ROUPAS VELHAS, NOVAS CAFONICES
Comprar em
brechó é reafirmação da identidade para alguns jovens em São Paulo
“Um pouco de mau gosto é como um agradável toque de páprica. Todos nós
precisamos de um pouco de mau gosto, é saudável, é físico, é emocionante. É do
não-gosto que sou realmente contra”.
Diana Vreeland
Ícone da moda internacional,
Antiga editora de Vogue e Harper's Bazaar
As minhas expectativas a respeito dos
brechós em São Paulo nunca foram muito grandes. Principalmente devido a minha
rinite, a aflição e o medo de ter um ataque de espirros e longos dias de vias
nasais congestionadas superavam a ansiedade e a vontade de encontrar algo
“super diferente e descolado” - como afirmava minha amiga Marcela, estudante de
moda, e mentora das nossas visitas aos mais diferentes brechós.
Naquela
tarde, ela me ligou decisiva: “Pedro, vou no B.Luxo, chamei um amigo, mas você
também precisa conhecer, já está mais do que na hora”. Nos encontramos ali na
Augusta e conheci o Airton – o tal amigo dela – que até aquele momento não
tinha apresentado nenhuma resistência. Contudo, ao entrarmos, descobrimos que a
decoração possuía elementos assustadores a sua concepção. Eram bonecas. Bonecas
antigas, dessas de porcelana, ou de plástico mesmo, com o cabelo falsificado
todo bagunçado e aqueles olhos congelados num ponto fixo indefinido. Estavam
por toda parte, apesar de um pouco camufladas pelo excesso de objetos antigos
muito característicos no recinto. Por alguma razão maior do que ele, o Airton
não aguentou ficar mais do que cinco minutos lá dentro. Esperou lá fora, na
porta. Eu e Marcela – na época estudávamos juntos na Santa Marcelina, faculdade
de moda – começamos a fuçar peça por peça em cada uma das araras, ganchos e
armários. Eu fiquei extasiado. Marcela me conhecia - e ainda me conhece - muito bem.
Não
nos importamos de deixar o Airton esperando, a experiência de gastar tempo
conhecendo e observando era muito cativante. Tão cativante que comecei a
estranhar. De acordo com minha mãe e suas opiniões, por vezes, avessas a
modernidade, brechós eram lugares onde pessoas desleixadas que não gostam de
perder tempo comprando roupas – porque não se importam nem um pouco com o que
vestem – encontram algo para vestir. Nesses lugares, outras pessoas, que tinham
roupas velhas, feias e quase inutilizáveis, tentavam ganhar algum dinheiro –
bem pouco, em geral – ao se desfazer daquela velharia. Essa concepção estava
muito distante daquilo que eu vi no B.Luxo. Algumas camisetas chegavam a custar
oitenta reais. Em algumas lojas de departamento é possível comprar até três
camisetas novas por esse valor.
“Depende
muito do que você quer, os brechós são muito divididos entre o que você tá
procurando e o quanto você quer gastar” diz Bruno Kawagoe, 20 anos, analista de
estilo da grife FIT. “[Existe] um brechó em Moema que tem roupas da Chanel, Dior, Lanvin”
informa o publicitário, frequentador assíduo de brechós. Essa visão prosaica e
atrasada da minha mãe caiu por terra há muito tempo. Aquele conceito de brechó
não consegue compreender a situação atual deste tipo de estabelecimento em São
Paulo. O mercado está mais desenvolvido e continua se desenvolvendo. Aliás, o
fato de existir uma lógica de mercado nesse caso já é algo que transcende o que
entendíamos por brechó no começo da década.
“A cultura de usar roupas que já
terminaram seu ciclo no mercado começa com os hippies. Depois, os grunges
retomam de novo o ‘vintage’ pelo lado ‘não tô nem aí’ da coisa. Talvez seja por
causa do estilo deles que a gente tenha associado, por um bom tempo, o consumo
em brechó com desleixo” explica a mestre em ciência da informação e professora
de cursos de graduação e pós-graduação em moda, Astrid Façanha. Contudo, ela
também acredita que com a popularização dos brechós, o sentido do termo
“vintage” se banalizou. “Se emprestarmos a terminologia da enogastronomia –
[que compreende os] vinhos – a gente percebe que ‘vintage’ é uma safra
especial, então ‘vintage’ na moda seria uma época marcante, uma escola de um
estilista que foi realmente importante para história. Por exemplo: uma peça
Chanel, da fase russa, é ‘vintage’, uma peça Yves Saint Laurent da fase
andrógena também é”.
O conceito de “vintage” se alterou quase
completamente, e está muito comum entre os ditos “fashionistas” (aficionados
por moda). Marina Duarte, 24 anos, era publicitária em Goiânia, mas, infeliz
com sua vida profissional, jogou tudo para o alto e veio para São Paulo tentar
a sorte no mundo da moda. Foi só depois da mudança que ela começou a se
interessar por comprar em brechós. Sua intenção ao fazer isso é encontrar
roupas que representem o casamento entre o alternativo e o exclusivo. “Comprar
coisas novas com exclusividade é um luxo que eu não posso bancar, (...)
portanto [comprar em brechó] é a possibilidade de ter algo que é exclusivo e
que nem por isso é caro, (...) se você souber onde procurar”, justificou.
O novo significado da palavra “vintage”
está, hoje em dia, associado à originalidade de estilo e às opções diferentes de
se vestir, encontradas nas roupas de outras épocas. “Há um tempo atrás, existia
um certo preconceito por ser usado, velho, cafona... Mas, quando se passa por
cima desse preconceito, você encontra verdadeiros tesouros” conta a ex-publicitária,
fã de Duran Duran, que acredita que o “bom gosto” é algo extremamente
limitador. Astrid Façanha explica que no Brasil, os brechós se tornaram uma
alternativa diferente para o jovem consumidor médio do país que estava preso
entre a falta de estilo e propostas de moda das lojas mais populares e os
preços impraticáveis das lojas luxuosas.
RATOS
DE BRECHÓ
Esse é o termo que designa aquelas pessoas
que são completamente viciadas e acostumadas a comprar em brechós. Elas estão
tão habituadas a fazer compras nesses lugares, que, entre elas, existe um termo
chamado “olho de brechó”. De acordo com Nathalia Zemel, 22 anos – desde os dez anos
de idade já frequenta brechós com sua irmã – “olho de brechó” é a capacidade de
descobrir, em pouco tempo, se aquele brechó específico merece ou não ser
explorado a fundo. “Uma vez que eu estou lá dentro e achei que o brechó é bom,
eu fuço ele inteiro, (...) o olho para brechó nem sempre funciona” confessa.
Os hábitos de consumo desses jovens variam
muito. Os processos são muito particulares. Por vezes, a ocasionalidade de
morar ou trabalhar perto de um bom brechó é um fator que influencia a
frequência desses consumidores nesses estabelecimentos. Não é sempre que eles
estão dispostos a fazer “maratonas” de brechó que envolvem visitas a três ou
mais brechós no mesmo dia, mas “garimpar” é algo considerado por quase todos
eles, algo imprescindível. “Tem que garimpar. (...) Se você quer achar um
negocio bom e quer gastar pouco, tem que procurar: colocar a mão lá embaixo,
puxar o tecido, conferir se serve... É um processo demorado, mas é um hobbie. Eu adoro ficar em brechós,
procurando, experimentando...” conta Bruno que costumava visitar diferentes
brechós na região da Rua Augusta semanalmente.
Nathalia diz que quem é fanático mesmo vai
desde o bazar da igreja que tem peças por dois reais, até o brechó “mais caro
que a Zara”. Trabalho, faculdade e outros afazeres impedem que esses jovens vão
mais aos brechós, Bruno tem ido com menos frequência, e Nathalia não tem mais o
mesmo pique de antes para encarar maratonas em busca de achados perfeitos.
Quando perguntei para Nathalia se poderia
a entrevistar, ela me respondeu positivamente, contudo colocou só uma condição:
disse que não contaria em quais brechós compra suas roupas. “Só vou falar os
que todo mundo conhece, tá?”, eu concordei. Depois de conversar com várias
pessoas percebi que sempre que eu perguntava aonde ficavam os brechós que elas
compravam as respostas eram vagas ou óbvias. “Ah, uns lá na Vila Madalena...”,
ou então “Os da Augusta, em geral”. Manter em segredo os endereços é uma
espécie tentativa, por parte dos clientes, de não massificar os produtos e
conseguir elevar, cada vez mais, a exclusividade das peças compradas. Se
ninguém sabe aonde comprar, ninguém terá um vestido, ou uma calça, ou qualquer
outra coisa igual à sua.
A
ÚLTIMA BATALHA DO ESTILO
“Um dos meus amigos me disse que agora
chamam esse tecido de algodão podre” conta Ana Paula Mohallen, 21 anos que
começou a ir em brechós por influência de seus amigos que estudam moda. “É uma
delícia”. A sensação da roupa que já foi usada, e que não pertence ao nosso momento
histórico gera curiosidade e interesse nesses jovens. Saber que elas marcaram
uma época específica é um atrativo. O intuito não é achar algo que não pareça
velho, pelo contrário: “Eu gosto de imaginar quem usou, porque usou, porque
vendeu, etc. Quando você usa no presente, a roupa ganha uma conotação
diferente, tem uma informação diferente”. É como se a roupa, por ser antiga,
legitimasse a individualidade de quem a veste. “Já fui em muita festa de
família com vestido de ombreira oitentista. Todo mundo ficava me olhando!”, brinca
Nathalia, relembrando momentos constrangedores envolvendo seu estilo.
“Hoje em dia, é como se as roupas não
tivessem mais história. Elas passam tão rápido que não conseguem mais marcar
época”, explica Astrid. Ao mesmo tempo que o conceito de fast-fashion domina o
mercado de moda – grandes lojas que vendem roupas por um preço relativamente
acessível, conectadas com as tendências mais frívolas e fugazes – observa-se
que as grandes marcas de luxo – tais como, Prada, Dior, Chanel – e até mesmo
estilistas menores estão com os olhos voltados ao passado. Regina Guerreiro,
ex-editora da Vogue Brasil e uma das figuras mais influentes e respeitadas na
moda brasileira sentencia: “A moda está usando mais da memória do que da
criatividade”.
É nesse contexto que a roupa de brechó
surge como, realmente, uma reafirmação do estilo próprio. “As vantagens [de
comprar em brechó] são muitas, se você compra uma camisa na Zara, um monte de
gente pode ter a mesma peça e usá-la da mesma forma. Você fica preso a esse
estilo imposto” argumenta Nathalia. A lógica é a seguinte: se a roupa durou até
o ponto de estar no brechó e bem conservada é porque, de alguma forma, ela é
mais durável em diferentes aspectos: estético e qualitativo.
“Se nós olharmos para as peças ‘vintage’,
elas têm o seu certo valor pela construção, pelos tecidos feitos à mão, pelo
material ter um trabalho artesanal, como um bordado, um acabamento, que as
peças de hoje não tem mais”, considera Astrid. Atualmente, a porcentagem de
fibras naturais – algodão, seda, linho, lã, entre outras – são muito menores do
que as fibras sintéticas. A roupa é industrializada em todos os sentidos. Desde
a produção do tecido até a estilística, tudo acabou se tornando hiper-mecanizado.
De certa forma, o brechó ainda é uma maneira de “respirar” fora desse circuito
capitalista desregrado. Talvez, a roupa usada ou antiga ainda preserve um pouco
da aura de um tempo quando ela tinha um cuidado maior ao ser feita, costurada,
e utilizada.
A máxima de Astrid ao final da entrevista
era esta: “Ser ‘vintage’ é ser original”, provavelmente, ela está correta.
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