Um pouco de malandragem
Delfina Isabel,
mais conhecida como Ni, seria uma figura aparentemente comum, não fosse a
coragem e a leveza com que leva a vida. Tem 56 anos, estatura mediana e cabelos
lisos. Seu rosto, com uma cicatriz no queixo devido a um acidente de quando
tinha apenas 15 anos, é bonito, porém cansado, talvez maltratado pela vida. Carrega
um óculos fundo de garrafa que dá a seu semblante uma aparência quase cômica.
Delfina é muito
atenciosa, tem um jeito teatral de exagerar tudo o que fala, como se narrasse
uma história épica a uma multidão de curiosos. Quando conta alguma coisa, faz
um semblante apreensivo, exagera no tom de voz, vive e sofre com a história que
narra. Histórias que são, geralmente, sobre a fofoca de alguém da família ou o
último quebra-quebra da vizinhança.
Aos finais de
semana, gosta de passear, ir ao parque ou frequentar os bares antigos da Vila
Madalena com Luís, seu companheiro.
Gosta de samba,
cerveja, cigarro e um gole de café fresco. Mora com sua mãe, D.Maria, que tem
idade avançada, lá pelos 86 anos. Sua casa fica na rua Colonização, uma das
poucas ruas que não se transformara em um conjunto de condomínios e preserva,
ainda, a maior parte das casas e da vizinhança de vinte anos atrás. Os adultos
de hoje brincavam na rua tempos atrás. Aquela rua tem uma história pra contar,
é como se vivesse também e partilhasse do sentimento dos antigos moradores,
entre eles Delfina. Talvez por isso, todos se conheçam por ali.
“Ela sempre foi
muito otimista. Não vê a realidade crua e nua. É bastante sonhadora, mas
batalha para conseguir o que quer”, diz Rita de Cássia, irmã de Delfina,
explicando que sua irmã é “forte de espírito” e sabe lidar com as adversidades
que a vida coloca. “Independente da condição em que ela se encontra, ela sempre
tem um pensamento positivo. Sua fé nunca é abalada”, acrescenta.
Talvez as
afirmações possam se referir à atitude afirmativa que ela tem diante da vida,
não se deixando abalar facilmente.
Há alguns anos
atrás, sua mãe, que já tinha idade avançada, teve câncer. Ela foi uma das
poucas pessoas que não perdeu a esperança e a vontade de lutar contra a maldita
doença. Passava dias, às vezes noites, dentro do hospital. Com sua simplicidade
toda, não se deixava enganar pelos médicos e enfermeiros que faziam corpo mole.
Perguntava, corria atrás, falava alto quando precisava.
Delfina não
terminou de estudar, fez ensino fundamental incompleto. O que admira, porém, é seu
olhar crítico e desconfiado perante as coisas, tem clara noção da realidade em
que está inserida e das dificuldades injustas pelas quais tem de passar, já que
ganha pouco mais de um salário mínimo e tem um filho para cuidar.
Não gosta de
novelas porque, para ela, novela é tudo a mesma coisa, isto é, uma porcaria.
Prefere escutar música e ler em seu quarto enquanto sua mãe assiste às novelas
da Globo durante o dia. Tem preferência por samba e mpb e, entre os
compositores preferidos, gosta muito de Adoniran Barbosa e Cartola, também
escuta Caetano Veloso, Chico Buarque, Renato Russo e Cazuza. Presenteou-me, com
um CD de Cazuza há algum tempo atrás.
Às vezes, gosta
de fumar em frente sua casa e fica conversando na rua, batendo papo sobre a
vida. Uma coisa que não gosta é de compromissos, está sempre dizendo “se eu
chegar é porque eu fui”. Não gosta de se sentir presa. Delfina tem a vida
desregrada de quem não se importa com o que vai acontecer no dia seguinte, sem
horários definidos, sem maiores preocupações que não o dia de hoje. Almoça na
hora que quer e janta na hora que dá vontade. Costuma dormir de madrugada e
acordar tarde. Geralmente, perde compromissos importantes como as consultas
médicas de sua mãe, mas é a primeira a ajudar caso a situação seja de urgência.
Os familiares
que com ela convivem acham que Delfina tem o humor desregulado e brincam
dizendo que seu comportamento tem um pouco de loucura, mas não há uma pessoa
que não goste de rir e de estar à par das histórias que ela conta, porque a
Delfina sempre sabe tudo nos mínimos detalhes, de primeira mão.
Ela também
gosta de cozinhar, mas não é muito bem aventurada nessa tarefa corriqueira do
cotidiano, já que costuma salgar frequentemente a comida ou errar na mão, mas
tem muita criatividade e sempre acaba inventando novos pratos. Assim, quando pode,
sempre guarda um pedacinho do jantar para os familiares.
A Delfina nunca
gosta de ser passada para trás. Em alguns momentos, ela vira advogada e até
mesmo médica para conseguir resolver os pequenos impasses da vida que aparecem
e tem uma lábia inacreditável para driblar situações de dificuldade. Talvez por
não ser escutada de outra forma, usa de sua esperteza para se fazer ouvir em um
mundo em que só o dinheiro vence.
Delfina não tem
chapéu de palha ou navalha na mão, mas é tão malandra como os sujeitos que
usavam de sua esperteza para sobreviver e se fazer respeitar em um mundo como
esse. É claro que ela não lembra nem um pouco a figura estereotipada do
malandro brasileiro, mas sua malandragem certamente está no jeito de levar a
vida.
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