Pages

sábado, 20 de abril de 2013

Reportagem Temática - Victoria Matsumoto


Mulheres de muitos amores

Não se sabe ao certo quando surgiram, mas dizem que é a mais antiga profissão do mundo.

Por Victoria Matsumoto



Estigmatizadas, marginalizadas e fetichizadas: as garotas de programa rondam o imaginário popular e midiático com um só figurino: a moça pobre que não tinha outra opção a não ser se prostituir, uma vítima do sistema. Mas será que esse é o único caminho que leva meninas de variados perfis sociais a utilizarem seus corpos como ferramenta de trabalho? Por mais que a prostituição seja considerada uma das mais antigas profissões do mundo, os (pré) conceitos que a rodeiam moldaram-se de acordo com a mentalidade vigente, não ajudando em uma significativa transformação do estereótipo que se criou ao redor dessa figura feminina.

Nem sempre a prostituta foi vista de modo pejorativo. Em As Prostitutas na História, Nickie Roberts apresenta um sistema matriarcal no Antigo Oriente onde a figura da mulher é associada com o poder da criação da vida, as mulheres participavam de cerimônias religiosas como sacerdotisas e faziam parte de rituais sexuais. Nota-se ai o “nascimento” da meretriz, que naquela época era ligada a uma divindade e muito respeitada. Reis dormiam com elas como um ritual para obter benção e legitimar seu poder.

Com a ascensão do patriarcado surgiu também a segregação entre prostitutas e esposas, aquelas que eram livres e “sexualmente autônomas”, como diz a autora, versus as “ideais”, que pertenciam aos seus maridos. Com a disseminação da Igreja Católica na Idade Média a prostituição passa a ser condenada, mas um “mal necessário”, pois agia como uma válvula de escape para os homens de modo com que as “mocinhas” ficassem a salvo de seus desejos. Contudo, a ideia degradante que temos da garota de programa veio com a modernidade. Por meio da “ciência” da época procurava-se provar fisicamente que prostitutas eram doentes: dedos longos e separados, por exemplo, tornavam-se características físicas que denunciavam essa patologia. Era a teoria do “criminoso nato”, ideia retirada do livro O homem delinquente (1876) de Cesare Lombroso, que procurava características físicas para formar padrões de “criminosos”.

As fêmeas e as feministas

A prostituição não é um tema que proporciona opiniões unânimes, nem mesmo entre feministas. Algumas tomam uma posição abolicionista, categoria a qual o sistema legal do Brasil atende, sendo a garota de programa vítima da profissão. O objetivo é reintegra-la à sociedade, não havendo uma divisão entre o trabalho compulsório e o voluntário. Acreditam que nenhuma pessoa se vende por vontade própria, ela é jogada aos leões por um sistema que ao mesmo tempo em que condena essa prática e as marginaliza, abre todos os caminhos para facilitar seu contato com este mundo, por exemplo, quando o governo não investe em educação e trata a pobreza, a grande catapulta dessas meninas para o mundo a prostituição, de maneira não estrutural. Porém, agregado a essa razão, também pode haver um conservacionismo.

“Ao mesmo tempo que compreendo que as mulheres têm o direito de usarem seus corpos da maneira como escolherem, imagino que uma mulher que faça sexo em troca de dinheiro é tão escrava do patriarcado quanto uma dona de casa”, defende Marilia Botelho, estudante de Letras da Universidade

Estadual Paulista (UNESP) de São José do Rio Preto e militante feminista que ajuda na organização da Marcha das Vadias em sua cidade.

Ao encarar a prostituição como uma via de mão única em que as mulheres ocupam apenas o lugar de vítimas, tem-se o perigo de cair na simplificação. Gabriela Leite é um dos maiores ícones da luta pelos direitos das profissionais do sexo e quebra de seus estigmas. A paulista estudava filosofia na Universidade de São Paulo (USP), mas deixou essa vida de lado para encarar a realidade de ser uma prostituta. Por livre e espontânea vontade. E não precisa de eufemismos. Garota de programa? Como ela mesma costuma dizer, ela é uma Puta. Gabriela promoveu o Primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, em 1987, criando a conscientização dos direitos dessas profissionais. Então surgiu o Davida, em 1992, organização que “promove a cidadania das prostitutas”, como está descrito no próprio site. Um de seus principais objetivos é “conquistar melhores condições de trabalho e qualidade de vida para as profissionais do sexo”. A instituição tem a intenção tirar a prostituta das margens da sociedade e provar que a venda do corpo não é usada apenas para sair da pobreza, mas pode também ser uma escolha prazerosa. É mostrar que essas prostitutas, acima de tudo, são mulheres.

Marília Botelho acredita na liberdade sexual da garota de programa, mas ainda acha difícil a prostituição ser uma “escolha”. “Eu não concordo muito com a visão de que uma mulher goste MESMO de se prostituir. Acredito que é uma profissão criada pensando no prazer masculino. Muitas prostitutas sequer gozam, importam-se apenas com o prazer do homem que ‘comprou’ aquele direito... Essas garotas tem uma liberdade sexual muito louca que é totalmente transgressora ao estereótipo feminino, mas realmente acho que são extremamente marginalizas e usadas até suas forças se esgotarem, nesse caso, quando envelhecem. A prostituição não é legalizada, mas deveria? Não sei... Não sei se encaro bem o "direito a prostituir-se".

Um projeto de lei para regulamentar a profissão do sexo foi proposto pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ), em 2012, com auxílio dos fundadores da entidade Davida Gabriela Leite e Flavio Lenz, a consultora Friederick Strack e o pesquisador sobre prostituição José Miguel Nieto Olivar. Porém, este é um debate que incomoda não apenas feministas como Marília, mas as próprias prostitutas. “Para essas meninas a regulamentação implica no Estado garantir maiores direitos para aquelas que são exploradas, mas ao mesmo tempo elas ficam sujeitas às leis trabalhistas, teriam que pagar impostos. Isso sem contar que ficarão marcadas como prostitutas em suas carteiras de trabalho e muitas afirmam que isso traz uma insegurança e vergonha” explica a Mestranda em Ciências Sociais na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL/UNESP) de Araraquara, Lenina Vernucci da Silva.

A socióloga não toma uma posição abolicionista, enxergando a garota de programa como uma mera vítima, mas por sua formação marxista, humanista e feminista, “é também complicado ver o sexo como coisa que se paga”. Lenina explica que independente da exploração ou não, a prostituta traduz a ideia da mulher objeto, o que reforça a “concepção machista da mulher na sociedade. Quer dizer, como se esperar uma relação humana entre as pessoas se você trata uma como objeto de prazer? Mesmo pensando que as regras do jogo estão nas mãos da mulher que se prostitui, pois ela delimita o que quer fazer ou não e seus respectivos valores, temos uma mulher cuja função é seu corpo e só. Por isso é um debate muito complexo, já que cai em um ponto moralista e conservador - de que sexo não pode ser um prazer, não pode ser feito dessa forma - mas também cai numa questão do que é a mulher e como ela é vista”.

“Sempre há uma opção”

Mas o que representa para uma mulher ser prostituta? Soa autoritário dizer que todas são vítimas e precisam ser reintegradas à sociedade sem ao menos haver a separação do voluntário com o compulsivo. Sophia Winkel, feminista e aluna de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, aborda essa profissional de maneira relativa. “O problema não é a prostituição em si, mas a aliciação. Entendo que a relação que a garota de programa tem com seu corpo, sem dúvida, é diferente da que eu tenho com o meu, mas isso não a torna menos mulher”. A prostituição, apesar de não ter uma regulamentação, foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupação (CBO) do Ministério do Trabalho e Emprego em 2002. A Rede Brasileira de Prostitutas acredita que “este reconhecimento está entre as principais conquistas da categoria nos últimos anos”, como descrito no site do governo federal brasileiro. Alguns países como Grécia, Alemanha e Holanda, adotam o modelo regulador: proporcionam garantias legais às profissionais do sexo reconhecendo a profissão, que segue algumas normas, como lugares direcionados a essa atividade e exames médicos periódicos. Algumas medidas de conscientização foram tomadas pela Coordenação Nacional de DST/Aids, do Ministério da Saúde, que lançou a campanha “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”, em 2002, para alertar sobre a importância da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST). Uma pesquisa nacional realizada por esse mesmo órgão em parceira com a Universidade de Brasília (UnB) apontou que a porcentagem de aids entre garotas de programa caiu de 18%, em 1996, para 6% em 2002 (dados retirados do site do governo federal).

“A prostituta é vítima a partir do momento em que deslumbra um futuro diferente para si... Mas o sistema abolicionista vitimiza uma mulher que não é tão fraca assim. É tirar sua capacidade de pensar e optar pelo próprio corpo. Se ela acha que é conveniente, sendo isso uma escolha, não acho que seja uma vítima. Sempre há uma opção”, continua Sophia. A estudante também levanta o debate sobre a “dignidade” da profissão. A prostituta também é conhecida como “mulher de vida fácil”, mas como Amanda Lisboa, estudante de Publicidade e Propaganda da Faculdade Cásper Líbero, acrescenta: “Essa mulher tem que ter um psicológico muito forte, imagina o que acontece dentro de sua cabeça! Ela vai contra tudo e todos, tem que ter muita personalidade para encarar este preconceito”. Discute-se até que ponto essa é a opção mais fácil e menos digna. “Será que catar lixo é mais digno do que ser prostituta? O que é dignidade de trabalho? Esse trabalhador que precisa ficar no lixão corre o risco de pegar várias doenças, fica no chorume, é uma atividade muito árdua e com certeza válida, mas será que essa falta de qualidade e segurança no trabalho é dignidade?” indaga Sophia Winkel.

Vanessa de Oliveira formou-se em Enfermagem, faz pós-graduação em sexologia, é ex-garota de programa e virou best-seller com a publicação de O Diário de Marise – A Vida Real de Uma Garota de Programa (Matrix Editora). Hoje trabalha como sexóloga no programa Mulheres, da TV Gazeta, e é consultora da Revista Playboy, além de ser palestrante. Apesar de orgulhar-se de quem é, admite que no começo da profissão “tropeçou em questões religiosas” por ter sido criada na Igreja Apostólica Romana, mas já adverte: “não tenho nada contra os padres ou as freiras, tenho algo contra a Instituição. Eu ficava me perguntando se estava em um processo de pecadora, aquela coisa de culpa e castigo. Fui atrás da Bíblia, do Alan Kardec, mas depois de um ano cansei e fui ser feliz”. E é neste mesmo processo de culpa - e também vergonha - que muitas meninas se encontram, levando-as para as sombras da prostituição. Mas como conselho para essas mulheres Vanessa diz: “matamos Jesus, culpamos Sócrates, queimamos Joana D’Arc... Fizemos várias coisas baseando-se na opinião de uma massa que não pensa por si só e age por impulso... A partir do momento em que você tem atitude, se vê como um ser pensante e reconhece que o condicionamento da sociedade é que te deixa burro, você se liberta, começa a acreditar que é aquilo que pensa, não o que os outros acham de você.”

O que Quem são elas

Vanessa também acha complicada a questão da regulamentação: “quando criarem, as próprias garotas de programa vão ficar nervosas” justamente por causa do controle do Estado, mas não descarta sua importância principalmente nas áreas mais abastadas do Brasil e como um respaldo para aquelas que estão na profissão há muito tempo. “Mas para não haver a prostituição compulsória é essencial trabalhar a pobreza. Só assim vão sobrar apenas aquelas que escolheram a profissão por opção, o que é um direito.”

Trabalhar com uma visão abolicionista é complexo. Por mais que seja essencial pensar na reintegração das profissionais do sexo na sociedade, principalmente daquelas que procuram um meio de seguir outra carreira, também seria uma boa solução reintegrar este universo, não como forma de erradica-lo, mas de torna-lo cidadão e sem vergonha. “Penso – ainda em andamento – que qualquer profissão que dependa da exploração de uma pessoa é problemática. Condeno qualquer trabalho nos moldes capitalistas de relação, inclusive a prostituição e o mercado de sexo. Por outro lado, não condeno aquelas que desejam viver o prazer, viver intensamente algo que durante séculos só foi possível aos homens, enquanto o sofrimento ficava à mulher. Se ela é livre, lembrando que no capitalismo essa liberdade é apenas no plano formal, para escolher essa profissão, que seja feliz. Sem hipocrisia e moralismo” conclui Lenina Vernucci da Silva.

A discussão da profissão do sexo e sua legitimidade nunca será unânime. Mas vale a reflexão que a aluna de jornalismo Sophia Dias levanta: “Então por usar o corpo e não o intelecto isso a torna, torna este trabalho menos digno? É complicado quando impomos o que é digno, o que não é. Até que ponto fazer os outros de vítimas é respeitar a liberdade alheia? A prostituição em si não é o problema, mas sim sua exploração”.

Quando o coletivo julga o indivíduo por vender seu próprio corpo, ou caracteriza a menina que usa saia curta como alguém que “não presta”, esquece que também faz parte desse mundo a partir do momento em que reforça que o modelo de mulher “gostosa” e desejável é a panicat, como Sophia diz, “ela não serve como mulher, mas serve para satisfazer...” Para a mestrando em Ciências Sociais, Lenina, ser prostituta “pode significar várias coisas para uma mulher. Uma escolha livre de quem quer curtir muito sexo e ainda ganhar com isso ou uma forma de sobreviver. De qualquer forma, é viver um estigma pesado socialmente, mesmo que seja escolha”. Prostituição nem sempre é obrigação, também é prazer. Nem sempre é ser dominada, mas um exercício de dominação do próprio corpo. Vender-se por dinheiro é tratar essa relação como mercado. Mas e o sexo em troca de amor, atenção e compromisso? Vale a reflexão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário