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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Reportagem Especial - Maria Anne Bollmann



Ficção: aliada e inimiga

A ficção tem condições de mexer com o nosso imaginário e aguçar o desejo de mudar... Mas nem sempre para melhor.





Desde a infância, e por toda a vida, temos a companhia do mundo ficcional. Livros, filmes, quadrinhos, séries de televisão, jogos... Tudo contribui para construir o imaginário de cada um. É claro que alguns já se provam imersos nos prazeres do mundo ficcional desde a infância, mas o mais comum é que esse interesse se dê mais tarde, na adolescência, época em que essa tendência é mais perceptível. Por ser uma fase de transição, o choque entre o real e a fantasia é muito mais intenso, para bem ou para mal.
A psicóloga clínica Zenaide Braz da Silva acredita que o confronto da ficção com a realidade “ocorre numa configuração estruturada que, por um lado, pode constituir numa reflexão de aquisição de novos valores e conceitos e que, por outro, por algumas variáveis psicológicas, sociais e culturais, pode debilitar a capacidade do indivíduo de discriminar fantasia de realidade”. Em outras palavras, a ficção pode ser enriquecedora para a psique do ser humano tanto quanto pode ser perigosa em sua influência.
A estudante de Direito Carolina Sgorlon, de 19 anos, é uma daquelas pessoas que sempre gostou de ler: “desde pequena, pegava gibis e tentava ler, só pelas figuras, sem nem saber ler ainda”. Ainda na infância, Carolina foi apresentada ao universo dos mangás e animes, os quadrinhos e desenhos animados japoneses, respectivamente. “(...) a paixão aumentou ainda mais quando conheci meninas que tinham o mesmo gosto que eu. (...) Isso me deixou muito feliz, ainda mais que a amizade se manteve”. Esse contato permitiu que ela visse a realidade com outros olhos: “posso dizer que, por causa de crescer vendo animes e lendo mangás, muitos conceitos foram diferentes pra mim, entende? Não via graça em sair loucamente só pra ‘causar’. Nunca fiz isso e não me arrependo de ter feito”. Ela também destaca sua gratidão: “essa adoração me fez procurar fazer as coisas do jeito ‘certo’, encontrar as pessoas certas”. Depois de alguma consideração, sorri e continua: “outra coisa importante é dizer a verdade, né. Por pior que ela seja, a verdade é melhor do que viver em uma mentira”.
Outra que foi contagiada pelo mundo ficcional japonês desde cedo foi a estudante Bruna Burin. Para ela, muitos ensinamentos vitais vieram dali: “eu aprendi a julgar menos as pessoas (...), percebi que às vezes alguém com características físicas delicadas, aparentemente frágil e sem defesa, pode se mostrar manipulador e de mente cruel. Assim como que pessoas de personalidade fria podem ter um grande coração. Também me ensinaram a ser ‘eu mesma’, sem me preocupar muito com a opinião dos outros e correr atrás do que eu realmente acho importante, para não me arrepender depois”.
A psicóloga Zenaide complementa: “a ficção proporcional um entrelaçamento com a história de vida que contribui para a construção da nossa identidade”. Carolina e Bruna são dois exemplos de influência positiva. Vale destacar que essa paixão das duas, inicialmente apenas por quadrinhos e desenhos animados japoneses, se transformou também em interesse literário. Carolina leu vários clássicos e sempre está atrás de mais um. O “Morro dos Ventos Uivantes” foi um dos que ela mais gostou até agora. Já Bruna encontrou mais estímulo em livros que são adaptados para o cinema, como a obra “Um dia”, de_, produzido para as telonas por _ e contando com Anne Hathaway e X nos papeis principais.

Infelizmente, por a adolescência ser uma fase complicada, há muitos amantes do mundo ficcional que acabam sendo discriminados por seus hobbys. A estudante de Programação Ana Júlia*, de 18 anos, é um exemplo. “Às vezes eu sinto que, por gostar de games, as pessoas automaticamente pensam que eu sou uma esquisita inútil”, comenta. O estudante de Design de Games Gabriel Barros*, de 20 anos, também reclama: “é um saco seus amigos ficarem te enchendo só porque você, de vez em quando, prefere passar seu domingo à noite com o seu PlayStation do que com eles”.

De acordo com a psicóloga, “a pessoa estabelece um distanciamento da realidade, experimentando todos os tipos de possibilidades que, em sua vida cotidiana, não poderia; elas só têm sentido na relação estabelecida pela narrativa”. Explicando melhor: pelo fato de o mundo ficcional proporcionar experiências novas que, muitas vezes, são impossíveis de serem vividas no cotidiano, ele pode se tornar viciante. E, na adolescência, é o momento onde se corre maior risco.

A administradora Margarida Nunes*, de 49 anos, relembra: “quando eu era criança, vivia com o nariz enfiado nos livros. Quando eu conheci a mulher que viria a ser minha melhor amiga até hoje, eu lembro que ela me olhou com desconfiança e disse que já tinha lido ‘O Capital’ (Karl Marx). Eu fiquei olhando para ela e pensei: ‘nossa, que chato’. Anos mais tarde, ela confessou que foi mentira, mas que ela me achava tão metida por eu ler tanto que decidiu ‘dar o troco’.” É um exemplo de vício que o mundo ficcional pode ocasionar.

Zenaide justifica: “a interpretação que um indivíduo fará da ficção proporcionará o sentimento de construção e significado, ou seja, a pessoa poderá reproduzir no mundo real as situações da ficção e trazer isolamento e introversão constantes. A ficção se torna a única maneira de manifestar emoções de superação de limites e coragem para enfrentar situações conflitantes. Assim, pode criar um vício de necessitar mais do convívio com a ficção do que com a realidade”.

Margarida se encaixa ainda mais nesse exemplo: “eu tinha dificuldade para fazer amigos, era muito exigente. (...) eu sentia que os livros me entendiam; aquelas crianças que estudavam comigo, que eu conhecia, não me faziam falta. Mudei mais só perto de entrar na faculdade, que fui morar sozinha”.

Ana Júlia também teve suas desventuras com o mundo ficcional: “eu era mais extrovertida quando era pequena. Eu cresci, comecei a gostar de mangás, animes, games e tal e fui ficando mais tímida, mais contida. É claro que tiveram outras coisas que também me fizeram mudar, mas eu vi que a realidade nem sempre era tão interessante”.

As entusiastas Carolina e Bruna também sofreram com desilusões. Carolina lamenta: “uma promessa é mais válido pra mim que qualquer documento. É a palavra da pessoa, a consideração dela cumprir essa promessa por mim, pelo nosso relacionamento, seja qual for. Se acontece de alguém que eu considero muito quebrar uma promessa comigo, eu fico mais do que acabada; fico decepcionada, custo a acreditar que aconteceu e sofro muito”. Bruna também pondera: “é complicado analisar nossos próprios defeitos, mas acho que a maior desilusão que eu tive foi perceber que há muitas pessoas realmente más e com isso veio aquela ‘desesperança’ na humanidade. Até onde a ambição pode fazer alguém chegar, sabe?”.

A psicóloga Zenaide, porém, contra argumenta: “o mundo ficcional também tem essa função, de ilustrar a realidade. Muitas vezes uso a ficção para exemplificar atitudes positivas e reforçar as negativas na construção da personalidade, valores e conceitos dos pacientes. É algo mais fácil porque a bondade e a maldade são polos extremos e eles entendem melhor a dimensão de suas ações, boas ou más. Na ludoterapia (terapia infantil), são muito usados os velhos e atualíssimos contos de fadas, fábulas e estórias em quadrinhos. A criança se coloca no lugar da personagem que gosta e compreende o que fez ou precisa fazer com mais facilidade”.

Mas afinal, o mundo ficcional é bom ou é ruim?

A reposta é simples e incerta: depende. O mundo ficcional pode ser influência positiva e negativa com a mesma intensidade; apenas o imaginário de cada um é que dirá qual delas será a dominante. Quem nunca se identificou com alguma personagem cuja descrição de personalidade encantou e influenciou o comportamento futuro?

Ana Júlia sorri ao pensar na pergunta: “uma vez, li um livro e cismei que seria pirata. Com direito a alto mar, chapéu, tapa-olho, papagaio e tudo. Eu devia ter uns 12 anos, nem era tão nova assim. A personagem principal do livro era simplesmente tudo o que eu sempre quis ser e me esforcei para seguir os bons exemplos dela”.

Carolina, além de concordar, ainda defende os amantes do mundo ficcional: “odeio essas pessoas preconceituosas que dizem que quem gosta dessas coisas (livros, games, mangás e animes) não tem vida social ou emocional. Eu tenho um namorado perfeito, amigas que são como irmãs pra mim e uma relação com minha família que, apesar de meio doida, é boa. Fico muito feliz em ter conhecido esse mundo mágico, repleto de sentimentos, arte, alegria e amor. Ele só me fez melhor, me fez crescer bem e construir o meu próprio mundo, de verdade agora”.

Até Zenaide não pode contestar esse argumento. “Eu particularmente acho fantástico como a ficção se forma nos diferentes tempos que vive. (...) posso afirmar que a construção d aminha personalidade e a escolha da minha profissão foram adornadas pelo confronto entre realidade e ficção. (...) É interessante também que a mesma obra adquire significados diferentes. Por exemplo, você pode ler  um livro ou assistir a um filme com 15 anos e depois, aos 30 anos, e ter uma nova perspectiva de aquisição de conceitos e valores daquela obra”.

O mundo ficcional é uma caixa de surpresas e age de uma forma particular com cada um; é difícil formar um padrão de recomendações, tanto para a precaução como para o estímulo. Ele pode estar presente durante toda a vida, desde que respeite a maturidade cronológica e psicológica de cada indivíduo.


PS1: Essa matéria não tem o mérito de analisar transtornos graves ou doenças psicológicas que possam aprofundar o problema causado pela imersão excessiva no mundo ficcional; nenhum dos entrevistados sofre de qualquer tipo de transtorno ou doença psicológica.

PS2: Os entrevistados que possuem seus nomes identificados com asteriscos preferiram não terem seus verdadeiros nomes publicados.

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