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sexta-feira, 19 de abril de 2013

Reportagem temática - Gabriela Monteiro


O futuro se encontra em pequenas mãos.





Tudo começou com Riley. Não, na verdade foi com o Guilherme. Quem são esses? Grandes figurões internacionais? Pesquisadores? Não, são crianças e ambas da mesma idade: cinco anos. Já vou explicar: Guilherme Monteiro, no auge de sua idade-que-já-completa-uma-mão se viu numa crise existencial: por que não posso gostar de rosa? Porque não posso brincar de boneca? A pergunta dele é respondida com a sua (possível) reação, caro leitor: porque são coisas de menina, certo? Errado. E é aí onde tudo começa.
Assim como Guilherme, crianças ao redor do mundo possuem as mesmas indagações, e muitas vezes as reprimem. Mas essa lei não condiz a Riley, uma garotinha americana que teve um vídeo gravado por seu pai em uma loja de brinquedos. Em exatos um minuto e onze segundos, Riley sintetiza todas as suas dúvidas com frases como “Algumas meninas gostam de super-heróis, algumas meninas gostam de princesas! Alguns meninos gostam de super-heróis, alguns meninos gostam de princesas! Então por que todas as garotas têm que comprar coisas rosa e todos os meninos tem que comprar coisas de outra cor?”. Mal sabia a garotinha que essas questões possuem um âmbito sexista (palavra que ela certamente desconhece) e que, se estudado mais afundo, explica muita coisa.
Desde os primórdios, as crianças do sexo feminino são condicionadas a usar a cor rosa em todos os seus artefatos: roupas, brinquedos, maquiagens, material escolar e afins. Ou pelo menos desde 1950 segundo Richard Gottlieb, consultor da indústria de brinquedos. Ele afirma que até então, rosa era considerada uma “cor de menino”, porém, como estratégia de marketing, ocorreu a mudança. Sua preocupação com a forma como a indústria vem usando o rosa para direcionar as meninas a certos tipos de brinquedos nas últimas décadas o impulsionou numa pesquisa. Gottlieb estudou mais de 1500 mães e duas filhas, perguntando-as com que tipo de brinquedo elas lidavam quando crianças e conclui que as garotas estão sendo incentivadas cada vez mais a ficar longe de brinquedos neutros – como os de montar, os científicos e até carros e caminhões – que ajudam a criança a desenvolver a inteligência analítica e espacial, e influenciando-as a escolher os de cor rosa que, curiosamente estão quase sempre relacionados à maternidade, tarefas domésticas e vaidade.
A questão das preferências por cores segundo o gênero é relativamente antiga. Na cidade de Chicago, nos EUA, foi feito um estudo com mais de 450 mil pessoas em 1983 e concluiu que a maioria das pessoas, homens e mulheres, gostam da cor azul (e mulheres gostam também da cor vermelho). Esses estudos foram confirmados recentemente com as investigações de uma neurocientista da Newcastle University, Anya Hurlbert na Inglaterra. "Existe uma tendência universal de preferência pelo azul e de rejeição de verdes amarelados", disse Hurlbert. "Homens e mulheres reagiram positivamente a componentes azul-amarelos. Mulheres também reagiram positivamente aos vermelhos-verdes." A partir disso, a doutora acredita que a explicação esteja na combinação das duas tendências, que resulta na cor rosa. Sobre a origem dessa afinidade, Hurlbert sugere que talvez essa preferência seja pré-histórica: “As mulheres saíam para procurar frutas, por isso desenvolveram uma maior sensibilidade para tons avermelhados.”.
No entanto, existem outros especialistas que discordam de tais idéias e consideram de uma explicação muito simples.  Steve Palmer, psicólogo da Stanford University, nos EUA, fez vários estudos sobre o assunto e concluiu que as cores de que gostamos dependem principalmente das coisas de que gostamos dizendo que "A base para nossas preferências são as interações emocionais com objetos à nossa volta". Dos EUA à Inglaterra, Melissa Hines, psicóloga da Cambridge University, parece concordar com ele. Ela defende de que a culpa é principalmente da indústria de brinquedos que oferece as preferências de cada gênero com suas devidas cores, criando esse esteriótipo. “Elas preferem bonecas, por exemplo, enquanto meninos preferem carros, caminhões e armas. (...) Os brinquedos com que meninos e meninas têm afinidade são oferecidos em cores diferentes. (...) Portanto, como elas gostam de brincar com aqueles brinquedos, começam a gostar daquelas cores." Hines lembra também o fator “identidade sexual”, presente entre os três e seis anos de idade. "Nessa idade, elas acham que vão mudar de sexo se brincarem com os brinquedos errados, então, são bastante rígidas em relação ao tipo de brinquedo e à cor” afirma a psicóloga.
Outros fatores que firmariam esses costumes é o familiar e o social. O primeiro parte do princípio de que são os pais que compram os brinquedos para suas crianças, respeitando em sua maioria a vontade da mesma. Logo, se torna um ciclo: a criança quer a coisa rosa então ela a terá, e vindo da mão de seus pais que não pararam pra pensar no efeito em que seus atos exerceriam e simplesmente perpetuaram uma tradição. O segundo consiste na “vigilância” que as crianças fazem com as outras ao seu redor. Essa é uma fase no qual a opinião dos colegas conta muito mais do que a dos pais. Para que o convívio social seja pacífico, a criança se adapta aos moldes que seus amigos, também adaptados, propõem e assim ela é aceita. Se um peixinho resolve nadar fora do cardume, entramos no mérito do bullying, e aí ficaríamos uma eternidade analisando mentes mirins com poderes inimagináveis.
E os efeitos práticos se propagam. Não só para meninas são vendidos produtos cor de rosa. Para mulheres também.  Geladeiras, microondas, liquidificadores, carros, telefones celulares, chapinhas, entre outros objetos entraram na estratégia de venda dos comerciantes que se estende e parece ignorar faixa etária. O problema não são só as cores, já que além da ciência estamos tratando de gostos e realmente existem meninas e mulheres que preferem rosa pelo simples fato da cor lhes parecerem mais atraente e bonita. Na verdade, a preocupação se concentra no conceito de feminilidade que vem “embutido no pacote”.
A reflexão futura dessa segregação em cores foi bem ilustrada em um comercial da campanha Reacciona Ecuador, el machismo es violência. O vídeo começa vai mostrando duas crianças, um menino e uma menina, e seus respectivos presentes ao longo da vida segundo os padrões: a menina uma boneca, o menino espadas, e assim sucessivamente. A evolução dos brinquedos acompanha a idade e, quando essas crianças se tornam adolescentes, seus presentes assumem um caráter crítico: o menino ganha luvas de boxe que fazem alusão à força adquirida do homem e sua permissão para usá-la da forma que bem entender, e a menina recebe algemas acompanhada de correntes semelhantes à dos presos de antigamente, como forma de submissão, ou “a cruz que a mulher tem de carregar”. A propaganda termina com esse mesmo casal presenteando seus filhos da mesma forma em que eles foram dando a entender que a tradição permanecerá. O homem se tornou machista e autoritário, e a mulher uma pessoa consentida e conformada. Obviamente, os autores desse comercial não tinham o intuito de incentivo, e sim de crítica. A mensagem que é passada no final deixa bem claro a real mensagem: “O machismo é um mal que se aprende, está em ti e você pode eliminá-lo.” Outro resultado da diferenciação se dá nos índices de mulheres que trabalham com games. Por serem afastadas desse tipo de jogo desde a infância, dificilmente seu interesse vêm a tona quando mais velha e com personalidade já formada. Apenas 11,3% dos funcionários dessa área são do sexo feminino. Fator apesar de absurdo, compreensível.
A “feminist frequency” é um site e também um canal no youtube feito por Anita Sarkeesian, uma crítica midiática formada na “California State University Northridge” em comunicação social, além de possuir um mestrado em “Pensamento político e social” na “York University”. Seus vídeos exploram a representação feminina na cultura de massa, ou seja, seu foco é quebrar estereótipos e debater questões sexistas, suas causas e consequências, propondo inclusive a inclusão feminina nos diferentes mercados de trabalho, em especial os digitais que são um dos mais carentes de toque feminino.

Seus vídeos, apesar de interessantes, abrangem de uma forma muito mais geral o feminismo do que o foco dessa pauta. Porém, uma de suas obras, “Toy Ads and Learning Gender” aborda novamente a diferenciação entre brinquedos, porém dessa vez falando das campanhas televisivas.  Anita expõe diferenças entre comerciais tanto quanto na sua música quanto na sua abordagem. Um de seus exemplos é de como o mesmo brinquedo pode ser apresentado de diferente forma. A areia de modelar “Moon Sand” é transmitida para meninos de uma forma aventureira, agressiva e inovadora, mostrando suas possibilidades criativas com uma música agitada que embala a quem assiste. Já para as meninas, o mesmo brinquedo é apresentado com cores, texto e música diferente. Uma areia lilás e rosa com um intuito decorativo que não explora a capacidade de criação da criança. É apenas mais um artefato “fofo” para meninas, sem nenhum cunho educativo ou nem mesmo encorajando-as a tomar conta de seus próprios ambientes. “Brinquedos de menina são geralmente desprovidos de imaginação e da parte criativa da brincadeira que é fundamental no desenvolvimento do jovem“ afirma a comunicóloga.

 

Apesar de não ter sido usado o termo em específico, muito do que foi dito por Anita está relacionado ao estudo da “femmephobia”, que é uma subconcepção do sexíssimo que entende que tudo ligado à feminilidade é inferior, ruim, idiota e de menor valor. Quando um menino demonstra interesse por algo tipicamente considerado feminino, sofre hoje uma repressão ainda maior do que quando a menina demonstra interesses fora do habitual. Isso explica, por exemplo, porque o machismo foi (e ainda é) muito mais “forte” e freqüente do que manifestações feministas. Ele também é muito mais compreendido perante aos outros por ser justamente mais comum. Manifestações feministas ainda nos dias de hoje não são vistas com bons olhos e são incompreendidas muitas vezes.
Tudo isso é muito estrutural. Assim como algumas meninas não querem comprar só bonecas, algumas mulheres também querem ter seus salários equiparados com os de homem. É uma luta que se estende desde os primeiros passos. A “supremacia do Pink” trás muito mais do que preferências, ela carrega consigo uma bagagem ideológica absurda. O movimento Pinkstinks reúne pessoas preocupadas tanto com o predomínio da cor rosa como com propagandas que impõem padrões de beleza definidos para crianças. Alguns dos slogans do grupo são “I´m no princess” e “future role model” (“eu não sou princesa” e “futura modelo de comportamento”, respectivamente). A preocupação está em toda a parte, menos nas pessoas que lucram com tudo isso.
Após tanta pesquisa e estudo, surge a pergunta: será que os próprios fabricantes desses brinquedos sabem do poder que eles exercem no subconsciente de uma criança que ainda está com o seu caráter em formação, ou se eles próprios foram educados dessa forma e não percebem o que estão fazendo? Que a propaganda é feita friamente calculada, nós percebemos. Mas além de preocupação econômica, será que os responsáveis possuem preocupação social? Ignorando possíveis julgamentos, fui atrás.
Acompanhei de perto o dia a dia do Guilherme (do começo do texto, lembra?). Frequentei sua escola e suas festinhas para analisar de perto a pressão infantil que se fazia em cima de suas indagações. Me surpreendi ao descobrir que as outras crianças possuíam as mesmas dúvidas, porém ninguém falava com medo de ser alvo de chacota. Extremamente compreensível visto que são crianças de cinco anos de idade que ainda não possuem determinados discernimentos. E, novamente uma surpresa: os meninos tem uma curiosidade maior pelos brinquedos femininos do que o contrário. “Cozinhar deve ser legal, a cozinha da Manuella (coleguinha de sala) tem muitos brinquedos juntos, porque não fazem uma azul? Ela tem um carro rosa da Susie!” desabafa Maurício, mesma sala que o Guilherme.
Conversando com Fernanda Forte, mãe e representante de vendas de uma fábrica de brinquedos, conheci o outro lado da moeda. “Uma vez fizemos um brinquedo que fazia sorvete na cor rosa, e recebemos muitas reclamações, já que muitos meninos queriam esse brinquedo. Então fizemos na cor azul e não tivemos os mesmos índices de venda”. Como mãe, Fernanda já enfrentou momentos de repressão com seu filho Felipe, oito anos. “Tentei ser delicada, mas sabia que se comprasse uma boneca e ele levasse no dia do brinquedo na escola, por exemplo, ele sofreria bullying. É complicado”.
Hoje, Felipe já desenvolveu uma auto repressão. Quando menor, era muito fã de Xuxa. Ao longo do tempo ele a classificou como “programas pra menina”. Sua mãe já o flagrou assistindo junto com sua irmã mais nova (Gabriela, quatro anos) recentemente, mas quando ele se dá conta de que está sendo assistido, ironiza a apresentadora e usa um termo que, apesar de pejorativo, é comum no meio infantil: “isso é coisa de bicha”. Nessa páscoa, até o ovo de páscoa que eles sempre pediam (Kinder Ovo) resolveu fazer duas versões – a rosa e a azul.
Então, o que fazer? Qual atitude os pais e fabricantes devem tomar? A resposta ainda é desconhecida. O fato é que já possuíamos um grande leque de brinquedos unissex graças aos avanços tecnológicos. Lego, jogos de raciocínio como quebra-cabeça, instrumentos musicais, as velhas e ainda boas bicicletas, entre outros. O incentivo não pode partir apenas da mídia e da indústria. A educação familiar é imprescindível na formação da consciência infantil, de forma que ela reconheça a diferenciação, mas não necessariamente a acate ou a use como forma de agressão e repressão. A segregação existe, e é necessária até mesmo na construção de uma identidade sexual. Mas usá-la com fins preconceituosos, ainda que inconscientes, é ineficiente e remete às questões futuras como machismo, homofobia e outros tipos de descriminação que cometemos há muito tempo e nunca analisamos de onde eles nascem. As crianças são o futuro!

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