Ficção: aliada e inimiga
A ficção tem
condições de mexer com o nosso imaginário e aguçar o desejo de mudar... Mas nem
sempre para melhor.
Desde a infância, e por toda a vida, temos a
companhia do mundo ficcional. Livros, filmes, quadrinhos, séries de televisão,
jogos... Tudo contribui para construir o imaginário de cada um. É claro que
alguns já se provam imersos nos prazeres do mundo ficcional desde a infância,
mas o mais comum é que esse interesse se dê mais tarde, na adolescência, época
em que essa tendência é mais perceptível. Por ser uma fase de transição, o
choque entre o real e a fantasia é muito mais intenso, para bem ou para mal.
A psicóloga clínica Zenaide Braz da Silva
acredita que o confronto da ficção com a realidade “ocorre numa configuração
estruturada que, por um lado, pode constituir numa reflexão de aquisição de
novos valores e conceitos e que, por outro, por algumas variáveis psicológicas,
sociais e culturais, pode debilitar a capacidade do indivíduo de discriminar
fantasia de realidade”. Em outras palavras, a ficção pode ser enriquecedora
para a psique do ser humano tanto quanto pode ser perigosa em sua influência.
A estudante de Direito Carolina Sgorlon, de 19
anos, é uma daquelas pessoas que sempre gostou de ler: “desde pequena, pegava
gibis e tentava ler, só pelas figuras, sem nem saber ler ainda”. Ainda na
infância, Carolina foi apresentada ao universo dos mangás e animes, os
quadrinhos e desenhos animados japoneses, respectivamente. “(...) a paixão
aumentou ainda mais quando conheci meninas que tinham o mesmo gosto que eu.
(...) Isso me deixou muito feliz, ainda mais que a amizade se manteve”. Esse
contato permitiu que ela visse a realidade com outros olhos: “posso dizer que,
por causa de crescer vendo animes e lendo mangás, muitos conceitos foram
diferentes pra mim, entende? Não via graça em sair loucamente só pra ‘causar’.
Nunca fiz isso e não me arrependo de ter feito”. Ela também destaca sua
gratidão: “essa adoração me fez procurar fazer as coisas do jeito ‘certo’,
encontrar as pessoas certas”. Depois de alguma consideração, sorri e continua:
“outra coisa importante é dizer a verdade, né. Por pior que ela seja, a verdade
é melhor do que viver em uma mentira”.
Outra que foi contagiada pelo mundo ficcional
japonês desde cedo foi a estudante Bruna Burin. Para ela, muitos ensinamentos
vitais vieram dali: “eu aprendi a julgar menos as pessoas (...), percebi que às
vezes alguém com características físicas delicadas, aparentemente frágil e sem
defesa, pode se mostrar manipulador e de mente cruel. Assim como que pessoas de
personalidade fria podem ter um grande coração. Também me ensinaram a ser ‘eu
mesma’, sem me preocupar muito com a opinião dos outros e correr atrás do que
eu realmente acho importante, para não me arrepender depois”.
A psicóloga Zenaide
complementa: “a ficção proporcional um entrelaçamento com a história de vida
que contribui para a construção da nossa identidade”. Carolina e Bruna são dois
exemplos de influência positiva. Vale destacar que essa paixão das duas,
inicialmente apenas por quadrinhos e desenhos animados japoneses, se
transformou também em interesse literário. Carolina leu vários clássicos e
sempre está atrás de mais um. O “Morro dos Ventos Uivantes” foi um dos que ela
mais gostou até agora. Já Bruna encontrou mais estímulo em livros que são
adaptados para o cinema, como a obra “Um dia”, de_, produzido para as telonas
por _ e contando com Anne Hathaway e X nos papeis principais.
Infelizmente, por
a adolescência ser uma fase complicada, há muitos amantes do mundo ficcional
que acabam sendo discriminados por seus hobbys. A estudante de Programação Ana
Júlia*, de 18 anos, é um exemplo. “Às vezes eu sinto que, por gostar de games, as pessoas automaticamente pensam
que eu sou uma esquisita inútil”, comenta. O estudante de Design de Games
Gabriel Barros*, de 20 anos, também reclama: “é um saco seus amigos ficarem te
enchendo só porque você, de vez em quando, prefere passar seu domingo à noite
com o seu PlayStation do que com
eles”.
De acordo com a
psicóloga, “a pessoa estabelece um distanciamento da realidade, experimentando
todos os tipos de possibilidades que, em sua vida cotidiana, não poderia; elas
só têm sentido na relação estabelecida pela narrativa”. Explicando melhor: pelo
fato de o mundo ficcional proporcionar experiências novas que, muitas vezes,
são impossíveis de serem vividas no cotidiano, ele pode se tornar viciante. E,
na adolescência, é o momento onde se corre maior risco.
A administradora
Margarida Nunes*, de 49 anos, relembra: “quando eu era criança, vivia com o
nariz enfiado nos livros. Quando eu conheci a mulher que viria a ser minha
melhor amiga até hoje, eu lembro que ela me olhou com desconfiança e disse que
já tinha lido ‘O Capital’ (Karl Marx). Eu fiquei olhando para ela e pensei:
‘nossa, que chato’. Anos mais tarde, ela confessou que foi mentira, mas que ela
me achava tão metida por eu ler tanto que decidiu ‘dar o troco’.” É um exemplo
de vício que o mundo ficcional pode ocasionar.
Zenaide
justifica: “a interpretação que um indivíduo fará da ficção proporcionará o
sentimento de construção e significado, ou seja, a pessoa poderá reproduzir no
mundo real as situações da ficção e trazer isolamento e introversão constantes.
A ficção se torna a única maneira de manifestar emoções de superação de limites
e coragem para enfrentar situações conflitantes. Assim, pode criar um vício de
necessitar mais do convívio com a ficção do que com a realidade”.
Margarida se
encaixa ainda mais nesse exemplo: “eu tinha dificuldade para fazer amigos, era
muito exigente. (...) eu sentia que os livros me entendiam; aquelas crianças
que estudavam comigo, que eu conhecia, não me faziam falta. Mudei mais só perto
de entrar na faculdade, que fui morar sozinha”.
Ana Júlia também
teve suas desventuras com o mundo ficcional: “eu era mais extrovertida quando
era pequena. Eu cresci, comecei a gostar de mangás, animes, games e tal e fui
ficando mais tímida, mais contida. É claro que tiveram outras coisas que também
me fizeram mudar, mas eu vi que a realidade nem sempre era tão interessante”.
As entusiastas
Carolina e Bruna também sofreram com desilusões. Carolina lamenta: “uma
promessa é mais válido pra mim que qualquer documento. É a palavra da pessoa, a
consideração dela cumprir essa promessa por mim, pelo nosso relacionamento,
seja qual for. Se acontece de alguém que eu considero muito quebrar uma
promessa comigo, eu fico mais do que acabada; fico decepcionada, custo a
acreditar que aconteceu e sofro muito”. Bruna também pondera: “é complicado
analisar nossos próprios defeitos, mas acho que a maior desilusão que eu tive
foi perceber que há muitas pessoas realmente más e com isso veio aquela
‘desesperança’ na humanidade. Até onde a ambição pode fazer alguém chegar,
sabe?”.
A psicóloga
Zenaide, porém, contra argumenta: “o mundo ficcional também tem essa função, de
ilustrar a realidade. Muitas vezes uso a ficção para exemplificar atitudes
positivas e reforçar as negativas na construção da personalidade, valores e
conceitos dos pacientes. É algo mais fácil porque a bondade e a maldade são
polos extremos e eles entendem melhor a dimensão de suas ações, boas ou más. Na
ludoterapia (terapia infantil), são muito usados os velhos e atualíssimos
contos de fadas, fábulas e estórias em quadrinhos. A criança se coloca no lugar
da personagem que gosta e compreende o que fez ou precisa fazer com mais
facilidade”.
Mas afinal, o
mundo ficcional é bom ou é ruim?
A reposta é
simples e incerta: depende. O mundo ficcional pode ser influência positiva e
negativa com a mesma intensidade; apenas o imaginário de cada um é que dirá
qual delas será a dominante. Quem nunca se identificou com alguma personagem
cuja descrição de personalidade encantou e influenciou o comportamento futuro?
Ana Júlia sorri
ao pensar na pergunta: “uma vez, li um livro e cismei que seria pirata. Com
direito a alto mar, chapéu, tapa-olho, papagaio e tudo. Eu devia ter uns 12
anos, nem era tão nova assim. A personagem principal do livro era simplesmente
tudo o que eu sempre quis ser e me esforcei para seguir os bons exemplos dela”.
Carolina, além de
concordar, ainda defende os amantes do mundo ficcional: “odeio essas pessoas
preconceituosas que dizem que quem gosta dessas coisas (livros, games, mangás e
animes) não tem vida social ou emocional. Eu tenho um namorado perfeito, amigas
que são como irmãs pra mim e uma relação com minha família que, apesar de meio
doida, é boa. Fico muito feliz em ter conhecido esse mundo mágico, repleto de
sentimentos, arte, alegria e amor. Ele só me fez melhor, me fez crescer bem e
construir o meu próprio mundo, de verdade agora”.
Até Zenaide não
pode contestar esse argumento. “Eu particularmente acho fantástico como a
ficção se forma nos diferentes tempos que vive. (...) posso afirmar que a
construção d aminha personalidade e a escolha da minha profissão foram
adornadas pelo confronto entre realidade e ficção. (...) É interessante também
que a mesma obra adquire significados diferentes. Por exemplo, você pode
ler um livro ou assistir a um filme com
15 anos e depois, aos 30 anos, e ter uma nova perspectiva de aquisição de
conceitos e valores daquela obra”.
O mundo ficcional
é uma caixa de surpresas e age de uma forma particular com cada um; é difícil
formar um padrão de recomendações, tanto para a precaução como para o estímulo.
Ele pode estar presente durante toda a vida, desde que respeite a maturidade
cronológica e psicológica de cada indivíduo.
PS1: Essa matéria não tem o mérito de analisar
transtornos graves ou doenças psicológicas que possam aprofundar o problema
causado pela imersão excessiva no mundo ficcional; nenhum dos entrevistados
sofre de qualquer tipo de transtorno ou doença psicológica.
PS2: Os entrevistados que possuem seus nomes
identificados com asteriscos preferiram não terem seus verdadeiros nomes
publicados.
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