A tatuagem
e as mulheres: discutindo a relação
Uma pequena viagem
pelo mundo das mulheres tatuadas
Não existe uma data ou local exato para o surgimento das tatuagens. As
marcas na pele já foram encontradas em pessoas que viveram há mais de 5000
anos, também como egípcios e tribos sul-americanas. A origem mais aceita da
palavra tatuagem vem de “tatau”, o som produzido pelos instrumentos utilizados
na confecção da arte. Em quase todos esses casos, a tatuagem era uma forma de
marcar símbolos religiosos, rituais de passagem ou reverenciar a natureza.
Durante muitos séculos, foi considerada um adorno bárbaro, somente vista em
“humanos selvagens” ou aberrações de circo. Foi no final do século XIX que os
desenhos na pele também começaram a aparecer no mundo ocidental, principalmente
em marinheiros e prostitutas. Os marinheiros, por viajarem e conhecerem locais
distantes, acabaram aderindo esse tipo de arte para seu cotidiano.
A princípio, tatuagem era quase um carimbo de estereótipo: ela comprovava
a “vida boêmia”, afinal, os maiores adeptos estavam na margem da sociedade.
Essa característica foi tão aceita que em 1879 o governo da Inglaterra adotou a
tatuagem como forma de identificação de possíveis criminosos. Além do mais, o
processo de tatuar ainda era muito rudimentar: as máquinas motorizadas eram
precárias, não havia muita preocupação com a higiene e a tinta não era
específica para esses fins. Essa precariedade, querendo ou não, afastava muitas
pessoas que poderiam ter interesse em adquirir um desenho no corpo. No meio do século XX, roqueiros e rebeldes no
geral também começaram a pintar a pele, aumentando mais o público tatuado. Mas
foi depois de 1970 que realmente aumentou o volume de pessoas, com os hippies,
o classic rock e música psicodélica.
Mesmo com a popularização e melhoria das técnicas, a tattoo só começou a perder seu estigma negativo a partir da década
de 90, com o aumento dos estúdios de tatuagem.
Nas terras tupiniquins
No Brasil, a cronologia foi parecida, só que um pouco mais atrasada: os
estúdios pioneiros só sugiram a partir dos anos 2000, pois antes não havia
público interessado e nenhum tipo de regulamentação para esses
estabelecimentos. Portanto, só no século XIX a tatuagem começou a se tornar
trivial para os brasileiros. Beto, 41 anos, abriu seu estúdio Tattoo to the
Bone em 2002, em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo: “As primeiras
tatuagens que eu fiz eram só tribais. Eu perguntava para meus clientes como
eles tinham se interessado por aquilo, e eles me falavam que tinham visto em
filmes e achado tudo muito legal.” Ele ainda me conta que o público
predominante eram os homens, as mulheres só entravam no local para acompanhar
namorados ou amigos. “Teve uma moça que veio acompanhar o namorado, que ia
fazer um tigre na perna. Ela ficou olhando os desenhos que eu fazia no caderno,
falou que achava todos lindos, mas nunca faria. Duas semanas depois ela voltou,
decidida a tatuar uma estrela”.
Desde a introdução das tatuagens no mundo ocidental, o público menos
esperado para esse tipo de arte eram as mulheres. Nas tribos, as tatuagens eram
feitas em todos os integrantes, independente da idade ou sexo. No Egito Antigo,
as mulheres se tatuavam para aumentar a fertilidade, e, na Índia, uma tradição
secular é desenhar no rosto das mulheres para aumentar a beleza e paz de
espírito. Mas, na Europa do século XIX e XX, mulheres tatuadas eram um dos
maiores tabus sociais. Há registros de moças com o corpo inteiramente cobertos
de imagens desde 1890, porém grande parte delas era exposta como atrações
circenses.
Betty Broadbent, nascida em 1909, foi a primeira mulher a se tornar
tatuadora. Enquanto trabalhava como enfermeira, conheceu Jack Redcloud, um
rapaz repleto de tatuagens, e se encantou. Após fazer vários desenhos em seu
corpo, perdeu o emprego e sua única alternativa foi trabalhar em circos. Em
1957, decidiu que havia nascido para propagar a arte no corpo em outras
pessoas, comprou uma máquina e passou a trabalhar em um estúdio de Nova York.
Sua iniciativa e coragem fez com que se tornasse a primeira pessoa a entrar no
Tattoo Hall of Fame, o “Oscar” das tatuagens. No Brasil, a pioneira foi Hosani
Finotelli, mais conhecida como Medusa, que nos anos 70 abriu seu próprio
estúdio. “Já que não tem uma mulher tatuadora neste país, eu vou ser a
primeira. Agora será um desafio”. Até o final da década de 90, o estúdio era
basicamente frequentado por homens. Como já dito anteriormente, só no século XX
as mulheres começaram a se interessar pela arte na pele.
Décadas depois...
Hoje em dia, é muito fácil ver moças tatuadas. É só andar por São Paulo
em um dia de sol, e vemos fadas, estrelas, frases e animais estampados nas
peles femininas. Algumas são bem discretas, atrás da orelha, no pé ou no pulso.
Mas também vemos tatuagens grandes nas costas, ombros e canelas. Mariana, 20
anos, me conta que a caveira enorme que ela tem desenhado no braço é de uma
banda chamada Megadeth: “Sempre gostei de Megadeth, cresci ouvindo, meu pai é o
maior fã do mundo. Quando fiz 18, decidi homenagear eu e ele fazendo a caveira
que está na capa de um dos álbuns”. Já Rafaela, 19, diz que o símbolo celta que
tem no ombro representa o equilíbrio entre corpo, mente e espírito. Ambas as
tatuagens são grandes, em locais visíveis, e possuem significados fortes.
Jhonatas, tatuador do estúdio Tattoo to the Bone, conta que quase todas
as mulheres que já tatuou acabaram marcando algo que tivesse um grande
significado para elas. “Homens muitas vezes fazem tribais, animais, desenhos
voltados só para a estética. Mas também já tatuei moças que queriam fazer só
uma estrela no pulso, por exemplo. Uma estrela não tem significado algum”.
Enquanto isso, Raphael, dono do Conviction Tattoo, acha que o motivo para fazer
uma tatuagem é muito pessoal e não pode ser medido pelo sexo: “Tatuei marmanjo
de 50 anos com uma frase para a esposa ou a filha, como também tatuei desenhos
ditos masculinos em meninas de 18 anos. Antigamente, essa diferença até poderia
existir, mas hoje não mais”.
A arte na pele se popularizou tanto que os parâmetros de “desenho para
mulher e para homem” não existe mais. Bruna, de 25 anos, tem mais de dez
imagens no seu corpo, e todos eles com temas e significados variados. “O tigre
que tenho na minha perna estava no caderno de desenho para homens, quando
decidi fazer, até o tatuador perguntou se eu tinha certeza”. Já a frase escrita
em sua coxa ‘With no sense or reason’,
vem da lenda do Cavaleiro sem Cabeça, e explica o seu modo de agir. “Muitas
vezes eu só ajo, não penso e nem pondero. Quase sempre dá certo (risos).” Até
mesmo ela, que ousou ao tatuar um desenho tipicamente masculino, também gravou
em seu corpo algo com significado.
Confiança
Significados, tamanhos, desenhos... todos esses aspectos são variáveis e
muito pessoais. Mas uma coisa é certa: todas as moças entrevistadas estavam
muito confiantes em relação às suas tatuagens. “Não é que eu me sinto mais
bonita, mas eu me sinto mais confiante e muitos veem isso de forma atraente”,
confidencia Rafaela. Em todos os casos, as imagens foram muito bem
selecionadas, após meses ou até mesmo anos de ponderação: afinal, tatuagem é
para a vida toda. Beatriz Tabosa, 22 anos, tem três desenhos nos braços e diz
que se sente melhor com o seu corpo por conta disso: “Sempre quis fazer, ficava
imaginando como meu corpo ficaria todo colorido, contando uma história. Me
senti completamente realizada quando terminei minha primeira tatuagem, comecei
a me sentir bem comigo mesma.” Os homens também gostam de mulheres tatuadas.
José Monaco, namorado de Beatriz, completa: “Eu sempre achei lindo mulher
tatuada, para mim é a maior prova de que elas são determinadas e confiantes
consigo mesmas.”
O outro lado
O preconceito ainda existe, mesmo menos presente no cotidiano. Algumas
empresas ainda não admitem funcionários com tatuagens grandes ou muito
visíveis, e grupos conservadores abominam a ideia de “vandalizar” o corpo
humano. Mas as mulheres ainda são o maior alvo de críticas. “Já ouvi muito
homem falando que eu era muito delicada para ter uma tatuagem, ainda mais uma
caveira” conta Mariana. “A grande maioria das artes que vemos nas mulheres são
pequenas, femininas, as que decidem fazer maior sofrem muito preconceito e é
vítima de olhares reprovando.” Beto fala que, uma vez, uma moça entrou em seu
estúdio e viu os quadros que ele tem pendurado nas paredes, com fotos de
mulheres tatuadas. Horrorizada, ela disse que mulher tinha que se dar o
respeito, e não sair por aí fazendo tatuagem, como as prostitutas. Muitas
vezes, o preconceito está dentro delas mesmas.
Por mais disseminada que a
tatuagem esteja, muitos ainda não aceitam ou não tem vontade de fazer. Mariana
Soares, 26 anos, diz que já pensou várias vezes na possibilidade, até chegou a
juntar o dinheiro necessário, mas desistiu. “Eu acredito que nada nessa vida é
pra sempre. Hoje, estou em um emprego que libera tatuagem sem problema. Mas, e
amanhã? Tirando que enjoo fácil, é capaz de eu tatuar alguma coisa e dois meses
depois já estar desesperada para tirar. Eu fico cansada até de cor de cabelo!”.
Pessoas mais velhas também tem dificuldade em engolir a arte na pele,
principalmente em mulheres. Perguntei para um senhor, que não quis me dar seu
nome, o que ele achava de moças com tatuagens e ele me disse que era
simplesmente abominável. “Parece sujeira, mulher tem que ser limpa, com a pele
bonita... aquela coisa [tatuagem] estraga o que tem de mais bonito”.
Independente dos preconceitos,
dos motivos, tamanhos, temas, locais do corpo, idade, sexo, raça, classe social
e todas as outras possíveis variações, tatuagem é e sempre foi uma das formas
mais honestas e claras de se manifestar. Por mais que uma flor não tenha um
significado tão explícito quanto tatuar a palavra ‘Família’, a flor continua
sendo uma forma de se mostrar e expressar. Os indígenas contavam suas
realizações através de desenhos no corpo, e indianas mostram seu desejo de
alcançar a paz espiritual ao tatuar pontos no rosto. Não importa a época, ou o
lugar, mas marcar a sua pele permanentemente é a maneira mais fácil de auto
explicação para os outros. Pode acontecer de a sua manifestação ser mal
entendida, ou até desprezada, mas ela nunca passará em branco.
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