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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Reportagem Temática - Mariana Moreira



CRIANÇA TRABALHA OU DÁ TRABALHO?
“Lápis, caderno, chiclete, peão
Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria,
Tambor, gritaria, jardim, confusão
(...)
Criança não trabalha
Criança dá trabalho
Criança não trabalha.”
Escrita por Arnaldo Antunes em parceria com Paulo Tatit, Criança Não Trabalha foi gravada pelo grupo musical Palavra Cantada em 1997 para o álbum Canções Curiosas. Apesar da letra simples e rimada, ela serve como pretexto para uma questão discutível. Afinal, faz bem à criança trabalhar como modelo e/ou ator?
           
       
     

       Tudo começou quando Kaleb Figueiredo, 7 anos, revelou à mãe, Inez, seu desejo de ser ator. O menino, que já participava do teatro amador da escola, sentiu vontade de se profissionalizar, para temor dos pais por acharem esse universo muito competitivo. “Ele sempre participou de teatros na escola, mas teatro amador. E as pessoas falavam “nossa, põe esse menino para fazer alguma coisa”, mas eu nunca colocava”, conta Inez, que é professora de português. A insistência do filho logo fez os pais procurarem agenciá-lo e a escolhida foi a Agência Boneca de Pano, onde entrou em julho do ano passado. “A gente faz tudo que pode para levá-lo aos testes. Ele tá bem realizado”.
           
            Quem também chamou a atenção de terceiros para o agenciamento foi a Isabela Panta, hoje com 13 anos, mas já modelo ainda bebê. A mãe, Denise Panta, conta que foi incentivada por amigos da vizinhança que acreditavam no potencial de sua filha. Após inúmeros trabalhos, com certeza o que mais marcou foi a gravação de um comercial de sucos na Argentina, em que a pequena Isabela, no auge de seus 5 anos, viajou para Buenos Aires a trabalho. Sentada de pernas cruzadas, a jovem Isabela exibe uma expressão tímida, mas que garante não ser assim quando fotografa.

            A analista de treinamento e desenvolvimento de empresas Denise Bottechia também passou por situação parecida. Depois de ouvir por dois anos a filha, Raíssa, de 7 anos, pedir para ser modelo, a mãe não teve outra saída que não fosse o agenciamento. “(ela queria) Por causa dessa novela Carrossel. Comecei a pesquisar algumas agências, as mais idôneas. Aí eu vi a Fine (Kids) e a trouxe”.

Mãe de Stephanie e Brenda Santiago, Elaine colocou sua primogênita de 9 anos – Stephanie – em agência quando ela tinha 1 anos e 2 meses. O que começou como uma tentativa de realizar um sonho próprio não concretizado, já que Elaine quis ser modelo e não pôde, estendeu-se para sua filha, que hoje ama o que faz. “Quando eu tive ela (Stephanie), resolvi colocar. Se ela quisesse depois seguir com isso, ótimo. Se não,  ninguém iria forçar”. Sorridente, Stephanie parece contente com a vida paralela de modelo que, inclusive, pretende seguir. “O que eu mais gosto é de gravar comercial, porque consigo interagir, falar, é bem melhor”.

Como funciona
           
            Mas afinal, qual é o processo mediado entre agência e modelo até o trabalho? Regina, dona da agência Fine Kids, explica: “o cliente liga e pede uma criança. Dão uma idade desejada, dizem pra quê querem, quantas crianças, qual o valor do cachê o perfil. Mandamos as fotos de um número determinado de crianças e o cliente seleciona as fotos que gostou e faz testes presenciais para, em alguns casos, ver expressão corporal, voz, desenvoltura e esperteza dos candidatos”.

            Quando as crianças são aprovadas, é hora de propor aos pais. “Quando eu ligo para mãe, explico quem é o cliente, o que ele quer e qual o cachê. A mãe tem a opção de recusar a proposta. Nem toda agência é assim: se você entrou, agora tem de aceitar os trabalhos. Se a mãe aprova, eu ligo para o cliente confirmando a participação da criança”.

                Para quem não quer criar vínculos fixos, há agências que oferecem serviço terceirizado e, por isso, não é necessária a assinatura de um contrato de exclusividade. Assim é o sistema de trabalho na Agência Boneca de Pano, criada há 15 anos pela ex-atriz Manuela Assunção depois de 39 anos trabalhando na produção de novelas, comerciais e em aulas de teatro para crianças. “A agência de publicidade seleciona, dentre várias, uma produtora. Esta, que possui seu setor de casting, aciona a agência de modelos, como a minha, e pede crianças. Do meu casting, mando para ela as fotos e ela as aprova. Quem ela quiser, eu entro em contato e as crianças vão aos testes”. A seleção das crianças, feita pela Manuela, é diversificada, o que significa que tanto crianças com experiências anteriores quanto novatas concorrem à vaga. “Aqui é uma agencia séria, então eu vou mandar para produtora uma menina que renda, a criança tem que render. Não adianta eu mandar uma criança inexperiente, a produtora não vai trabalhar mais comigo. Então eu mesclo, acho que todo mundo tem que ter chances. Coloco gente que já trabalha e gente que está começando agora”.

            “Tem crianças aqui que tem outras agências. Se eu ligar primeiro, ela vai por mim, Boneca de Pano, se outra agência ligar, ela vai pela outra”. Manuela explica que não é vantajosa para ela a exclusividade porque despenderia um cachê mensal para manter o modelo apenas com ela, o que não significa que ele sempre será chamado para trabalho.
            Uma dica para saber se seu filho tem predisposição é simples: naturalidade e vontade de falar, de acordo com Manuela. Isso mesmo, nada daquilo de criança bonita. “Há 20 anos, só era modelo aquela criança linda e maravilhosa. Hoje não tem mais isso. As propagandas e as novelas brasileiras não se importam mais com beleza, elas querem crianças expressivas, espertas, porque é esta criança que vende o produto, não é a criança bonita. É essa a psicologia de venda”.

Os dois lados da questão
            Essa exposição precoce da figura da criança é um dos motivos que levanta discussões. No seminário “Perigos da Adultização Infantil”, publicado em seu blog pessoal, escreveu o pedagogo Marcos Tuler: “Hoje em dia, as crianças estão se comportando como se fossem “pequenos adultos”. Cada vez mais cedo, elas assumem responsabilidades, disputam posições em determinadas atividades, buscando múltiplas competências. Desprotegidas, recebem de forma direta a influência de uma sociedade que exige seres perfeitos”. Ainda segundo ele, o conceito tal qual conhecemos de infância foi resgatado nos tempos modernos, mas só na segunda metade do século XX é que ele foi, de fato, legitimado, pois foi quando a criança deixou de ser uma “criança-adulto” para ser um sujeito social.

            Um dos vilões desse processo de crescimento seria a mídia, de acordo com as observações de Tuler. Isso porque ela quem estimula o consumo de produtos cujos conteúdos muitas vezes não condizem com a faixa etária e, ainda, porque nela se vê crianças trabalhando e apresentando programas de televisão. Psicóloga do Hospital do Servidor Público Municipal, Maria Luiza Sardenberg reforça algumas ideias defendidas pelo pedagogo. “Trabalhar e, principalmente com a questão da venda de uma imagem, é entrar precocemente em modos de subjetivação da vida adulta. É o adulto que geralmente oferece à criança este tipo de "trabalho" e, ao fazê-lo, rouba dela um pouco da sua espontaneidade. Ela vira um produto a ser explorado socialmente. Uma criança que trabalhe como modelo e que por isto se submete à grande competitividade desse ramo, terá problemas de sono, bulimia - deve ser magra para ser aceita - anorexia, ansiedade e outros”.



            Essa visão pessimista é refutada por Regina Weyler. Dona da agência Fine Kids há dezoito anos, ela acredita que “isso é uma bobagem, porque se a criança não quiser fazer, ninguém no mundo vai obrigá-la a “trabalhar”. Por exemplo, vamos pegar uma criança de 5, 6 anos. Se ela não quiser fazer aquilo, seja uma propaganda para dançar ou para cantar, se não partir dela, jamais eles (os produtores) vão conseguir (convencê-la). Então, a criança que trabalha é aquela que gosta de fazer isso, faz com prazer, como se ela tivesse brincando, como se ela tivesse numa festa de aniversário”. Para ilustrar isso, Regina cita um exemplo que lhe marcou. Um de seus modelos, na época do famoso comercial da Parmalat de 1996 – o dos bichinhos-, foi aprovado para ser o coelho, mas no dia da gravação se recusou a vestir a fantasia. “Ele, que tinha 4 anos na época, ficou com medo (da fantasia) e começou a chorar. A mãe prometeu de tudo: filhinho, quando sair daqui, eu compro aquele carrinho, aquela bicicleta e nada. O menino não quis e não fez”.

            Para a psicopedagoga Gisela Testa, ocorre hoje o que ela chama de "endeusamento" da criança e da infância e por isso das pessoas questionarem se estes pequenos profissionais devem ou não atuar. “Dar excesso de inserção e escolha para pessoas pequenas demais que ainda não tem a capacidade de escolher o que é melhor para si mesmo é dar excesso de poder. Antigamente, criança não tinha opinião, nem era consultado”.

            Ainda que trabalhe neste ramo, Manuela concorda que é complicado conciliar as necessidades da criança, tanto que, segundo ela: “eu não pude ter filhos, mas se eu tivesse eu não sei se eu optaria por este lado da publicidade. Só se a minha filha quisesse muito, porque é muito sacrificante”.

Sobre a crítica ao trabalho por impor responsabilidades prematuramente, Elaine não pensa que isso seja algo ruim, já que Stephanie agora entende o valor do dinheiro e quanto custará a ela comprar algo e, por isso, será uma adulta cujos gastos serão conscientes. “ Ela (Stephanie) acabou tendo uma independência em relação ao dinheiro. Quando ela quer algo, eu digo a ela que vou pegar de seu dinheiro e, mesmo reclamando às vezes, eu explico que não terei condições de comprar, então terá de ser com o dinheiro dela”.
Isabela Panta também acredita que ter começado a trabalhar cedo a fez ter responsabilidade para administrar seu dinheiro, além de tê-la amadurecido enquanto pessoa. Sua mãe, Denise, ressalta essa questão: “acho que tudo vai da educação. Se você dá uma boa educação, a criança vai seguir certinho”. Uma demonstração de profissionalismo da pequena Panta foi, na opinião de Denise, quando seu cunhado foi assassinado, pois Isabela tinha teste e, mesmo assim, ela o fez.

Kaleb, apesar da pouca idade, diz-se satisfeito desde que começou em agência. “É cansativo, mas gosto muito”. Sua opinião é compartilhada por Isabela, Stephanie e Raíssa. Embora tão jovens, a firmeza em garantir que se divertem fotografando ou filmando ressalta a ideia de que tudo não passa de uma grande diversão, ainda que seja trabalho.
Cabe aos pais a dosagem de trabalho e, principalmente, gerenciar a rotina da criança para que ela possa conciliar com os estudos. Tanto na Agência Fine Kids como na Boneca de Pano, os testes para campanhas, sejam elas fotográficas ou não, são sempre realizados nos horários diurno e vespertino justamente para que haja essa facilidade no gerenciamento da agenda de atividades dos modelos. Em relação a esse equilíbrio, as opiniões das duas diretoras de agência são categóricas: “Se você leva muito a sério prejudica. Tem mãe que não sabe dosar, não quer perder nenhum trabalho e aí vira um negócio de competição. Quando a criança quer, é ótimo, mas quando a criança começa levar a sério e coloca o lado de competição acaba (prejudicando)”, comenta Manuela. Já para Regina, as mães também, em alguns casos, atrapalham o andamento dos testes. “. Mãe incomoda porque acha que o filho é o melhor em tudo. Mas tem mãe que não se contenta em só achar, tem que falar também e incomoda o produtor, o fotógrafo e por aí vai”.

            Regina ressalta, ainda, que os pais devem atentar para o ritmo da criança para levá-la a gravações ou ensaios fotográficos quando ela estiver apta a render mais. “A mãe é quem tem que ter a sensibilidade de levar a criança ao cliente na hora boa dela porque o cliente dá opções de horário, mas a mãe não se atenta para isso. Se o cliente fala “ a criança pode ir de 9h à 12h”, a mãe esperta leva a criança naquela hora do dia em que ela tá boa. Mas ela (mãe) não pensa nisso, pensa nela, no melhor horário para ela. Aí leva a criança numa hora em que ela tá com sono, com fome, chata. Chega lá, a criança só esperneia e chora. E tudo isso a gente explica, a gente dá uma cartilha pras mães”, explica se referindo ao contrato entregue aos pais quando entram na agência e que esclarece toda a dinâmica do trabalho, desde as roupas que deve levar em dias de testes até os documentos necessários para o agenciamento.

Manuela diz também passar por situações tão inconvenientes quanto. “tem crianças que vem aqui e não param de chorar e a mãe insiste, troca de roupa, o João (fotógrafo da agência) fala que não dá, então a gente pede pra voltar outro dia porque a filha não tá querendo. Por isso existe um teste de fotogenia antes”. Este teste nada mais é do que uma sessão de fotos, no valor de 50 reais pagos pela mãe, para que a agência observe a desenvoltura da criança ao ser fotografada e evite esses impasses.

 Quando esses limites da criança são respeitados, então há uma relação saudável com o trabalho desenvolvido. Assim pensa Gisela Testa: “não há problemas desde que a família seja capaz de gerenciar bem, ou seja, a prioridade é a escola e a vida da criança, manter amigos, fazer os cursos que ela gosta e precisa. Se tudo isso for respeitado e a criança gostar, e for se organizando junto com a participação da família”. Sobre isso, Denise Panta, a mãe de Isabela, esclarece que sempre vai aos testes com a filha e que procura levá-la ao maior número possível. “Não tenho preguiça de levá-la aos testes”. As outras mães, Denise (Bottechia, mãe de Raíssa), Inez e Elaine também garantem que tentam conciliar suas agendas de modo a serem presentes no processo de seleção nos quais seus filhos participam. “Sempre sou eu que a levo, porque o pai trabalha o dia todo”, comenta Elaine.

qual o veredito?
            Brincando ou modelando, a questão principal é a criança. Esta, estando feliz, é o que importa, ainda que seja fazendo “caras e bocas”. “A infância nunca é a mesma para todos os tempos. Ela sempre reflete os impasses vividos pela vida adulta, seus desejos, aspirações”, de acordo com a psicóloga Maria Luiza. Por isso, algo que há alguns anos não era pensado vem à tona pelas próprias mudanças comportamentais pelas quais a sociedade passa.
            O cuidado está na maneira como se dá a inserção neste mundo de rótulos. Para Maria Luiza, isto pode causar sérias doenças porque a criança é exposta a cobranças e exigências que não cabe à sua fase de crescimento. Cabe aos pais o equilíbrio entre trabalho e lazer, algo válido para qualquer idade inclusive.
            Não parece ser problema para os pequenos profissionais Stephanie, Isabela, Raíssa e Kaleb. Este, quando perguntado sobre o porquê de ter escolhido essa carreira, deu uma resposta de gente grande: “está no (meu) sangue”. Simples e sincero, como uma boa criança.                     

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