São Paulo ainda pulsa
Será que a metrópole paulistana, a cidade
que nunca dorme, realmente virou um mar de concreto? Ou é você que não consegue
ver mais além?
As
chuvas de verão viraram pesadelo para o morador de São Paulo, isso porque a
cidade não foi estruturada para suportá-las. Os rios estão poluídos e têm um
mau cheiro tão forte que chega a ser tóxico para quem inala. Os moradores não
aguentam mais os famosos problemas da cidade grande, levando uma vida
estressante e sem qualidade.
Você
sabia que existem mais de 300 rios embaixo do cimento pavimentado que percorremos
todos os dias para ir e voltar do trabalho? Pois é, os rios não se restringem a
apenas aqueles trechos sujos que ficam expostos nas marginais. A água que brota
na calçada em frente à sua casa; que molha a rua sem que haja chuva ou que
corre pelas canaletas, pode ser de um rio.
Gente que faz acontecer
Será
que realmente não existe um lugar perto de você que possibilite o contato com a
natureza, dando aquela sensação que te desliga da rotina alucinante? A maioria
dos paulistanos não sabe, mas São Paulo esconde um verdadeiro universo aquático
por baixo de suas avenidas sem fim. Quem conta um pouco mais sobre esta
história é José Bueno e Luís Campos Jr, fundadores do projeto Rios e Ruas.
“Isso aqui não se trata de urbanismo ou arquitetura, e sim de pessoas”.
Preocupados com a qualidade de vida do cidadão, os urbanistas se propuseram a
dedicar parte de seu tempo para conscientizar o paulistano.
Realizando
encontros esporádicos, José e Luís formam grupos para conhecer os rios da
cidade. “Aqui, embaixo da ponte do Sumaré, correm dois rios: córrego da água
preta e córrego da água branca. Tá vendo aquela água ali na calçada? – apontando
para o local – aquela água é rio”, diz Luís, em expedição realizada para
conhecer alguns trechos do córrego da água preta.
Além
de identificar pedacinhos dos rios e proporcionar este contato inusitado entre
a água e o paulistano, José e Luís falam sobre o uso do espaço público. “Nós
somos a coisa estranha nessa paisagem”, diz Bueno, ao perceber o incomodo dos
motoristas com os pedestres. Os homens da natureza apresentam um novo viés da
cidade para quem os acompanha nas caminhadas. Através de variação climática e
exuberância de algumas plantas e árvores, aprende-se a identificar a presença
de nascentes dos rios sob o asfalto. Eles estão sim aprisionados, mas deixam
marcas indeléveis de sua presença.
Para
conseguir identificar a nascente torna-se necessário atiçar outros órgãos do
sentido: ouvir o rio sob as galerias, perceber a variação climática do local
através da sensação tátil e olfativa, praticar um olhar diferente para perceber
as árvores que nunca são percebidas. “Na expedição, fiz o esforço de resgatar
os recursos humanos que estavam adormecidos em mim. Foi como um despertar de
minha natureza que, na verdade, está sempre presente apesar dos esforços externos
em destruí-lo para privilegiar as ruas e prédios”, diz Elaine L. Machado, que
participou de uma das expedições propostas pelo Rios e Ruas
O
projeto conta com parcerias de algumas outras iniciativas, também privadas,
para proporcionar a reeducação do paulistano. Pedal Verde e o movimento da
Horta da Pompéia também são iniciativas que têm a preocupação do engajamento
socioambiental.
Os
ciclistas do Pedal Verde se encontram todo último sábado do mês, às 14 horas,
para pedalar e cuidar do local onde vive. Eles se juntam na Avenida Paulista,
na praça do ciclista, e traçam um roteiro de lugares que visitarão para plantar
árvores. No site do projeto estão registrados alguns dos lugares que já foram
presenteados com uma árvore pelos ciclistas do bem. Quem quiser participar, é
só ficar de olho nas redes sociais e site; as expedições são abertas e os novos
integrantes são sempre bem-vindos.
Quem
não poderia deixar de ser lembrado, é o movimento da Horta da Pompéia. Um dos
idealizadores, Paulo Fonseca, já cultivava algumas hortas dentro de sua casa
com a ajuda de alguns amigos que gostavam da atividade. Com a iniciativa da ONG
Cidade Democrática, que tinha como objetivo colaborar com a melhora do bairro
da Pompéia, o pessoal que participava da manutenção das hortas na casa de Paulo
deu a ideia de levar o movimento para um espaço vazio do bairro, surgindo assim
a Horta da Pompéia.
Cerca
de 50 moradores da região se engajaram na causa e o espaço se revitalizou
rapidamente. Hoje, os vizinhos mantém o compromisso de cuidar da horta, que
cresce mais a cada dia, contando com a ajuda de visitantes que passam por lá
para colaborar. O espaço serve também para atividades lúdicas junto a crianças,
e algumas oficinas que ensinam os visitantes a cuidar de plantações.
Todos esses projetos
promovem a retomada da relação do homem com o meio em que vive. Mas, qual será
o momento em que perdemos este contato? Quando deixamos que nosso espaço fosse
pintado de cinza e nossos rios sucateados e escondidos pelo concreto?
Para baixo do tapete
O
início da sedentarização só foi possível a partir do momento em que o homem
fixou-se em um local com fácil acesso à água potável e terras férteis. A partir
daí, desenvolveu-se a prática da agricultura e as proximidades dos rios foram
ocupadas gerando a consequente permanência de grupos que antes eram nômades. A
população começou a aumentar, pois havia alimentos e recursos disponíveis para
todos, culminando na origem dos primeiros povoados que formariam as cidades.
A
questão é que essa formação se deu de forma completamente desordenada. Hoje,
com a água encanada, os rios passaram de solução a empecilho do crescimento
urbano e foram escondidos por baixo das megalópoles que se formaram.
O rio é formado por
dois leitos: o maior e o menor, sendo um dentro do outro. O rio fica
completamente encaixado no menor em períodos de estiagem (de março a outubro).
Mas, nas épocas de chuva (outubro a março), as águas tomam todo o espaço. O rio
Tietê, por exemplo, tem a variação de 600 para 1000 metros nesses períodos,
sendo que a Vila Maria baixa está localizada em cima no leito maior, tomando o
espaço que antes era das águas.
Falando de São Paulo,
foi aproximadamente na década de 30 que os rios passaram a ser jogados para
baixo das rodovias. Atualmente, apenas 10% das águas estão a céu aberto. O problema fica explicitado quando há uma densidade de
pessoas no mesmo lugar de maneira desorganizada. O que vemos, na verdade, é uma
retificação do leito menor; os canais são construídos com a largura aproximadamente
equivalente ao leito menor, e o leito maior foi totalmente ocupado, pavimentado,
loteado e vendido.
Alexandre Delijaicov explica
A partir do momento
em que os leitos maiores dos rios passaram a ser alvo de especulação
imobiliária, o rio foi exprimido em um pequeno espaço, insuficiente nos
períodos de cheia. Na verdade, o funcionamento dos rios é semelhando ao dos
mamíferos; nosso coração pulsa, aumentando e diminuindo de tamanho. Os rios
fazem o mesmo movimento, mas em ritmo diferente.
Imagine se nosso
coração fosse amarrado com um material muito resistente e não pudesse continuar
com o funcionamento natural de aumentar e diminuir? Foi exatamente isso que
fizemos com os rios quando tiramos a possibilidade deles aumentarem
naturalmente seus tamanhos, ocupando o leito maior nas épocas de cheia. Essa é
a explicação de Alexandre Delijaicov sobre motivo de termos enchentes.
Arquiteto,
urbanista e professor da FAU USP, formado pela Faculdade de Belas Artes de São
Paulo com mestrado e doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP,
Alexandre fala com indignação sobre o fato de termos tomado o espaço dos rios “Se a cidade está
ocupando parte do rio, o problema não é dele, é nosso. A gente sempre acha que
o inferno são os outros, mas o inferno somos nós. Nós que inventamos isso”.
O arquiteto diz que
a cidade de São Paulo deveria ter sido desenhada a partir das águas, como
Amsterdã, por exemplo, com canais, muita água e arvores. A presença destes
elementos tem o poder de garantir o microclima e gerar um estado psicológico
saudável. O paulistano transformou o meio urbano em um lugar de desencontro. A
cidade não foi projetada para estar/ficar, e sim para quem está apenas de
passagem pelos espaços públicos. Seria importante que tivéssemos a oportunidade
de sentir as possibilidades que o lugar tem a nos oferecer.
Toda essa
problemática que envolve, desde as questões estruturais públicas às psíquicas
individuas, causam consequências graves nas relações humanas, que se tornam
desgastadas em meio à condição em que o homem vive. “As relações humanas estão
desgastadas; nos tratamos como descartáveis. É tão interno que a gente não
percebe o destrato com o outro, do mesmo modo que não percebemos o coração
bater. O grau de insatisfação do individuo é de mal estar completo. Enquanto
não sublimarmos esta condição que é de desgraça, desespero e solidão, mas uma
finitude da própria existência, de uma construção coletiva de como podemos
poluir juntos, a situação não será revertida”
Alexandre completa
dizendo que são estes problemas que leva um jovem, frente a todas as chamadas
de dimensão pública, a pegar um carro e ter a coragem de achar que com ele não
vai acontecer nada (referindo-se ao caso do atropelamento causado por Alex
Siwek). “Ele é um psicopata latente, mas isso não é excepcional. Em todos nós
existe a possibilidade de cometer essas atrocidades. Até onde vai a liberdade
do outro? E o que os rios têm a ver com isso? Tudo! É um instantâneo da
condição humana; ele pega o braço que decepou e joga no rio, porque o rio é a
vala de esgoto, a foça social. Se nós somos água, os rios somos nós. Então, não
adianta tomar banho e passar perfume, porque nós somos aquilo”.
Filtrando ideias
Cansado de viver na
cidade do caos, Alexandre sonha e projeta, há mais de dez anos, um mundo que
chega a parecer mágico: um projeto que foi planejado no final do século 19, mas nunca foi posto
em prática. Tendo funcionamento semelhante a Veneza e Sena, nós passaríamos a
utilizar as águas como meio de transporte, tornando São Paulo um lugar mais
sustentável.
A ideia baseia-se em
um anel hidroviário de 600 km de extensão, que interliga os rios Tamanduateí,
Tietê, Pinheiros, as represas Billings, Taiaçupeba e Guarapiranga. O canal
hidroviário serviria como uma saída do transporte rodoviário, que tomou quase
todo espaço, viabilizando através dos rios a locomoção urbana e de transporte cargas.
O projeto também prevê alguns portos que seriam construídos em pontos
estratégicos da cidade, a conservação de espaços nas margens que se
transformariam em praças e um espaço reservado nas águas para a prática de
esportes.
Alexandre diz que
nossas ações são o caminho para alcançarmos uma realidade destas. “Esse tipo de
transformação deve ser sistêmica”. Segundo ele, seu projeto não é utópico, orçado em
aproximadamente R$ 1 bilhão com duração de 20 anos. A boa notícia é que a ideia
já está sendo estudada pelo Departamento
Hidroviário da Secretaria Estadual de Transporte.
O problema é que além
dos modelos das
cidades que nós criamos não funcionarem pela questão estrutural, há também o
problema da filosofia do paulistano, que é a de abuso com o espaço social. Por
exemplo, é natural que o fumante jogue sua bituca no chão.
Quando questionado
sobre a questão da educação do homem após a execução do anel hidroviário,
Alexandre lamentou “Nós temos que acreditar na educação, no sentido amplo da
sociedade e da cidade educadora. Além disso, não podemos menosprezar a educação
formal: uma política pública que tenha objetivos claros da formação do cidadão.
Que dê essa visão de se colocar na posição dos outros. Essa bituca de cigarro,
ou o motorista que não enxerga o pedestre, são sinais de desconsideração,
descaso e falta de lucidez. Só a partir da educação o projeto será viável.”
Veja abaixo algumas projeções de como seria a cidade se o
sonho de Alexandre fosse também o nosso (FOTOS)
“A
sabedoria acompanha os rios”, provérbio japonês.
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