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sábado, 20 de abril de 2013

Reportagem Temática - Letícia Dias


Transmídia is the new black

Através de todo tipo de tecnologia, novos criadores de conteúdo online quebram todas as barreiras de narrativa




No dia 1 de janeiro de 2007, John e Hank Green começaram o projeto Brotherhood 2.0. O objetivo era simples: durante um ano, os irmãos iriam deixar de lado toda comunicação baseada em texto e conversar através de video blogs diários que seriam disponibilizados no YouTube. Em dezembro de 2007, com o final do projeto, os VlogBrothers decidiram manter seu canal, apenas diminuindo a frequência dos vídeos.
Em março desse ano, o canal dos irmãos Green ultrapassou 1 milhão de inscritos. Sua comunidade de fãs, batizada de Nerdfighteria, é organizada, participativa e unida, apesar do tamanho. O grupo torna-se um porto seguro para adolescentes ao redor do mundo, e acaba sendo um dos motivos que impedem os irmãos de aceitarem as inúmeras ofertas que recebem de canais de televisão: “Nós não queremos que os nerdfighters virem um fenômeno cultural mainstream” explica John, “O que me preocupa é o fato de fenômenos culturais mainstream precisarem de uma Mensagem Singular e uma Marca Definida. Isso não nos interessa de modo algum. Nós só queremos produzir coisas legais com pessoas das quais gostamos”.

YOUTUBE NA SALA DE AULA

Em 2011, o Google investiu 100 milhões de dólares no que eles chamaram de YouTube Original Channel Initiative, um projeto para incentivar a criação de conteúdo original feito especialmente para internet. Entre os recipientes do incentivo estão estrelas como Madonna, as atrizes Amy Poehler e Sofia Vergara e a ex-estrela de basquete Shaquille O’Neal. Vloggers já estabelecidos como os Green também foram contemplados. Com os fundos da iniciativa, os irmãos fundaram dois canais independentes, ambos educacionais.
Em, SciShow, Hank discute novidades no campo das Ciências Naturais,  além de sua história, com “partes iguais de ceticismo e entusiasmo”.  De modo divertido, sempre com gráficos coloridos e chamativos, ele tenta simplificar conceitos científicos sem explicá-los de forma vazia.
Já o canal Crash Course é dividido em séries que exploram matérias escolares específicas. John já completou cursos História Geral e Literatura Inglesa, e começou História Americana em 31 de janeiro de 2013, enquanto Hank  deu início ao de Química em fevereiro, após completar os de Ecologia e Biologia. Os vídeos do canal vem sendo cada vez mais utilizados em salas de aula pelo formato dinâmico e pelos recursos visuais.

UM OLHAR DE DENTRO

Hank Green mantém em torno de 10 canais no YouTube com 500.000.000 visualizações combinadas. Ele também idealizou a VidCon, a primeira e maior conferência dedicada a vídeos online. Há mais de 6 anos produzindo conteúdo diariamente, Hank tem muito a dizer sobre o meio:
Letícia Dias: Em se tratando de construir uma comunidade de fãs, quanto depende de talento e quanto de sorte?
Hank Green: Eu acho que vai além de sorte e talento. Ambição e esperteza também influem. Não existe ninguém no YouTube (incluindo eu e o John) que chegou onde está sem “dançar conforme a música” pelo menos um pouco. Voltando a sua pergunta, tem muito a ver com sorte. No nosso caso em particular, teve também a ver com nós termos começado quando começamos, numa época que era muito mais fácil ser notado, e quando ter 10.000 inscritos parecia importante e incrível, o que nos fazia trabalhar cada vez mais duro para eles, apesar de hoje nós conseguirmos esse número de inscrições numa semana.
LD: É possível medir com precisão a força e dedicação de uma comunidade com base em números de inscritos e visualizações?
HG: De jeito nenhum. O que eu vou dizer pode parecer grosseiro, mas eu juro que não é. O melhor modo de medir o quão dedicada uma comunidade é (pela minha experiência) é a venda de merchandise. No nosso site, DFTBA, nós vendemos camisetas de várias pessoas, e eu sempre fico surpreso com como canais com 50.000 inscritos vendem mais que um com 2 milhões.
LD: Baseando-se em seus próprios projetos, você acha que conteúdo que você produziu fora do VlogBrothers conseguiu uma audiência independente, quer dizer, com membros que acharam esse conteúdo sem fazer parte da Nerdfighteria?
HG: Com certeza! Eu fui a uma convenção de video games recentemente e fui reconhecido quase exclusivamente como “o cara do SciShow” e não “Hank Green do VlogBrothers”. O público do SciShow  é 80% masculino e 60% acima de 20 anos. Já o da websérie The Lizzie Bennet Diaries é 80% feminino e 60% abaixo de 20 anos.
Parte do motivo de eu gostar de criar esses conteúdos independentes é que uma comunidade forte pode crescer só até um certo ponto até não ser mais uma. Criando esses pontos focais dentro da nossa comunidade, nós encorajamos grupos menores, independentes e mais fortes, no lugar de uma bolha enorme que não consegue sustentar o próprio peso.
LD: O que você acha que tem mais chances de criar uma comunidade: um conceito interessante de show ou vlogs mais tradicionais? Se forem os vlogs, como é possível se destacar em meio a uma multidão de pessoas fazendo a mesma coisa?
HG: Formato vs. personalidade? Antigamente, você realmente podia criar um canal baseado puramente na sua personalidade e ele ia deslanchar. Isso é muito mais difícil de acontecer agora. Na verdade, é quase impossível, a menos que você tenha uma personalidade insanamente carismática ou já seja famoso.
Hoje, o caminho parece ser começar com o formato, mas deixar o você real brilhar, não criar um personagem, só você sendo você mesmo e sendo adorável e legal e entusiasmado sobre o que você está fazendo. As pessoas se interessam pelo formato primeiro e pela personalidade em segundo, mas o relacionamento com a personalidade acaba sendo muito mais valioso para ambos os lados da interação. É só bem mais difícil chegar a esse ponto agora que o Youtube (para muitas pessoas) deixou de ser uma plataforma de comunidade e passou a ser uma plataforma de entretenimento.
LD: Quão realista é esperar fazer uma carreira no YouTube em 2013? É muito competitivo? Ficará mais fácil ou difícil nos próximos anos?
HG: Eu acho que pode ficar mais fácil em breve, não porque vai ser mais fácil conseguir uma audiência de 1 milhão de pessoas, mas porque será mais fácil conseguir se manter com o dinheiro proveniente de uma comunidade com menos membros. Eu quero que seja mais fácil se manter e mais difícil enriquecer. Esse é basicamente meu objetivo para 2013.

O QUE ACONTECERIA SE ELIZABETH BENNET TIVESSE UM VLOG?

A resposta para essa pergunta é a websérie The Lizzie Bennet Diaries. Idealizada por Hank Green e Bernie Su, o capítulo de estreia lançado há pouco mais de um ano ultrapassou 1 milhão de visualizações.
Foi uma experiência inédita tanto no campo de conteúdo online quanto no campo de contar histórias. O enredo de Orgulho & Preconceito foi transferido para os Estados Unidos do século XXI e Lizzie Bennet virou uma  estudante de Comunicação e Mídias Sociais que conta sua vida e a convivência com a mãe obcecada por casamento e as duas irmãs em dois vlogs semanais. A série deu origem a três outros canais de conteúdo focados em personagens secundários. Além disso, num pioneirismo de storytelling via transmídia, todos os personagens tinham perfis em redes sociais, então parte do enredo se desenvolvia fora das câmeras.  Na verdade, a história começou no Twitter antes mesmo do primeiro vídeo ser postado.
Tanto Hank quanto Bernie estão cientes do que conquistaram completando a websérie: “Eu esperava criar algo que fosse ser estudado daqui a 50 anos. Eu sabia que era ambicioso e eu me sinto absolutamente humilde com o que nós conquistamos” afima Green. “Nós fomos os primeiros a contar uma história dessa forma. Quando começou, nós não sabíamos se iríamos passar do episódio 8, e há uma semana finalizamos a série no episódio 100. As pessoas vão analisar o que fizemos, exaltar nossos êxitos e criticar o que fizemos de errado, e eu fico feliz que seja assim”, diz Su “Tudo que eu tenho a dizer é que nós demos tudo que tínhamos. Está tudo lá, ninguém pode dizer que nós não tentamos – é a única coisa que eu sempre posso dizer. Eu estou realmente orgulhoso do meu time, de todos os envolvidos, e do que nós conquistamos”, completa.
TLBD é a prova de que o conteúdo e a qualidade importam mais que o meio para os fãs. Algumas semanas antes do fim da série, os criadores lançaram um projeto no site de crowdfunding Kickstarter para lançar a série em DVD, além de produzir um spin off  curto baseado no manuscrito inacabado de Janes Austen e uma adaptação de outro clássico para uma nova série longa. O spin off, Welcome to Sanditon, estrelará Gigi Darcy e já está sendo gravado. A nova série longa está em pré-produção, embora o livro escolhido ainda seja um mistério.
O prazo para investir no projeto acaba dia 22 de abril e até esse momento, foram arrecadados 415.000 dólares, quase 700% do objetivo original. “Parte dinheiro extra será revertido para os membros da equipe, porque o trabalho não era extremamente lucrativo durante o ano! E o resto usado para refinar o conteúdo do DVD” explica Bernie, “Um extra com o qual eu estou muito feliz são as legendas. Era uma ambição minha. Ainda não sabemos exatamente qual o orçamento do DVD, então não podemos afirmar quantas serão, mas a primeira língua da lista é o Português, sem dúvida! Nós temos uma fanbase incrível no Brasil”.
Os números não mentem – em todas as estatísticas, o Brasil aparece no topo das listas de participação, geralmente o único país cuja língua oficial não é inglês a aparecer tão alto. Essa realidade surpreendeu Bernie? “A princípio sim, mas depois eu percebi que não deveria. Durante esse ano, eu aprendi que o Brasil, como país, é muito conectado tecnologicamente. Não foi exatamente uma surpresa – acho fiquei impressionado com a facilidade e a rapidez com que vocês superaram a barreira linguística.” Ele ainda dá a dica para produtores de conteúdo online: “Vocês tem que estar cientes de que o Brasil é um país conectado, que assimila novas tecnologias rapidamente e é enorme! É o quinto maior país do mundo. É um público grande para focar.”

BRASIL EM FOCO

O Brasil não tem apenas público – a tecnologia já está aqui. Em 2012, a Rede Globo tornou-se a segunda maior broadcaster de televisão do mundo, perdendo apenas para a americana  ABC, e o interesse dela em transmídia (TS) já tem algum tempo.
Em 2010, a Globo convidou os acadêmicos pioneiros no estudo de novas mídias, Jeff Gomez e Henry Jenkins, para realizar workshops, apresentações e discussões sobre TS e suas possibilidades de desenvolvimento no país. Na época, Gomez afirmou que “embora o mercado de transmídia ainda esteja engatinhando no Brasil, não quer dizer que é um fenômeno efêmero.  É uma disciplina importante e estratégica que pode ajudar a evolução da comunicação como a conhecemos”. Jenkins enfatizou que o perfil do brasileiro já é voltado para a convergência, considerando que estamos inseridos num país com recursos tecnológicos avançados e uma forte tradição de cultura popular.
O Henry Jenkins Transmedia Lab foi lançado em abril de 2012 com o objetivo de desenvolver projetos nessa área nos EUA e no Brasil. Por que aqui? Jenkins justifica em quatro pontos simples: forte influência cultural; visibilidade internacional; o papel central que a mídia está assumindo no país; e o vasto potencial de ações transmidiáticas direcionadas ao fandom brasileiro. Maurício Motta, Chief Storytelling Officer e co-fundador da The Alchemists, outra empresa de transmídia baseada em parte no Brasil, completa: companhias nacionais e internacionais estão investindo muito em estratégias transmidiáticas aqui, além do crescimento relevante da classe média, que aumenta a demanda por conteúdo transmidiático em maior quantidade e de melhor qualidade.

NA PRÁTICA

Transmídia não significa disponibilizar o mesmo conteúdo em diferentes plataformas: trata-se de usar as novas plataformas para ampliar as informações transmitidas, a fim de transformar o contato do público com o conteúdo, aumentando a imersão.
A primeira vez que uma narrativa transmidiática foi integrada efetivamente numa novela brasileira foi em 2009, em Viver a Vida, em que personagem Luciana, interpretada pela atriz Alinne Moraes, teve um blog. O primeiro post foi publicado em fevereiro de 2010, logo depois do workshop de Jeff Gomez com um time de produtores da Rede Globo. Alguns eventos da novela foram apresentados exclusivamente no blog, como o pedido de casamento feito por Miguel, namorado de Luciana. Nesse caso, só o público que migrou da televisão para o blog soube como isso se deu.
Em 2012, o primeiro clipe de Cheias de Charme foi postado no site da novela antes mesmo do primeiro capítulo e em 24 horas recebeu 4 milhões de cliques. Foi nesse ano também que a Globo incorporou o posto de produtor de conteúdo transmidiático.


E O JORNALISMO NISSO?

Com o imediatismo exigido atualmente, é quase arcaico não pensar o Jornalismo com base nessas plataformas. O maior exemplo no Brasil hoje é o Profissão Repórter. Além do programa de televisão em si, os bastidores são extendidos no blog, e o processo de apuração  é relatado em tempo real através do perfil no Twitter. No site do programa, existe a sessão “Você no Profissão Repórter”, onde o público participa mandando vídeos, textos e fotos. A tendência é que o estilo de narrativa transmídia chegue a todo tipo de produção de conteúdo, e cabe aos profissionais da área entenderem como utilizer essas possibilidades de forma eficiente e de qualidade. 

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