Quem nunca colecionou
que atire a primeira moeda
Criado
com o intuito de atribuir valor a um bem, o dinheiro é o símbolo de troca
atual. Substituindo a prática do escambo, no qual uma mercadoria era trocada
por outra, moedas e cédulas são as mediadoras do processo de compra e venda de
bens e serviços. Desde o reinado de D. Pedro II diversas moedas circularam no
Brasil, como os cruzeiros e cruzados. Ao mudar o dinheiro do país, as antigas
cédulas e moedas em curso perdem seu valor monetário e, assim, são descartadas
pela população. Porém, há muitos que se interessam pelo obsoleto e atribuem a
ele valores atemporais: o histórico e o sentimental. É o caso dos
colecionadores.
Para eles, tudo pode ser motivo de
contemplação: selos, revistas, brinquedos, discos, carros ou o que a imaginação
permitir. Colecionar, segundo o dicionário é o ato
de reunir, armazenar e acumular em coleção. Considerada uma prática cultural
que desenvolve o aprendizado, o colecionismo ultrapassa a barreira do ‘hobby’ e
atinge o patamar de ciência. Transmitida geneticamente ou adquirida durante a
vida, a vontade de colecionar não depende de gênero, classe social ou faixa
etária. As coleções particulares foram essenciais para o surgimento dos grandes
acervos mundiais, inclusive as de moedas e cédulas antigas.
A
ciência que estuda as moedas chama-se Numismática, embora o nome seja
empregado, atualmente, ao ato de colecionar tais objetos. Praticada pelos
aristocratas do Império Romano, essa arte possui um grande valor de testemunho
histórico. O que para alguns é considerado apenas um instrumento de troca, para
outros, o dinheiro antigo é o responsável por abranger os mais variados campos.
Através dele é possível estudar brasões, inscrições antigas, civilizações, a
evolução da arte e do metal, a história e a geografia dos países, além da economia
de cada época.
Colecionar moedas e cédulas é o mesmo que ter uma fonte
inesgotável de informação. Por meio da Numismática pode-se passear pela
história, resgatar memórias perdidas e eternizar o passado. O
colecionismo permite o acúmulo de valores que, consequentemente, gera riqueza,
seja da natureza que for. O sujeito que
coleciona vê valores muitas vezes despercebidos pela maioria das pessoas. Dessa
forma, é inevitável para o colecionador a vontade de transmitir seu
legado aos filhos e netos. O incentivo familiar geralmente é fator
preponderante para despertar o interesse e a paixão pela arte de acumular.
Anualmente
ocorre o Congresso Brasileiro de Numismática. Famoso pela quantidade de peças
raras expostas, colecionadores do Brasil inteiro se reúnem com o intuito de
completar a coleção ou em busca de um bom negócio ao vender moedas únicas. Em
sua 26ª edição, o Congresso aconteceu no final de novembro do ano passado e
apresentou artigos curiosos: moedas com cheiro, com imagens holográficas, em
forma de guitarra e carros antigos. Além das novidades, raridades como a
primeira moeda cunhada no mundo e cédulas com e sem defeitos estavam entre as
mais procuradas. Embora o Congresso seja o evento que reúna a maior quantidade
de colecionadores, semanalmente ocorrem encontros entre eles por meio de
feiras.
Garimpando
história em São Paulo
Desde 1982 os domingos são agitados na Praça Dom Orione,
localizada na região da Bela Vista. Inicialmente presume-se que o motivo de tal
alvoroço sejam as tradicionais e apetitosas cantinas italianas do Bixiga. No
entanto, o mérito é da Feira de Antiguidades, conhecida pela diversidade das
quinquilharias vendidas. José de Almeida, colecionador há 16
anos, visita a Feira do Bixiga ao menos duas vezes por mês. Apaixonado por
história, o administrador de 38 anos se interessou pela Numismática por
intermédio de um colega de trabalho. “É uma arte que traz desafios. Uma pessoa
pode achar que conseguiu acumular todas as cédulas de cruzeiro, por exemplo,
mas descobre que há 14 variações na [cédula] de cinco cruzeiros”, relata.
Há
quem colecione por temas como, por exemplo, países, épocas, pelo tipo de valor
da cédula ou por ministros. José de Almeida coleciona exclusivamente cédulas e,
atualmente, sua coleção tem cerca de 800 exemplares. Enquanto procura novas
peças numa pasta exposta, diz: “Tenho cédulas de Portugal, da Argentina, da
França, da Espanha e de muitos outros países”. Todo ano, José viaja para o exterior
e aproveita a oportunidade para adquirir novas cédulas velhas. Seus filhos de
cinco e oito anos normalmente viajam com o pai e já demonstram interesse: “Eles
me perguntam o porquê das cores, formatos e imagens”, conta com um orgulho
típico de pai.
Semanalmente
colecionadores e apreciadores de artigos retrô reunem-se também no coração de
São Paulo. Localizada no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (MASP), a
Feira de Antiguidades da Paulista é conhecida por aglomerar aos domingos cerca
de cinco mil visitantes. Organizada em fileiras, a eclética Feira é formada por
barracas que vendem as mais variadas peças, desde miniaturas, porcelanas, joias
e tapetes até raríssimas moedas e cédulas. Há visitantes de todas as idades,
embora a maioria seja composta por famílias. No ambiente, o novo e o velho
coexistem: cédulas de real são trocadas por objetos ou por moedas centenárias,
enquanto adolescentes dividem o espaço com senhores saudosistas.
Acompanhado
de sua mãe, Leandro Antunes comprava sua primeira moeda com o intuito de dar
início a sua coleção. Andando por entre as barracas do vão livre do MASP, o
garoto de 14 anos não sabia explicar como nasceu o desejo de colecionar, mas
garante que acumulará o máximo de moedas que puder para mostrar à próxima
geração da sua família. Karla Antunes, mãe do estudante, considera importante
incentivá-lo a entrar no mundo da Numismática: “Não temos nenhum colecionador
na família que tivesse mostrado a ele alguma moeda antiga. Acho interessante
porque a vontade partiu dele, não foi algo imposto”, relata.
Dono
de uma das tendas mais agitadas da Feira de Antiguidades da Paulista, Tony Yan
exibe sua vasta e rara coleção. Centenas de moedas e cédulas, preservadas em
plásticos e catalogadas em grandes pastas, despertam a curiosidade de quem
passa. Aos 66 anos de idade, Tony enche-se de orgulho ao contar que coleciona
desde os oito anos. A paixão pela Numismática veio de família: tanto o avô
quanto o pai eram ávidos colecionadores. Perguntado sobre o perfil dos que se
interessam por dinheiro antigo, Tony é enfático: “A grande maioria são homens
pelo fato de eles pensarem em patrimônio, ao contrário das moças”.
Para
ele, colecionar pressupõe cultura e resulta numa ampliação do conhecimento,
pois as moedas e cédulas carregam consigo mais informação do que os leigos
possam supor. No entanto, ao longo dos anos, Tony Yan vem observando uma
transformação no mercado. “Houve uma mudança negativa, a juventude atual é
menos culta e não se interessa por assuntos relacionados à cultura geral. Só
querem status social”, desabafa. O experiente colecionador e vendedor relata
que muitos se aproximam de sua banca por curiosidade: “Eles querem uma moedinha
simples para recordação, não compram peças caras. Dificilmente alguém vem aqui
para adquirir uma cédula que só eu tenho e que, por isso, é cara”.
Em
uma barraca próxima a de Tony, Thiago Juarez traz consigo um saco cheio de
moedas antigas. O economista de 29 anos negocia com o dono da tenda, um senhor
de 63 anos que insiste em não atender a proposta inicial de Thiago. “Faz três
semanas que estou tentando vendê-las. Não achei que os compradores seriam tão
exigentes”, conta decepcionado. Thiago herdou as moedas de seu avô e a partir
dos 10 anos se interessou pela Numismática. Manteve a coleção familiar até o
momento em que percebeu que o colecionismo exigia tempo, dinheiro e paixão e,
não possuindo nenhum dos fatores em quantidade suficiente, optou pela venda das
moedas.
O
outro lado da moeda
O
senso comum idealiza o colecionador: todos são eternos apaixonados que, em
busca do artigo mais raro, tornam-se capazes de gastar fortunas. Mas nem só de
paixão vive o homem. Pelo ponto de vista comercial, a Numismática é também uma
forma de investimento e de reserva de valores. A cada ano uma moeda ou cédula
antiga tem seu preço elevado. Sendo assim, colecionar passa a ser não só uma
paixão, mas uma forma de investimento. Apesar do amor que sente pelo
colecionismo, Tony Yan admite que seja também uma maneira de aplicar dinheiro.
De acordo com ele, a Numismática “é tanto paixão quanto investimento, pois
dentro do colecionismo se procura as peças mais raras pensando na satisfação
pessoal, mas sem esquecer a valorização que sofrerá ano após ano”.
Já o colecionador José de Almeida é mais apegado a sua
coleção: “Recebi algumas propostas, mas não penso em vender cédula alguma.
Dinheiro nenhum é capaz de comprar a história que cada uma delas carrega”. Ao
longo dos anos, o experiente Tony relata que muitos de seus clientes compravam
pensando somente no investimento. Ele diz que a lógica desses investidores é
simples: “Economizando uma pizza por mês, eles conseguem comprar moedas de
grande valor no final do ano. Com isso, as vendem após certo tempo e dão
entrada num carro, por exemplo”. O vendedor explica que há moedas que custam
400 mil e até um milhão e meio de reais. Para ele, torna-se difícil pensar
somente na paixão quando uma única moeda vale um apartamento de luxo.
Colecionar:
uma arte elitista?
Leigos normalmente têm a impressão
de que colecionar é uma atividade cara. Ao contrário do
que se imagina, a Numismática é, de certo modo, democrática. O colecionador
escolhe o foco de sua coleção e pode optar pelas moedas e cédulas mais caras ou
não. O jovem Leandro Antunes, colecionador primário, busca as moedas de menor
valor e não encontrou dificuldade em achá-las. Segundo a mãe de Leandro “tem
para todo tipo de bolso. Não ser milionário não impede ninguém de se tornar
colecionador.”
O comerciante e colecionador Tony Yan compartilha da
mesma opinião. Para ele, é uma questão de prioridade pessoal. “Uns acumulam
dinheiro e compram roupas e carros caros enquanto outros, possuindo cultura,
preferem a Numismática”, ressalta Tony. Embora qualquer um possa adentrar ao
mundo das moedas e cédulas antigas, as raras são preferência dos mais endinheirados.
Em sua tenda, Tony Yan mostra uma coleção de moedas limitadas feitas em
homenagem às plantas mais conhecidas do mundo. São moedas com cheiros que
representam, por exemplo, a palmeira e a maconha. Quando questionado sobre a
moeda mais rara que possui, Tony Yan é enfático: “[a mais rara] é a que eu não
tenho”.
Colecionar
é diversão séria. Numa época de instantaneidade, em que o novo torna-se
obsoleto em fração de segundos, ainda há quem se interesse pelo velho. A
fugacidade dos tempos contemporâneos não impede que alguns acumulem um dinheiro
cujo valor, teoricamente, foi perdido. Seja por sentimento ou por lucro, os
colecionadores fazem muito mais do que acumular velharias em desuso: conservam
fragmentos do passado e possibilitam uma melhor compreensão do presente.
Definitivamente, é uma paixão que vale muito.
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