depende de como você olha para esse tipo de jornalismo, porque você
pode ter alguns veículos que fazem um tipo mais bem-humorado. Por exemplo, o
Millôr Fernandes foi um grande jornalista, ele fazia aquelas charges do
Pif-Paf, que era uma página inteira do O
Cruzeiro. Era jornalismo e era cruel o seu ponto de vista de denúncias e
brincadeiras. Se você passa com humor ou não, é a mesma coisa, é sempre
jornalismo. É uma maneira de se comunicar.
E já que estávamos nesse assunto, resolvi perguntar sobre o
plano-sequência, marca registrada em suas reportagens.
- É mais prática. Pra mim, né? Mais ágil e mais pontual, você tá
naquele lugar, vai dizendo o que é. Melhor do que você esperar pra dizer
novamente o que você viu em um texto off. Mas também acredito que, em algumas
circunstâncias, o texto off é importante, até para moldurar a estética. Mas eu
prefiro o plano-sequência.
A modéstia que sempre acompanha o jornalista cedeu para a parte
escondida de seu ego. “Precisa saber fazer, viu? Tem que ter experiência.”
Apesar de toda essa experiência, Goulart ainda tem sonhos e projetos
que gostaria de realizar. Por trás dos redondos óculos de vovô, seus olhos
brilharam. “Aqui na Gazeta, eu tenho uma cozinha estúdio, onde eu quero fazer
viagens gastronômicas sem sair de lá. Aí, eu vou mostrar como é a cozinha na
Índia, no Paquistão, na China, no Pará, em Porto Alegre, no Recife, enfim, lá
dentro. Sempre levando uma pessoa que me interessa para bater um papo.”. O
sorriso já indicava o que mais tarde ele iria revelar:
- Você gosta de cozinhar?
- Eu adoro! Sabe por quê? O Brasil precisa ser desenvolvido na esfera
internacional como um dos principais países de cultura gastronômica. Os
temperos brasileiros são muito importantes e a maneira de fazer. Um feijão de
Minas é diferente do Rio. Todos são bons, mas cada um tem o toquinho da sua
região.
Além do seu hobby culinário, o tom paternalista, fácil de encontrar em
sua voz, mostra que Goulart é mais do que um talentoso jornalista. Casado com
Margareth, de 44 anos, Goulart tem 5 filhos (conta Julia, filha apenas da esposa,
como sua também) e 3 netos. “Minha família é maravilhosa, me ajuda, me
completa”. Quando perguntei se planeja parar de trabalhar, a força de toda a
juventude apareceu no balanço da cabeça e na veemência da resposta:
- Não, não, não, não, não... só no crematório, afirma com um sorriso.
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