Transmídia is
the new black
Através de
todo tipo de tecnologia, novos criadores de conteúdo online quebram todas as
barreiras de narrativa
No dia 1 de janeiro de 2007, John e Hank Green começaram o
projeto Brotherhood 2.0. O objetivo
era simples: durante um ano, os irmãos iriam deixar de lado toda comunicação
baseada em texto e conversar através de video
blogs diários que seriam disponibilizados no YouTube. Em dezembro de 2007,
com o final do projeto, os VlogBrothers decidiram
manter seu canal, apenas diminuindo a frequência dos vídeos.
Em março desse ano, o canal dos irmãos Green ultrapassou 1
milhão de inscritos. Sua comunidade de fãs, batizada de Nerdfighteria, é organizada, participativa e unida, apesar do
tamanho. O grupo torna-se um porto seguro para adolescentes ao redor do mundo,
e acaba sendo um dos motivos que impedem os irmãos de aceitarem as inúmeras
ofertas que recebem de canais de televisão: “Nós não queremos que os nerdfighters virem um fenômeno cultural mainstream” explica John, “O que me
preocupa é o fato de fenômenos culturais mainstream
precisarem de uma Mensagem Singular e uma Marca Definida. Isso não nos
interessa de modo algum. Nós só queremos produzir coisas legais com pessoas das
quais gostamos”.
YOUTUBE NA SALA DE
AULA
Em 2011, o Google investiu 100 milhões de dólares no que eles
chamaram de YouTube Original Channel
Initiative, um projeto para incentivar a criação de conteúdo original feito
especialmente para internet. Entre os recipientes do incentivo estão estrelas
como Madonna, as atrizes Amy Poehler e Sofia Vergara e a ex-estrela de basquete
Shaquille O’Neal. Vloggers já
estabelecidos como os Green também foram contemplados. Com os fundos da
iniciativa, os irmãos fundaram dois canais independentes, ambos educacionais.
Em, SciShow, Hank
discute novidades no campo das Ciências Naturais, além de sua história, com “partes iguais de
ceticismo e entusiasmo”. De modo
divertido, sempre com gráficos coloridos e chamativos, ele tenta simplificar
conceitos científicos sem explicá-los de forma vazia.
Já o canal Crash Course
é dividido em séries que exploram matérias escolares específicas. John já
completou cursos História Geral e Literatura Inglesa, e começou História
Americana em 31 de janeiro de 2013, enquanto Hank deu início ao de Química em fevereiro, após
completar os de Ecologia e Biologia. Os vídeos do canal vem sendo cada vez mais
utilizados em salas de aula pelo formato dinâmico e pelos recursos visuais.
UM OLHAR DE DENTRO
Hank Green mantém em torno de 10 canais no YouTube com
500.000.000 visualizações combinadas. Ele também idealizou a VidCon, a primeira
e maior conferência dedicada a vídeos online. Há mais de 6 anos produzindo conteúdo
diariamente, Hank tem muito a dizer sobre o meio:
Letícia Dias: Em se tratando de construir uma comunidade de fãs, quanto
depende de talento e quanto de sorte?
Hank Green: Eu acho que vai além de sorte e talento. Ambição
e esperteza também influem. Não existe ninguém no YouTube (incluindo eu e o
John) que chegou onde está sem “dançar conforme a música” pelo menos um pouco.
Voltando a sua pergunta, tem muito a ver com sorte. No nosso caso em
particular, teve também a ver com nós termos começado quando começamos, numa
época que era muito mais fácil ser notado, e quando ter 10.000 inscritos
parecia importante e incrível, o que nos fazia trabalhar cada vez mais duro
para eles, apesar de hoje nós conseguirmos esse número de inscrições numa
semana.
LD: É possível medir com precisão a força e dedicação de uma comunidade
com base em números de inscritos e visualizações?
HG: De jeito nenhum. O que eu vou dizer pode parecer
grosseiro, mas eu juro que não é. O melhor modo de medir o quão dedicada uma
comunidade é (pela minha experiência) é a venda de merchandise. No nosso site,
DFTBA, nós vendemos camisetas de várias pessoas, e eu sempre fico surpreso com
como canais com 50.000 inscritos vendem mais que um com 2 milhões.
LD: Baseando-se em seus próprios projetos, você acha que conteúdo que
você produziu fora do VlogBrothers conseguiu uma audiência independente, quer
dizer, com membros que acharam esse conteúdo sem fazer parte da Nerdfighteria?
HG: Com certeza! Eu fui a uma convenção de video games recentemente e fui
reconhecido quase exclusivamente como “o cara do SciShow” e não “Hank Green do VlogBrothers”.
O público do SciShow é 80% masculino e 60% acima de 20 anos. Já o
da websérie The Lizzie Bennet Diaries é
80% feminino e 60% abaixo de 20 anos.
Parte do motivo de eu gostar de criar esses conteúdos
independentes é que uma comunidade forte pode crescer só até um certo ponto até
não ser mais uma. Criando esses pontos focais dentro da nossa comunidade, nós
encorajamos grupos menores, independentes e mais fortes, no lugar de uma bolha
enorme que não consegue sustentar o próprio peso.
LD: O que você acha que tem mais chances de criar uma comunidade: um
conceito interessante de show ou vlogs mais tradicionais? Se forem os vlogs,
como é possível se destacar em meio a uma multidão de pessoas fazendo a mesma
coisa?
HG: Formato vs. personalidade? Antigamente, você realmente
podia criar um canal baseado puramente na sua personalidade e ele ia
deslanchar. Isso é muito mais difícil de acontecer agora. Na verdade, é quase
impossível, a menos que você tenha uma personalidade insanamente carismática ou
já seja famoso.
Hoje, o caminho parece ser começar com o formato, mas deixar
o você real brilhar, não criar um personagem, só você sendo você mesmo e sendo
adorável e legal e entusiasmado sobre o que você está fazendo. As pessoas se
interessam pelo formato primeiro e pela personalidade em segundo, mas o
relacionamento com a personalidade acaba sendo muito mais valioso para ambos os
lados da interação. É só bem mais difícil chegar a esse ponto agora que o
Youtube (para muitas pessoas) deixou de ser uma plataforma de comunidade e
passou a ser uma plataforma de entretenimento.
LD: Quão realista é esperar fazer uma carreira no YouTube em 2013? É
muito competitivo? Ficará mais fácil ou difícil nos próximos anos?
HG: Eu acho que pode ficar mais fácil em breve, não porque
vai ser mais fácil conseguir uma audiência de 1 milhão de pessoas, mas porque
será mais fácil conseguir se manter com o dinheiro proveniente de uma
comunidade com menos membros. Eu quero que seja mais fácil se manter e mais
difícil enriquecer. Esse é basicamente meu objetivo para 2013.
O QUE ACONTECERIA SE ELIZABETH
BENNET TIVESSE UM VLOG?
A resposta para essa pergunta é a websérie The Lizzie Bennet Diaries. Idealizada por Hank Green e
Bernie Su, o capítulo de estreia lançado há pouco mais de um ano ultrapassou 1
milhão de visualizações.
Foi uma experiência inédita tanto no campo de conteúdo online
quanto no campo de contar histórias. O enredo de Orgulho & Preconceito foi transferido para os Estados Unidos do
século XXI e Lizzie Bennet virou uma
estudante de Comunicação e Mídias Sociais que conta sua vida e a
convivência com a mãe obcecada por casamento e as duas irmãs em dois vlogs semanais. A série deu origem a
três outros canais de conteúdo focados em personagens secundários. Além disso,
num pioneirismo de storytelling via
transmídia, todos os personagens tinham perfis em redes sociais, então parte do
enredo se desenvolvia fora das câmeras. Na
verdade, a história começou no Twitter antes mesmo do primeiro vídeo ser
postado.
Tanto Hank quanto Bernie estão cientes do que conquistaram
completando a websérie: “Eu esperava criar algo que fosse ser estudado daqui a
50 anos. Eu sabia que era ambicioso e eu me sinto absolutamente humilde com o
que nós conquistamos” afima Green. “Nós fomos os primeiros a contar uma
história dessa forma. Quando começou, nós não sabíamos se iríamos passar do
episódio 8, e há uma semana finalizamos a série no episódio 100. As pessoas vão
analisar o que fizemos, exaltar nossos êxitos e criticar o que fizemos de
errado, e eu fico feliz que seja assim”, diz Su “Tudo que eu tenho a dizer é
que nós demos tudo que tínhamos. Está tudo lá, ninguém pode dizer que nós não
tentamos – é a única coisa que eu sempre posso dizer. Eu estou realmente
orgulhoso do meu time, de todos os envolvidos, e do que nós conquistamos”,
completa.
TLBD é a prova de
que o conteúdo e a qualidade importam mais que o meio para os fãs. Algumas
semanas antes do fim da série, os criadores lançaram um projeto no site de crowdfunding Kickstarter para lançar a série em DVD, além de
produzir um spin off curto baseado no manuscrito inacabado de Janes
Austen e uma adaptação de outro clássico para uma nova série longa. O spin off, Welcome to Sanditon, estrelará
Gigi Darcy e já está sendo gravado. A nova série longa está em pré-produção,
embora o livro escolhido ainda seja um mistério.
O prazo para investir no projeto acaba dia 22 de abril e até
esse momento, foram arrecadados 415.000 dólares, quase 700% do objetivo
original. “Parte dinheiro extra será revertido para os membros da equipe,
porque o trabalho não era extremamente lucrativo durante o ano! E o resto usado
para refinar o conteúdo do DVD” explica Bernie, “Um extra com o qual eu estou
muito feliz são as legendas. Era uma ambição minha. Ainda não sabemos
exatamente qual o orçamento do DVD, então não podemos afirmar quantas serão,
mas a primeira língua da lista é o Português, sem dúvida! Nós temos uma fanbase incrível no Brasil”.
Os números não mentem – em todas as estatísticas, o Brasil
aparece no topo das listas de participação, geralmente o único país cuja língua
oficial não é inglês a aparecer tão alto. Essa realidade surpreendeu Bernie? “A
princípio sim, mas depois eu percebi que não deveria. Durante esse ano, eu
aprendi que o Brasil, como país, é muito conectado tecnologicamente. Não foi
exatamente uma surpresa – acho fiquei impressionado com a facilidade e a
rapidez com que vocês superaram a barreira linguística.” Ele ainda dá a dica
para produtores de conteúdo online: “Vocês tem que estar cientes de que o
Brasil é um país conectado, que assimila novas tecnologias rapidamente e é enorme! É o quinto maior país do mundo. É um público grande para focar.”
BRASIL EM FOCO
O Brasil não tem apenas público – a tecnologia já está aqui.
Em 2012, a Rede Globo tornou-se a segunda maior broadcaster de televisão do mundo, perdendo apenas para a
americana ABC, e o interesse dela em
transmídia (TS) já tem algum tempo.
Em 2010, a Globo convidou os acadêmicos pioneiros no estudo
de novas mídias, Jeff Gomez e Henry Jenkins, para realizar workshops, apresentações e discussões sobre TS e suas
possibilidades de desenvolvimento no país. Na época, Gomez afirmou que “embora
o mercado de transmídia ainda esteja engatinhando no Brasil, não quer dizer que
é um fenômeno efêmero. É uma disciplina
importante e estratégica que pode ajudar a evolução da comunicação como a
conhecemos”. Jenkins enfatizou que o perfil do brasileiro já é voltado para a
convergência, considerando que estamos inseridos num país com recursos
tecnológicos avançados e uma forte tradição de cultura popular.
O Henry Jenkins Transmedia Lab foi lançado em abril de 2012
com o objetivo de desenvolver projetos nessa área nos EUA e no Brasil. Por que
aqui? Jenkins justifica em quatro pontos simples: forte influência cultural;
visibilidade internacional; o papel central que a mídia está assumindo no país; e o vasto
potencial de ações transmidiáticas direcionadas ao fandom brasileiro. Maurício Motta, Chief Storytelling Officer e co-fundador da The Alchemists, outra empresa de
transmídia baseada em parte no Brasil, completa: companhias nacionais e
internacionais estão investindo muito em estratégias transmidiáticas
aqui, além do crescimento relevante da classe média, que aumenta a demanda por
conteúdo transmidiático em maior quantidade e de melhor qualidade.
NA PRÁTICA
Transmídia não significa disponibilizar o mesmo conteúdo em diferentes
plataformas: trata-se de usar as novas plataformas para ampliar as informações
transmitidas, a fim de transformar o contato do público com o conteúdo, aumentando
a imersão.
A primeira vez que uma narrativa transmidiática foi integrada
efetivamente numa novela brasileira foi em 2009, em Viver a Vida, em que personagem Luciana, interpretada pela atriz
Alinne Moraes, teve um blog. O
primeiro post foi publicado em
fevereiro de 2010, logo depois do workshop
de Jeff Gomez com um time de produtores da Rede Globo. Alguns eventos da
novela foram apresentados exclusivamente no blog, como o pedido de casamento
feito por Miguel, namorado de Luciana. Nesse caso, só o público que migrou da
televisão para o blog soube como isso
se deu.
Em 2012, o primeiro clipe de Cheias
de Charme foi postado no site da novela antes mesmo do primeiro capítulo e
em 24 horas recebeu 4 milhões de cliques. Foi nesse ano também que a Globo
incorporou o posto de produtor de conteúdo transmidiático.
E O
JORNALISMO NISSO?
Com o imediatismo exigido atualmente, é quase arcaico não pensar o
Jornalismo com base nessas plataformas. O maior exemplo no Brasil hoje é o Profissão Repórter. Além do programa de
televisão em si, os bastidores são extendidos no blog, e o processo de apuração
é relatado em tempo real através do perfil no Twitter. No site do programa, existe a sessão “Você
no Profissão Repórter”, onde o público participa mandando vídeos, textos e
fotos. A tendência é que o estilo de narrativa transmídia chegue a todo tipo de
produção de conteúdo, e cabe aos profissionais da área entenderem como utilizer
essas possibilidades de forma eficiente e de qualidade.
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