O admirável mundo comum
No
dia 12 de janeiro de 1913, na cidade de Cachoeira do Itapemirim no Espírito
Santo nascia Rubem Braga uma figura que prometia mudar os rumos da crônica
brasileira. Filho de Raquel Coelho Braga e de Francisco Carvalho Braga, a
tendência para a escrita já acompanhava a família. Seus irmãos Armando de
Carvalho Braga e Jerônimo Braga fundaram na cidade o jornal Correio do Sul em 1928, local onde
obteve seu primeiro emprego aos 15 anos.
Com
essa mesma idade ele começou a produzir crônicas diárias para o jornal Diário da Tarde. Embora não ter exercido
a profissão, Rubem Braga formou-se bacharel em direito pela Faculdade de
Direito de Belo Horizonte em 1932. No mesmo ano, como repórter, trabalhou na
cobertura da Revolução Constitucionalista, que tinha como objetivo a derrubada
do governo provisório de Getúlio Vargas. Uma resposta dos paulistas à Revolução
de 1930. Braga trabalhou para os Diários
Associados, o grande conglomerado jornalístico de Assis Chateaubriand que
originaram as extintas e famosas TV Tupi
e revista O Cruzeiro. Chegou a ser
preso na Revolução. A vida no jornalismo
continuaria, ele escrevia crônicas para O
Jornal antes de mudar para Recife. Na capital pernambucana passou a
escrever para o Diário de Pernambuco.
Em
1935, na cidade, entrou para a chefia da Folha
do Povo. Foi um jornal fundado por Osório de Lima e José Cavalcanti. Rubem
Braga, na época, ainda era repórter do Diário
de Pernambuco e aceitou receber um salário menor para assumir a chefia de
reportagem. A publicação adotou o lado
da Aliança Nacional Libertadora (ANL), que foi uma organização fundada pelo
Partido Comunista Brasileiro (PCB) e sua luta era contra o integralismo,
fascismo e imperialismo. O veículo foi fechado quatro meses após sua
inauguração. O fechamento ocorreu durante o processo de repressão à Intentona
Comunista (tentativa de golpe contra o governo Vargas em 1935 pelo PCB). Apenas
dez anos mais tarde a Folha do Povo
voltaria a circular integrando o grupo de jornais do Partido Comunista
Brasileiro. Junto com ele eram mais sete jornais que compunham a rede jornalística
do PCB e estavam distribuídos nos principais centros urbanos do país como
Salvador, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Apesar de não contar com grandes
recursos, a publicação teve um grande papel na formação e representação das
minorias, grupos sociais que geralmente são excluídos, como os trabalhadores
rurais, as donas de casas, os operários e outros setores populares. A Folha do Povo contribuía para a
construção de uma visão fora do padrão sobre o cotidiano social. O editorial de
abertura do jornal dizia: “(...) agitaremos com especial
atenção, o problema da mulher e da criança, grave e delicado problema, quando
verificamos, constrangidos, o aumento assustador da prostituição, da
mendicância, e da mortalidade infantil no Recife, em outras capitais e no
interior nordestino. As questões da educação da mocidade e todas as outras que
interessam vivamente ao nosso meio social, nós a colocaremos em foco. (Folha do Povo, 10 de julho de 1935).
As
perseguições, constantes ameaças e prisões dos jornalistas fez com que Rubem
Braga refletisse sobre sua permanência no jornal. Escolhido para cobrir o
Centenário da Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul, ele optou por
permanecer no Rio de Janeiro. No entanto continuou enviando crônicas diárias
para o periódico. As crônicas foram publicadas depois no seu livro O Conde e O Passarinho, de 1936. A
pequena equipe do jornal continuou em Recife seguindo a mesma linha editorial.
No final de novembro ocorreu o fechamento definitivo com a repressão à
Intentona Comunista. Agentes da Diretoria de Ordem e Política Social (DOPS)
ocuparam a redação. A passagem de Rubem Braga por Recife pode ser exemplificada
em um trecho da sua crônica: “passei um domingo na praia de Boa Viagem e uma
noite na cadeira (...) Fui à festa dos Montes Guararapes e trabalhei no jornal
mais quebrado do mundo”.
Braga já manifestava oposição ao
Estado Novo em suas publicações desde o início dos anos 1930. Foi preso algumas
vezes durante o período, fato que o forçou a migrar diversas vezes por várias
cidades brasileiras.
No
ano seguinte do lançamento da Folha do
Povo, em 1936, dois acontecimentos marcariam o resto de sua vida: o
cronista se causou com Zora Seljan, mãe de seu único
filho, Roberto; lançou o
livro O Conde e o Passarinho.
A
crônica que dá título ao livro começa com a seguinte frase: “A minha vida
sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser conde”. A frase pode ser
associada ao perfil do autor e sua contribuição às “letras brasileiras”: um
legado literário redigido em linguagem simples e textos curtos, além de um
temperamento introspectivo e solitário.
O
escritor e jornalista Ruy Castro expõe que “com toda a famosa casmurrice, era
um homem encantador, e, ao vivo, tão econômico com as palavras quanto escrevendo”. Na visão de
Ruy Castro, a maior participação de Rubem Braga para a crônica brasileira foi
mostrar que não há tema que o gênero não consiga se adaptar e transmitir a
mensagem.
Desde o assunto visto como insignificante, pode virar um grande tema.
Visto como umas das principais lições do jornalismo, Braga mostra frequentemente
em suas crônicas que nada é sem importância, apenas é mal abordado. A sua
economia nas palavras o faz ir direto ao assunto, o que aproxima o texto do
leitor sem a erudição presente na academia.
Pode-se pensar que o jornalismo e
sua objetividade influenciou a construção dos textos do autor, refinando ainda
mais o seu estilo econômico.
Sutil
e bem-humorada, a escrita minimalista de Braga invade o íntimo das pessoas,
onde muitas vezes realiza críticas sociais de impacto. O professor de
Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Eduardo de
Faria Coutinho expõe que a técnica de Rubem Braga é dar uma aparência de pouco
valor aos fatos presentes no mundo real, encolhendo-os como um pretexto para a
divagação pessoal. Entre as crônicas do escritor, há frequência de temas como a
solidão, a morte, o amor, a infância e questionamentos existenciais. Assim como o jornalismo, a crônica é nutrida
por assuntos instantâneos, o que permite alcançar leitores de todos os perfis. Em
1938, ao lado de Samuel Wainer e Azevedo Amaral, fundou a revista Diretrizes.
Luiz Antônio de Souza é fã
assíduo das crônicas do velho urso (apelido auto intitulado por Braga). O
sexagenário vive na cidade de Santos, litoral de São Paulo e na sua visão, o
escritor é um artista “de primeira” já que consegue transpor no papel a
complexidade do homem em simples palavras. “As palavras são simples, mas o
conteúdo denso”, ressalta Luiz.
O
representante de embalagens teve contato com as crônicas de Rubem Braga desde a
sua infância por influência de seu pai, Tenisson José de Souza. Ele afirma: “eu
identifico minha própria vida nas suas crônicas. Eu também sou um homem calado
que observa mais e fala menos e muitas vezes sou incompreendido por isso,
talvez seja por isso que me encanta sua figura e sua obra”.
Ao
responder qual seria sua crônica preferida, os lábios se contraíram, os olhos
encheram de água e seu olhar se fixou. Passaram longos dois minutos e Luiz
ressaltou: “Eu li Rubem Braga durante muitos anos da minha vida e a cada época
dela tive uma crônica preferida.
Agora no momento, a minha favorita é Um Braço de Mulher.” Na crônica o autor
fala da morte e revela a saudade da vida. “Agora, na velhice, penso
constantemente na minha vida, na minha contribuição para o mundo, na minha
família, no que eu construí e vejo em tudo isso um aspecto positivo. Me vejo
como o escritor, em uma viagem longa contemplando a vida, a minha vida”.
O homem da rua
A revista Diretrizes possuía o
subtítulo: Política, Economia e Cultura
e surgiu logo após a instauração do Estado Novo. Tendo como fundadores Azevedo
Amaral e Samuel Wainer, circulou até julho de 1944. Rubem Braga participava
escrevendo crônicas para a seção O homem
da rua. A revista possuiu três fases, onde a última assumiu posição
política contrária ao Estado Novo, ao fascismo e ao nazismo.
Diretrizes
contou com intelectuais, literatos e jornalistas renomados para compor sua
lista de colaboradores. São alguns nomes: Joel Silveira, Graciliano Ramos, José
Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Aníbal Machado, Jorge Amado e vários outros.
No entanto se destacou a seção escrita por Rubem Braga.
O homem da rua abrigou crônicas
publicadas entre abril de 1938 e outubro de 1939. As crônicas abordavam
questões cotidianas e temas como decepções amorosas, o carnaval, praias do Rio
de Janeiro. E no seu estilo, Braga trata de um tema e conduz o leitor a um
outro tema de maior complexidade, embora nem sempre percebido. A revista foi
tirada de circulação em 1944 por ordem do governo.
Nesse
mesmo ano, 1944, o autor publicou O Morro
do Isolamento, seu segundo livro. Logo após a publicação, já em 1945, Braga
se tornou correspondente de guerra do Diário Carioca na campanha da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) na cidade italiana de Monte Castelo.
A
experiência resultou no livro Com a FEB
na Itália. A obra contém textos focados no cotidiano dos soldados. Ao invés de expor a guerra como um espetáculo
grandioso, como na maioria das coberturas, o autor mergulhou no universo dos
homens ali presentes.
De
volta ao Brasil, o cronista se fixou no Rio de Janeiro, onde escreveu mais
crônicas e críticas literárias para diversos jornais como o Jornal Hoje, da Rede Globo; Folha da Tarde, Folha da Manhã e mais tarde para a Folha de S. Paulo. Em 1947 foi enviado para Paris como
correspondente do Globo. Retornando a
capital francesa em 1950 pelo Correio da
Manhã. Três anos mais tarde iniciaria sua carreira diplomática sendo
nomeado Chefe do Escritório Comercial do Brasil em Santiago. Publicou Ai de Ti Copacabana em 1960 e em seguida
A Traição das Elegantes (1967), Recado de Primavera (1984) e entre
outros.
Entre 1961 e 1963, Braga foi
embaixador do Brasil no Marrocos. Ao retornar ao seu país, junto com os
escritores Fernando Sabino e Otto Lara Resende, fundou a editora Sabiá, que
trouxe ao público brasileiro grandes nomes da literatura estrangeira como
Gabriel Garcia Márquez, Pablo Neruda e Jorge Luis Borges. Na década de 1980 o
escritor colaborou com o caderno cultural Folhetim
da Folha de S. Paulo.
Rubem
Braga adquiriu um tumor na laringe e preferiu não tratar, fator que levou ao
seu falecimento aos 77 anos em 19 de dezembro de 1990. No ano seguinte de sua
morte, a Secretaria da Cultura de Vitória criou a Lei Rubem Braga (nº
3.730/1991) que concede incentivos fiscais às empresas da cidade que financiam
projetos culturais. Em Cachoeiro do Itapemirim, a casa da família Braga é
aberta para visitação fazendo parte do trajeto turístico da cidade.
O
autor deixou um legado de mais de 15 mil crônicas escritas durante os 62 anos
da sua vida dedicados ao jornalismo.
Um pouquíssimo de Braga
O Pavão – crônica do livro Ai de ti, Copacabana
Eu considerei a glória de um pavão ostentando
o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e
descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há
pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta,
como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes
com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande
mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele
suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos
recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
O Conde e o Passarinho – crônica do livro O Conde e o Passarinho
Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando
pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas.
Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro
que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem
trocadilho).
Ora, aconteceu também um passarinho. No parque
havia um passarinho. E esses dois personagens – o Conde e o passarinho – foram
os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.
Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde
e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada.
Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta
e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas,
barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários,
dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde
gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial,
e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é
Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um
passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.
Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho,
não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.
Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida
sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os
Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais.
Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se
confundirão na morte.
Entendo por vida o fato de um homem viver fumando
nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem
assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao
motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do
paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um
coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar
o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.
Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma
turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no
relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O
motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas
funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.
Desde aquele momento perdi o respeito por todos os
motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A
vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um
urubu, meu velho Rubem?
Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde
estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu
patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o
passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde
Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava
para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não
eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho
desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não,
ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era
apenas um passarinho.
Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a
medalha.
O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça.
Ora essa! Que passarinho mais esquisito!
Isso foi o que o Diário de São Paulo contou.
O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que
peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do
Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para
o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.
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