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domingo, 16 de junho de 2013

Perfil - Jéssica Tabuti


A vida em um plano-sequência



A tarde era fria. O dia, típico do outono brasileiro: a manhã é extremamente congelante, para alguém acostumado com o clima tropical, é claro. Durante o dia, faz sol e calor, e lá se vão os casacos e cachecóis que serviram para aquecer o corpo contra o vento da manhã. À tarde, o ciclo se completa com a volta do frio e dos agasalhos que foram carregados no braço na hora do almoço. Mas não importa o clima que esteja na parte de fora, dentro daquele prédio é sempre quente.
No verão, é insuportável. Ventiladores ligados não alcançam os alunos. Ares-condicionados não são fortes o suficiente. Janelas? Parece que não existem. Já no inverno, ao entrar em um dos oito elevadores disponíveis, a sensação de ser aquecido por um aconchegante cobertor é instantânea. É o melhor lugar para se refugiar dos ventos perfurantes da Av. Paulista e foi o melhor lugar para fazer uma entrevista naquela tarde.
Ao lado da elegância da Reserva Cultural e em meio aos gigantes do centro econômico de São Paulo, o prédio da Gazeta fica um pouco deslocado, parece um pouco retrógrado e até frágil diante do alvoroço da avenida. Essa carência foi percebida e obras estão sendo providenciadas para que o destaque do prédio não seja apenas pela sua tradição, mas também pela sua arquitetura.
O clima agradável que acompanha o edifício contagia o terceiro andar, ocupado por duas lanchonetes e uma praça de alimentação, que nunca fica totalmente vazia. Entre alguns estudantes, alheios ao que se passa ao seu redor, e alguns funcionários preocupados apenas em se distrair da rotina do trabalho, um velhinho sai do elevador. Suas roupas casuais, o andar sereno (um pouco cansado) e a postura já não tão ereta disfarçam a vitalidade da alma e da mente que a experiência ajudou a construir.
Ele não chama a atenção de quem não o conhece. E quem se recorda vagamente das reportagens produzidas no passado, não irá reconhecê-lo. O cabelo ralinho e a barba, ambos grisalhos, transformaram a fisionomia de um repórter que primeiro aprendeu a viver para depois aprender a ser jornalista. “Motorista de táxi, de caminhão, piloto de avião, salva-vidas de praia, cineasta. Olha, tem umas 60 e isso facilita eu falar a linguagem das pessoas com naturalidade, porque eu fui aprendendo na vida.”
Foi com essa desenvoltura que Luís Filipe Goulart de Andrade, ou apenas Goulart de Andrade, montou uma sólida carreira, reconhecida pelas audácias de suas matérias e pelo talento em produzi-las. Com reportagens sobre FEBEM, Carandiru, Juqueri e muitas outras, a sua intenção sempre foi “passar com mais intimidade”. As marcas da idade em seu rosto dão lugar para o sorriso de humor que aparece ao falar que se “travestiu de travesti”.
- Naquela época, dentro do meu programa existia um espaço que eu chamava de Pele do Lobo, então eu me vestia daquele personagem. Eu fui palhaço, maquinista de maria-fumaça, piloto da barca de... aquele do Guarujá... da balsa! Eu fui uma porção de personagens, uma delas foi o travesti.
Foram vivências como essa que influenciaram sua vida como jornalista. “Se você aproveitar aquele período que está lá (incorporando um personagem), você sai mais enriquecido do que se estivesse à distância. Eles lá, eu aqui. É menos próprio ainda pra você identificar costumes e culturas do que se você embarcar no ambiente como se fosse um deles”.
Apesar da sua longa jornada, a simpatia e o envolvimento com que entrevistava pessoas de diversas situações sociais continuam o mesmo. Nosso primeiro encontro aconteceu um mês antes da entrevista e o ambiente caloroso que aquece os andares da Gazeta pareceu frio perto do clima com que esse velhinho, que não gosta de ser chamado de senhor, recebe as pessoas.
Participei do programa Vem Comigo, apresentado pelo próprio Goulart na Gazeta, e foi na gravação do programa, ali em um estúdio do terceiro andar, que tive a chance de ver que os 80 anos que ele carrega nas costas não representam peso nenhum sobre os seus ombros. “Ué, por quê? Eu só tenho 80 anos!”. Comentei que o meu avô também está beirando a casa dos 80, mas não tem a metade da energia e vitalidade do jornalista. Em tom de confidencialidade, ele revela: fala para o seu avô tomar vinho.
Entretanto, todas as brincadeiras e a familiaridade com que ele interage, tanto comigo quanto com a equipe do programa e com outros alunos da faculdade, não me impediram de notar que o também ator (porque “quando se é ator, vai ser sempre ator”) ainda tem uma agenda apertada. A entrevista, que tinha sido marcada uma semana anterior, teve que ser remarcada. “O táxi está me esperando, quanto tempo vai demorar? Vamos fazer o seguinte, podemos marcar para a outra semana? Vamos fazer isso com propriedade”, sem deixar o carisma desaparecer.
Na semana seguinte, com a entrevista marcada às 15h, ele apareceu um pouco antes das 17h e já estava na hora de entrar para a gravação do Vem Comigo. Mas ele insistiu para batermos um papo mesmo assim. Entre algumas interrompidas da equipe do programa, Goulart contou o que faz além das gravações às quartas.
- Minha rotina é muito maior do que isso (gravação no estúdio), porque eu desenvolvo a seleção daquilo que eu vou pegar no meu acervo, faço uma avaliação junto com o pessoal da direção, que é o Marco, a produção. Gravo, geralmente, nas segundas e terças, o chamado Vivenciar. Hoje eu acabei de gravar o cara que me operou do coração em 1976. Enfim, a minha rotina, desde que eu comecei a trabalhar, em 1955, é trabalhar todo dia.
Parecia que o barulho dos preparativos da gravação tinha sumido da nossa conversa, ou talvez eu tenha deixado de prestar atenção nele, no momento em que Goulart começou a contar sobre ser jornalista. Apesar das 60 profissões que teve, elas eram apenas profissões. “Aqui não, não é uma profissão, não é um emprego, jornalismo é um ofício. E eu precisava me comunicar, eu precisava de um veículo para me comunicar”.
Acostumado em ter sido sempre novidade, ele ainda procura uma maneira de se manter atualizado. Seu corpo idoso que aparenta fragilidade mostra, em vários aspectos, que tem o espírito mais renovado que muitos adolescentes. Sempre se “oxigenando com jovens”, Goulart procura participar de programas que incentivam o aprendizado, como o Vem Comigo. Por isso criou o 23ª Hora, no qual chamou Marcelo Tas e Fernando Meirelles (na época, jovens), para participarem do programa.
Com a mesma mente aberta com que fazia suas reportagens, Goulart acredita que é possível misturar jornalismo com humor e afirma que nessa área, o importante é “passar para outras pessoas o que você está vendo ou o que você viu”.
- Depende de como você olha para esse tipo de jornalismo, porque você pode ter alguns veículos que fazem um tipo mais bem-humorado. Por exemplo, o Millôr Fernandes foi um grande jornalista, ele fazia aquelas charges do Pif-Paf, que era uma página inteira do O Cruzeiro. Era jornalismo e era cruel o seu ponto de vista de denúncias e brincadeiras. Se você passa com humor ou não, é a mesma coisa, é sempre jornalismo. É uma maneira de se comunicar.
E já que estávamos nesse assunto, resolvi perguntar sobre o plano-sequência, marca registrada em suas reportagens.
- É mais prática. Pra mim, né? Mais ágil e mais pontual, você tá naquele lugar, vai dizendo o que é. Melhor do que você esperar pra dizer novamente o que você viu em um texto off. Mas também acredito que, em algumas circunstâncias, o texto off é importante, até para moldurar a estética. Mas eu prefiro o plano-sequência.
A modéstia que sempre acompanha o jornalista cedeu para a parte escondida de seu ego. “Precisa saber fazer, viu? Tem que ter experiência.”
Apesar de toda essa experiência, Goulart ainda tem sonhos e projetos que gostaria de realizar. Por trás dos redondos óculos de vovô, seus olhos brilharam. “Aqui na Gazeta, eu tenho uma cozinha estúdio, onde eu quero fazer viagens gastronômicas sem sair de lá. Aí, eu vou mostrar como é a cozinha na Índia, no Paquistão, na China, no Pará, em Porto Alegre, no Recife, enfim, lá dentro. Sempre levando uma pessoa que me interessa para bater um papo.”. O sorriso já indicava o que mais tarde ele iria revelar:
- Você gosta de cozinhar?
- Eu adoro! Sabe por quê? O Brasil precisa ser desenvolvido na esfera internacional como um dos principais países de cultura gastronômica. Os temperos brasileiros são muito importantes e a maneira de fazer. Um feijão de Minas é diferente do Rio. Todos são bons, mas cada um tem o toquinho da sua região.
Além do seu hobby culinário, o tom paternalista, fácil de encontrar em sua voz, mostra que Goulart é mais do que um talentoso jornalista. Casado com Margareth, de 44 anos, Goulart tem 5 filhos (conta Julia, filha apenas da esposa, como sua também) e 3 netos. “Minha família é maravilhosa, me ajuda, me completa”. Quando perguntei se planeja parar de trabalhar, a força de toda a juventude apareceu no balanço da cabeça e na veemência da resposta:
- Não, não, não, não, não... só no crematório, afirma com um sorriso.




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