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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Reportagem Especial - Julia Mello



De entorpecidos a desregrados – o renascimento dos sentidos
A indústria cultural existe inevitavelmente. O que devemos nos perguntar é como funciona a relação de artistas independentes e iniciantes com ela – e qual é o fruto dessa relação.





Disfarçadas de pedidos educados, as intervenções artísticas têm tomado conta de São Paulo para lembrar os viventes de que ainda existe arte que não pretende anestesiar a existência. Fora dos museus convencionais, a arte é um presente que nos permite sentir. A frase “mais amor por favor” nasceu em 2009 e inicialmente estampava muros de casas e prédios na tentativa de despertar as pessoas da frustração da vida diária, e lembrar-lhes  de um sentimento que ainda existia, mas que estava meio esquecido. O pedido espalhou-se em meio à agressividade e indiferença da metrópole, e hoje não faltam cartazes, lembretes e impressos no meio urbano que contenham os dizeres.  Nua e crua, sem vírgula ou ponto, a frase inicial transfigurou-se: “mais arte por favor”. Não é só protesto, é necessidade.

100contospor10contostrocados
Tal necessidade encontrou caminho em uma sexta-feira à noite no metrô Sumaré.  Em um dos vidros extensos que envolvem a estação, havia um pequeno guardanapo colado com duas fitas adesivas. Um poema datilografado encontrava-se ali:
"No chão da lavoura encontraram o corpo e os frutos. Caiu e ali ficou. A morte cheirava a pêssegos."
AUS^NCIA
Daniel Viana
O poema encontrado era um enigma que sugou meus pensamentos naquela noite. Daniel Viana, idealizador e autor do projeto, aceitou me encontrar pra esclarecer minhas dúvidas e curiosidades em uma conversa no vão do MASP, lugar que viraria palco de mais um de seus guardanapos. Ele usa uma máquina de escrever que trouxe de Minas Gerais para datilografar pequenos contos de temáticas diversas. “A ideia dos 100contospor10contostrocados é acontecer no espaço urbano, e realmente é pra ver se quem encontra tem essa reação que você teve, que é um presente para a rua. Queria fazer algo que pudesse abrir um pouco o olhar poético que existe na gente, mas que vai sendo fechado com o tempo e com a vida.” Com fita adesiva, o poema é colado em algum lugar pelo qual ele passou que direcione o olhar para outra coisa. “Às vezes é uma paisagem, uma camada de tinta que está saindo e por trás do branco todo tinha um azul, um amarelo, ou uma flor que nasce no meio da rachadura de um muro. Assim minha ideia acaba sendo ampliar o olhar para a cidade.” Ator e diretor de teatro, Daniel faz os poemas por prazer, mas metodicamente. O projeto terá 365 contos, um por dia. Quando nos encontramos ele colava o conto número 99. O guardanapo de número 100 ganhou cor laranja e seria colado durante o festival Baixo Centro, no minhocão.
Daniel é mineiro de Poços de Caldas, foi para Belo Horizonte estudar teatro e veio pra São Paulo para focar na direção teatral. A vida de Daniel acaba sendo um panorama da vida de muitos artistas iniciantes de hoje, onde a graduação e o talento sozinhos não são um bilhete de entrada para viver exclusivamente de sua arte. “Eu acho que eu tenho um privilégio de conseguir viver de arte. Eu sei que é difícil, e acaba sendo um sonho.”
O volume de projetos e a dificuldade de entrar no mercado são fatores delineares da arte de rua, mas não os únicos. A arte é criada para a rua, tendo perfis e motivações próprias. “A rua é meu ponto de partida para muitos trabalhos. O que eu gosto da rua é essa doação da arte sem retribuição. Na rua a gente encontra trabalhos incríveis, de tudo quanto é tipo, e você percebe que se você tirasse dali e colocasse dentro de uma galeria teria outro valor. Mas de repente a história pra chegar até uma galeria ou na rua, é que cria o valor do trabalho.” Como as pessoas que encontram os contos são muitas vezes representadas em seus poemas, enclausurar os guardanapos seria deslegitimá-los do propósito que Daniel imaginava. Para que as pessoas possam ter contato com essa arte, Daniel oferece nos próprios guardanapos o facebook do projeto, onde é possível ver outros poemas e outros locais: “a internet hoje em dia abre espaços que a gente não imagina. Com o facebook dá pra levar um pouco da rua pra ela. Mesmo dentro de casa você consegue ver um pouco da rua.”
facebook.com/100contospor10contostrocados
Sebastiões
Constantemente presente em seu conto, Sebastião é um personagem múltiplo e versátil. Ama, sente, tem tédio, morre e revive. Eu imaginei que ele fosse o próprio Daniel, mas na verdade Sebastião somos nós. Eu, você e todos os outros. “Na verdade muitas vezes o Sebastião sou eu, mas não é todo o dia. Eu pensei em criar um personagem que pudesse ser qualquer pessoa, de qualquer idade, de qualquer sexo ou que fosse até animal, e dei a ele o nome de Sebastião. É um nome comum e acaba não sendo muito usado, mesmo na literatura. Quando morava em Poços, tinha a folia de reis onde o personagem que abre o espaço pra folia, que é um palhaço que usa uma máscara, é chamado de “Bastião”. E eu tinha muito medo desse Bastião, por não saber o que tinha por trás daquela máscara.”
O destino dos guardanapos é incerto. “Como é um presente, às vezes eu fico sabendo o que acontece com o conto, porque as pessoas fotografam e enviam as fotos ou mandam um depoimento. Já aconteceu de em um espaço de grande movimentação eu ficar olhando durante um tempo, e vejo que as pessoas muitas vezes fingem que não veem. Tem gente que lê e vai embora, que lê e tira foto, que amassa e joga fora... Isso não é uma agressão, por que é um presente, então só ela pode decidir qual vai ser o destino dele."

BOX – ARTE INDEPENDENTE DENTRO DE MUSEUS NÃO CONVENCIONAIS
De casas a mostras coletivas, o espaço para a arte alternativa vem crescendo em São Paulo.

Casa da Xiclet
Adriana Xiclet, artista plástica, abriu sua casa na Vila Madalena para exibir trabalhos selecionados no 4º Salão dos Artistas Sem Galeria. Depois das mostras iniciais, o local ficou nomeado como Casa da Xiclet, e têm obras de artes espontaneamente penduradas até no banheiro, sem o conhecimento da dona da casa. "Como é uma galeria aberta, as pessoas vêm e às vezes acabam colocando sua obra pela casa. Tem gente que não assina, que não deixa nome ou qualquer pista nas obras, e ela fica aí."

R. Fradique Coutinho, 1855 | Pinheiros 

Casa Tomada
A Casa Tomada é um sobrado na aclimação, e sua fachada exibe a interessante frase "parece que o lugar é aqui." Ela oferece uma residência artística, o Ateliê Aberto, onde existe espaço pra troca entre artistas e pensadores da arte, semestralmente. A Casa só funciona quando um de seus seis programas estão abertos.

Rua Brás Cubas 335 |Aclimação
Casa Contemporânea
Diferentemente das outras casas, a Contemporânea, que fica na Vila Mariana, oferece além de debates sobre a produção artística, mostras de teatro e degustação de vinhos e cervejas. Se um artista quer expor suas obras, basta entrar em contato via e-mail com a dona da casa, Marcia Gadioli.
Rua Capitão Macedo 370 | Vila Mariana

Para conversar sobre os rumos da arte contemporânea brasileira
A Pipa e 397 são outras galerias alternativas que misturam o propósito de ateliê com espaço para discutir os rumos da arte contemporânea, tendo ambientes aconchegantes para a discussão.

Pipa: Rua Fidalga, 958 | Vila Madalena

397: Rua Wisard, 397  | Vila Madalena


Do outro                                                                                                                       lado
“Essas casas alternativas já mostram como o mercado está de olho em tudo que nasce. Não adianta, o dever do capitalismo é sugar tudo aquilo que é produzido, para que ele possa se reproduzir. Tem gente que nunca vai conseguir colocar a mão no trabalho do Osgemeos, mas quer estar no mercado agenciando caras pequenos que não deixam de ser bons.” Pedro Pezte, artista e estudante de Artes Plásticas, resume em uma frase a desconfiança de movimentos artísticos que estão surgindo. Os mercados de arte existem, tanto pequenos quanto grandes, mas isso não indica que faltem coisas boas dentro ou fora deles. Porém, eles limitam a produção e a aceitação dessas outras formas de arte. “Tem pessoas que chegam em galerias e já perguntam "Será que vende?” Muitas pessoas decidiram fazer arte porque virou glamour, e inconscientemente elas criam uma arte não autoral. Ainda não tenho medo do mercado, mas muitos falam que muita gente já se vendeu. Enquanto dá pra fazer o que eu quero, eu vou fazer o que eu quero. Enquanto eu não precisar do dinheiro pra comer, eu não faço o que eu não quero."
Pedro começou uma faculdade de Design antes de fazer Artes Plásticas, mas ao perceber que não era exatamente o que ele imaginava, pensou "Meu deus, eu vou ficar louco aqui. Não dá, tenho que vestir a carapuça logo." Ele acredita que é possível sobreviver só de arte mesmo sem ter um diploma, mas no mercado brasileiro “é sempre bom ter um diplominha. Arte hoje em dia é um mundo bem nojento. É muito contato. Se eu tivesse nome e fosse filho de alguém, eu já estaria explodindo hoje, independente do meu trabalho." Porém, ele afirma que “arte é meter a cara. Ao mesmo tempo em que é esse mundinho, tem gente tentando acabar com isso.”

É preciso sentir
Rimbaud, poeta francês, escreveu sobre o próprio ofício: “Para o poeta se tornar um vidente, ele precisa passar por um longo desregramento dos sentidos.” Daniel e Pedro, protagonistas do embate artístico independente desta matéria, usam estratégias opostas. Porém, ambos concordam com Rimbaud: é preciso sentir. “O artista precisa ter um ponto de vista muito forte, assim ele vai transparecer na arte”, diz Pedro. Mas isso não basta: o público precisa estar em sintonia com o artista, para que ele traduza as feições de sua época. “Minha ideia acaba sendo ampliar o olhar pra cidade, porque a gente acaba ficando meio que robótico.” Pedro e Daniel, sem saber, complementam e enriquecem seu ofício. Ao ver Daniel colar o nonagésimo nono conto em um banco do vão do MASP, notei que o guardanapo estava ao lado de uma flor. Mesmo que estivessem passando diversos helicópteros pelo local, durante a entrevista, eles não impediram que ela fosse revigorante. Minha percepção sobre o mundo aguçou-se, e assim aconteceu com diversos Sebastiões por São Paulo: mesmo que o dia consiga sugar suas energias, sempre existe poesia em algum lugar.

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