De entorpecidos a desregrados – o renascimento dos sentidos
A indústria cultural existe inevitavelmente. O que devemos nos
perguntar é como funciona a relação de artistas independentes e iniciantes com
ela – e qual é o fruto dessa relação.
Disfarçadas de pedidos educados,
as intervenções artísticas têm tomado conta de São Paulo para lembrar os
viventes de que ainda existe arte que não pretende anestesiar a existência.
Fora dos museus convencionais, a arte é um presente que nos permite sentir. A
frase “mais amor por favor” nasceu em 2009 e inicialmente estampava muros de
casas e prédios na tentativa de despertar as pessoas da frustração da vida
diária, e lembrar-lhes de um sentimento
que ainda existia, mas que estava meio esquecido. O pedido espalhou-se em meio
à agressividade e indiferença da metrópole, e hoje não faltam cartazes,
lembretes e impressos no meio urbano que contenham os dizeres. Nua e crua, sem vírgula ou ponto, a frase
inicial transfigurou-se: “mais arte por favor”. Não é só protesto, é necessidade.
100contospor10contostrocados
Tal necessidade encontrou caminho
em uma sexta-feira à noite no metrô Sumaré.
Em um dos vidros extensos que envolvem a estação, havia um pequeno
guardanapo colado com duas fitas adesivas. Um poema datilografado encontrava-se
ali:
"No chão da lavoura encontraram o corpo e os frutos.
Caiu e ali ficou. A morte cheirava a pêssegos."
AUS^NCIA
Daniel Viana
O poema
encontrado era um enigma que sugou meus pensamentos naquela noite. Daniel
Viana, idealizador e autor do projeto, aceitou me encontrar pra esclarecer
minhas dúvidas e curiosidades em uma conversa no vão do MASP, lugar que viraria
palco de mais um de seus guardanapos. Ele usa uma máquina de escrever que
trouxe de Minas Gerais para datilografar pequenos contos de temáticas diversas.
“A ideia dos 100contospor10contostrocados
é acontecer no espaço urbano, e realmente é pra ver se quem encontra tem essa
reação que você teve, que é um presente para a rua. Queria fazer algo que
pudesse abrir um pouco o olhar poético que existe na gente, mas que vai sendo
fechado com o tempo e com a vida.” Com fita adesiva, o poema é colado em algum
lugar pelo qual ele passou que direcione o olhar para outra coisa. “Às vezes é
uma paisagem, uma camada de tinta que está saindo e por trás do branco todo
tinha um azul, um amarelo, ou uma flor que nasce no meio da rachadura de um
muro. Assim minha ideia acaba sendo ampliar o olhar para a cidade.” Ator e
diretor de teatro, Daniel faz os poemas por prazer, mas metodicamente. O
projeto terá 365 contos, um por dia. Quando nos encontramos ele colava o conto
número 99. O guardanapo de número 100 ganhou cor laranja e seria colado durante
o festival Baixo Centro, no minhocão.
Daniel é
mineiro de Poços de Caldas, foi para Belo Horizonte estudar teatro e veio pra
São Paulo para focar na direção teatral. A vida de Daniel acaba sendo um panorama
da vida de muitos artistas iniciantes de hoje, onde a graduação e o talento
sozinhos não são um bilhete de entrada para viver exclusivamente de sua arte. “Eu
acho que eu tenho um privilégio de conseguir viver de arte. Eu sei que é
difícil, e acaba sendo um sonho.”
O volume de
projetos e a dificuldade de entrar no mercado são fatores delineares da arte de
rua, mas não os únicos. A arte é criada para a rua, tendo perfis e motivações
próprias. “A rua é meu ponto de partida para muitos trabalhos. O que eu gosto
da rua é essa doação da arte sem retribuição. Na rua a gente encontra trabalhos
incríveis, de tudo quanto é tipo, e você percebe que se você tirasse dali e
colocasse dentro de uma galeria teria outro valor. Mas de repente a história pra
chegar até uma galeria ou na rua, é que cria o valor do trabalho.” Como as
pessoas que encontram os contos são muitas vezes representadas em seus poemas,
enclausurar os guardanapos seria deslegitimá-los do propósito que Daniel
imaginava. Para que as pessoas possam ter contato com essa arte, Daniel oferece
nos próprios guardanapos o facebook do projeto, onde é possível ver outros
poemas e outros locais: “a internet hoje em dia abre espaços que a gente não
imagina. Com o facebook dá pra levar um pouco da rua pra ela. Mesmo dentro de
casa você consegue ver um pouco da rua.”
facebook.com/100contospor10contostrocados
Sebastiões
Constantemente presente em seu
conto, Sebastião é um personagem múltiplo e versátil. Ama, sente, tem tédio,
morre e revive. Eu imaginei que ele fosse o próprio Daniel, mas na verdade
Sebastião somos nós. Eu, você e todos os outros. “Na verdade muitas vezes o Sebastião
sou eu, mas não é todo o dia. Eu pensei em criar um personagem que pudesse ser
qualquer pessoa, de qualquer idade, de qualquer sexo ou que fosse até animal, e
dei a ele o nome de Sebastião. É um nome comum e acaba não sendo muito usado,
mesmo na literatura. Quando morava em Poços, tinha a folia de reis onde o
personagem que abre o espaço pra folia, que é um palhaço que usa uma máscara, é
chamado de “Bastião”. E eu tinha muito medo desse Bastião, por não saber o que
tinha por trás daquela máscara.”
O destino dos
guardanapos é incerto. “Como é um presente, às vezes eu fico sabendo o que
acontece com o conto, porque as pessoas fotografam e enviam as fotos ou mandam
um depoimento. Já aconteceu de em um espaço de grande movimentação eu ficar
olhando durante um tempo, e vejo que as pessoas muitas vezes fingem que não
veem. Tem gente que lê e vai embora, que lê e tira foto, que amassa e joga
fora... Isso não é uma agressão, por que é um presente, então só ela pode
decidir qual vai ser o destino dele."
BOX – ARTE INDEPENDENTE DENTRO DE
MUSEUS NÃO CONVENCIONAIS
De casas a mostras
coletivas, o espaço para a arte alternativa vem crescendo em São Paulo.
Casa da Xiclet
Adriana Xiclet, artista plástica, abriu sua casa na Vila Madalena para
exibir trabalhos selecionados no 4º Salão
dos Artistas Sem Galeria. Depois das mostras iniciais, o local ficou
nomeado como Casa da Xiclet, e têm
obras de artes espontaneamente penduradas até no banheiro, sem o conhecimento
da dona da casa. "Como é uma galeria aberta, as pessoas vêm e às vezes
acabam colocando sua obra pela casa. Tem gente que não assina, que não deixa
nome ou qualquer pista nas obras, e ela fica aí."
R. Fradique Coutinho, 1855 | Pinheiros
Casa Tomada
A Casa Tomada
é um sobrado na aclimação, e sua fachada exibe a interessante frase
"parece que o lugar é aqui." Ela oferece uma residência artística, o
Ateliê Aberto, onde existe espaço pra troca entre artistas e pensadores da
arte, semestralmente. A Casa só funciona quando um de seus seis programas estão
abertos.
Rua Brás Cubas 335 |Aclimação
Casa Contemporânea
Diferentemente das outras casas, a Contemporânea, que
fica na Vila Mariana, oferece além de debates sobre a produção artística,
mostras de teatro e degustação de vinhos e cervejas. Se um artista quer expor
suas obras, basta entrar em contato via e-mail com a dona da casa, Marcia
Gadioli.
Rua Capitão Macedo
370 | Vila Mariana
Para conversar sobre os rumos da arte contemporânea
brasileira
A Pipa e 397 são outras
galerias alternativas que misturam o propósito de ateliê com espaço para
discutir os rumos da arte contemporânea, tendo ambientes aconchegantes para a
discussão.
Pipa: Rua Fidalga, 958 | Vila Madalena
397: Rua Wisard, 397 | Vila Madalena
Do outro lado
“Essas casas alternativas já
mostram como o mercado está de olho em tudo que nasce. Não adianta, o dever do
capitalismo é sugar tudo aquilo que é produzido, para que ele possa se
reproduzir. Tem gente que nunca vai conseguir colocar a mão no trabalho do
Osgemeos, mas quer estar no mercado agenciando caras pequenos que não deixam de
ser bons.” Pedro Pezte, artista e estudante de Artes Plásticas, resume em uma
frase a desconfiança de movimentos artísticos que estão surgindo. Os mercados
de arte existem, tanto pequenos quanto grandes, mas isso não indica que faltem
coisas boas dentro ou fora deles. Porém, eles limitam a produção e a aceitação
dessas outras formas de arte. “Tem pessoas que chegam em galerias e já
perguntam "Será que vende?” Muitas pessoas decidiram fazer arte porque
virou glamour, e inconscientemente elas criam uma arte não autoral. Ainda não
tenho medo do mercado, mas muitos falam que muita gente já se vendeu. Enquanto
dá pra fazer o que eu quero, eu vou fazer o que eu quero. Enquanto eu não
precisar do dinheiro pra comer, eu não faço o que eu não quero."
Pedro começou uma faculdade de Design
antes de fazer Artes Plásticas, mas ao perceber que não era exatamente o que
ele imaginava, pensou "Meu deus, eu vou ficar louco aqui. Não dá, tenho
que vestir a carapuça logo." Ele acredita que é possível sobreviver só de
arte mesmo sem ter um diploma, mas no mercado brasileiro “é sempre bom ter um
diplominha. Arte hoje em dia é um mundo bem nojento. É muito contato. Se eu tivesse
nome e fosse filho de alguém, eu já estaria explodindo hoje, independente do
meu trabalho." Porém, ele afirma que “arte é meter a cara. Ao mesmo tempo
em que é esse mundinho, tem gente tentando acabar com isso.”
É preciso sentir
Rimbaud, poeta francês, escreveu
sobre o próprio ofício: “Para o poeta se
tornar um vidente, ele precisa passar por um longo desregramento dos sentidos.”
Daniel e Pedro, protagonistas do embate artístico independente desta matéria,
usam estratégias opostas. Porém, ambos concordam com Rimbaud: é preciso sentir.
“O artista precisa ter um ponto de vista muito forte, assim ele vai
transparecer na arte”, diz Pedro. Mas isso não basta: o público precisa estar
em sintonia com o artista, para que ele traduza as feições de sua época. “Minha
ideia acaba sendo ampliar o olhar pra cidade, porque a gente acaba ficando meio
que robótico.” Pedro e Daniel, sem saber, complementam e enriquecem seu ofício.
Ao ver Daniel colar o nonagésimo nono conto em um banco do vão do MASP, notei
que o guardanapo estava ao lado de uma flor. Mesmo que estivessem passando
diversos helicópteros pelo local, durante a entrevista, eles não impediram que
ela fosse revigorante. Minha percepção sobre o mundo aguçou-se, e assim
aconteceu com diversos Sebastiões por São Paulo: mesmo que o dia consiga sugar
suas energias, sempre existe poesia em algum lugar.
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